segunda-feira, 22 de julho de 2013

Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos de Zygmund Bauman

Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos
de Zygmund Bauman

 

 

 
 Respeitado sociólogo da atualidade, Zygmund Bauman é professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia, e autor de diversas obras publicadas como “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”, “Medo Líquido”, “Modernidade e Ambivalência”, “Modernidade e Holocausto”, “Modernidade Líquida” e “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos”. Nesta última obra destacada o autor estende o conceito de “líquido” para as relações humanas na pós-modernidade. Mas o que significa tal conceito? Trata-se de uma característica essencial da pós-modernidade: tudo se torna frágil, duvidoso, frouxo, livre e inseguro. Bauman estende o conceito “liquido” para entender toda pós-modernidade e, muitas vezes, é criticado por isto. Todavia, naquilo que diz respeito à obra Amor Líquido, o autor consegue resultados consideráveis e, deste modo, ilumina as relações amorosas do século XXI e destaca que a frouxidão é a principal característica de tais relações. Bauman, logo nas primeiras páginas desta obra deixa claro o objetivo do seu trabalho: “A misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, é o que este livro busca esclarecer, registrar e apreender.” (BAUMAN, 2004, p. 8). A fragilidade dos vínculos humanos são misteriosos, conflitantes e inseguros na medida em que o homem contemporâneo está abandonado ao seu próprio aparelho de sentido, de modo que tal aparelho tem, ao mesmo tempo, grande facilidade de conceder e descartar sentido nas “relações amorosas”. O homem moderno, ávido por relacionar-se, ao mesmo tempo em que busca uma relação, e desta maneira repudia a solidão, não abre mão de sua liberdade, e para manter a liberdade mantêm a relação, entretanto com uma outra configuração . Desta maneira, temos um novo modelo de relação amorosa: é a relação líquida, frouxa. O homem moderno busca o outro pelo horror à solidão, mas mantêm este outro a uma distância que permita o exercício da liberdade. Diante da dúvida é que o outro e o eu se relacionam, toda relação oscila “entre sonho e o pesadelo e não há como determinar quando um se transforma no outro”. (BAUMAN, 2004, p. 8). A co-presença da satisfação e insatisfação da relação traz mais uma vez a dúvida à baila: devemos escolher sabendo dos riscos do nosso investimento, todavia, os casais “estão sozinhos em seus solitários esforços para enfrentar a incerteza.” (BAUMAN, 2004, p.10). Bauman deixa claro que a relação pode acabar numa manhã de sol que o outro – este que um dia antes disse “eu te amo – levanta-se da cama e exclama: acabou!Como entender tal mistério? Quais idéias que se auto-organizaram para tal catástrofe? – catástrofe para aquele que perde o objeto de amor “garantido”. Como sobreviver depois deste salto, ou melhor, do céu ao inferno em uma noite? “O amor, dirá Bauman, pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante quanto a morte. [...] Assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar.” (BAUMAN, 2004, p.23).  Diante desta atração e medo o homem faz suas escolhas e Bauman as analisa.
O relacionamento passa a ser um investimento: a satisfação e a dor são proporcionais ao investimento. “Um dilema, de fato: você reluta em cortar seus gastos, mas abomina a perspectiva de perder ainda mais dinheiro na tentativa de recuperá-los. Um relacionamento, como lhe dirá o especialista, é um investimento como todos os outros: você entrou com tempo, dinheiro, esforços que poderia empregar para outros fins, mas não empregou, esperando estar fazendo a coisa certa e esperando também que aquilo que perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de alguma forma, sendo-lhe devolvido – com lucro.” (BAUMAN, 2004, p. 28). O investimento pressupõe “lucro” – uma relação firme e feliz capaz de gerar satisfação para sempre –, todavia, não tendo este como resultado o que resta é uma desolação de tempo perdido e trabalho desperdiçado como esforço inútil. Baumam salienta que um relacionamento ocasionará muita “dor de cabeça” (BAUMAN, 2004, p.8), mas antes de qualquer coisa e acima de qualquer estância “uma incerteza permanente”. (BAUMAN, 2004, p. 29). O ar pessimista da obra mostra que a mesma dificuldade que se tem para amar pode ser transposta para a morte, pois é tão difícil aprender a amar quanto a morrer.
Os “insights” de Bauman na obra “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos” são inúmeros e destacam comportamentos do nosso dia a dia, do que há de mais concreto na vida do homem moderno com suas relações de amor: seus acessórios tecnológicos – que alimenta a crença de um mundo melhor e tranqüilo –, a busca ensandecia pelo sentido, a crença no amor como oasis em um mundo trágico e violento, as relações como uma rede computacional, a imprevisibilidade das relações, a queda da distinção entre o regular e o contingente, a traição, os relacionamentos de bolso – que podem ser usados quando as partes bem entenderem –, o cartão de crédito como forma de antecipação da satisfação, a subordinação do amante e a opressão do amado, etc. “Todos os amantes desejam suavizar, extirpar e expugnar a exasperadora e irritante alteridade que os separa daqueles a que amam. Separar-se do ser amado é o maior medo do amante, e muitos fariam qualquer coisa para se livrarem de uma vez por todas do espectro da despedida. Que melhor maneira de atingir este objetivo do que transformar o amado numa parte inseparável do amante? Aonde eu for você também vai; o que eu faço você também faz; o que eu aceito você também aceita; o que me ofende também ofende você. Se você não é nem pode ser meu gêmeo siamês, seja o meu clone!” (BAUMAN, 2004, p. 29). O relacionamento na pós-modernidade seria mais uma forma de massificação e obliteração da subjetividade? A crítica filosófica – diante deste ataque à capacidade humana de pensar, refletir e entender as relações – seria uma forma de voltar à caverna para trazer à luz os casais presos e encantados com as sombras da caverna? Bauman dá os primeiros passos neste resgate.
Livro: Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos
Autor: Zigmund BAUMAN
Detalhes: Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2006. Trad. Carlos Alberto Medeiros.

Zygmunt Bauman

A modernidade da fusão social pela
solidificação individual:

Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman

Propondo como tema uma nova visão sobre a modernidade, voltada à fluidez das relações, no individualismo pregando o dinamismo, Zygmunt Bauman norteia seu “Modernidade líquida”, expressão síntese desta nova idéia.

          Inicia seu estudo discutindo a idéia de liquidez e fluidez. Por se tratar de um conceito voltado à mudança de formas para acomodação nos mais diversos encaixes, é inevitável a analogia à nossa atual e imediatista sociedade pois “assim, para eles [nossos conviventes], o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas ‘por um momento [grifo do autor]” (BAUMAN, 2001, p. 8). Desta forma, Bauman afirma que sólido é aquilo que para outros pensadores, como Weber e Marx, soa como algo retrógrado, ultrapassado, rígido, duradouro e previsível em suas formas e possibilidades, em muitos de seus aspectos (econômico, social, político etc.).
Zygmunt Bauman

Frente a isso, um outro termo usado pelo autor – derretimento – será empregado para designar a desintegração desse discurso sólido e fixo já em vias de enferrujamento dos compostos institucionalizados. Agora, nessa nova modernidade maleável, para Bauman o que vigora é a ascensão de um objetivo individual, em declínio dessas instituições, analogamente, sólidas e tradicionalistas. Essa mudança de parâmetros teria provocado, então, uma quebra dos moldes, as molduras de classe, etnia, linhagem etc., alguns dos já históricos pontos de orientação. Esses padrões já não estigmatizam o indivíduo, pelo contrário, seria do indivíduo que partiria, se chocando com os multifacetados novos padrões, cada vez mais micros, de convívio social e, por isso, com sucinta fluidez, normas que vão e estão se maleando em curtíssimo espaço de tempo.

A voraz diminuição dos espaços em locomoção física ou sensorial é um dos mais claros exemplos do derretimento desses padrões que eram vigentes. Atualmente, computadores e telefonia, ambos móveis e portáteis, levam consigo a ordem e agenda de qualquer lugar, em ações que podem criar reações transformadoras (caóticas) de qualquer para diversas posições do globo.

Essa mutabilidade de relações também promove o desprendimento, no sentido afetivo e de posse eterna dos bens lucrativos, bastando dizer que hoje devem sim ser de favorável retorno financeiro, mas já tendo noção que são altamente perecíveis e, decorrente a isto, devem ser rapidamente rotacionados.

Nessa aparente e sedutora emancipação, Bauman questiona a liberdade como real objetivo almejado, cravando o leitor com uma revelação formulada como indagação: “A libertação é uma bênção ou uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou uma bênção temida como maldição?” (BAUMAN, 2001, p. 26). Embasado por seu estudo, ele mesmo responde: “A verdade que torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem não ouvir” (BAUMAN, 2001, p. 26).

Desse modo, as idéias tradicionais de revolução e mudança nesta sociedade já estão póstumas porque os reacionários já não estão mais conosco, o mundo fluído não permite a “tradicionalidade ideológica” com suas táticas pré-determinadas e solidificadas. Mas esse não é um comportamento escancarado, na verdade, o maior problema da atual sociedade está justamente nesta ausência de se auto-questionar e se posicionar, ela prefere não tentar se reconhecer e sente-se absolvida a cada justificativa em seu senso comum e/ou acadêmico, o que causa certa intransigência a novas questões, principalmente se estas tiverem força suficiente para por em juízo o modelo vigente. Importante lembrar que não se trata de um embrutecimento, muito pelo contrário, esta sociedade é tão pitoresca quanto era a caracterização da sociedade do início do século XX, todavia, é evolutiva a seu modo, é de forma voraz e a passos cada vez mais largos, velozes, opressivos e normalmente destrutivos para a desmontagem, remodelagem e reconhecimento de crenças.

E o individualismo é papel preponderante aqui, pois se trata da empregabilidade de funções mutáveis, fluídas no sentido de liberdade de roupagens, diferente do conceito libertário do início do século passado. Esses indivíduos, controversamente, não têm controle sobre seus destinos e decisões e, o que é pior, nem podem culpar um terceiro pelo seu grilhão imaginativo, pois a pseudo-liberdade é uma ilusão criada como possibilidade de fuga, da incapacidade deste, que não ousa extrapolar os paradigmas. Assim, até o espaço público têm-se tornado lugar de problemas privados, socialmente trata-se de uma involução ímpar pelo fato de que:

“O indivíduo de jure [falso] não pode se tornar indivíduo de facto sem antes tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a autonomia da sociedade requer uma auto-constituição deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros” (BAUMAN, 2001, p. 50).

Já que era (e assim deveria ser, segundo o autor) a sociedade como elo entre os dois lados deste abismo da individualidade (a real e a almejada), como na Antiga Atenas com suas ágoras, não acontece atualmente porque os ensejos mesmo que parecidos são almejados em um meio incongruente, trocando palavras, o que se passa atualmente é uma condição inédita: a esfera pública, outrora laica em espaço e impositiva em dogmas, hoje é a remota esperança contra a autonomia de jure. É através do tornar público que essa liberdade poderia ser de facto, ou seja, tal qual o sentido completo e genuíno do termo, o que é hoje, segundo Bauman, de pouca probabilidade. A dimensão pública atualmente tem tentado se livrar do poder que havia já há muito tempo gerenciado, enquanto o privado se apossa e o desfigura não para extinguí-lo, mas para dar forma a seus interesses momentâneos e ininterruptos.


        Essa desordem (no sentido de não se saber o que vem a seguir) vitalícia de seus viventes se difere muito da bula fordista, onde o roteiro funcional era, via de regra, por toda a vida e estático. Novamente entra em cena o novo sentido de ordem, o da fluidez das águas correntes do capital e de seus nadadores funcionais, entretanto isso não significa uma evolução, pois não é a maioria que rege ou não se afoga nesse deslocamento, ainda mais quando o curso deste rio não é calmo nem pré-determinado.

Conta-nos que essa (falta de) consciência sobre a ininterrupção faz do sujeito um ser inacabado, seja ele socialmente visto como um derrotado ou bem-aventurado. Isto fica claro nas extintas figuras autoritárias rígidas de um capitalismo pesado que deu lugar a um número maior e, por isso, uma disputa mais acirrada pelo poder, onde os vencedores governam por tempos e espaços muito mais reduzidos que outrora. Atuam como conselheiros pelo que por eles é almejado, prometido, pregado e feito. Pela resolução de problemas cada vez mais pessoais e não pelas atitudes tomadas pelo bem (ou mal) do grande grupo sem rosto que é a simbolização da coletividade.

E aí protagoniza o mais evidente e nocivo comportamento desta sociedade: o consumo. Propagou-se um comportamento geral de comprar, não apenas produtos e serviços, mas o ato de aquisição fica também evidenciado na busca e anexação de personas do indivíduo e as pessoas que com este se relacionam, seja o empregado, empregador ou até mesmo o par amoroso. Logo, esta sociedade é vista e se porta como consumidora, e não mais produtora, não existindo um limite para a busca da faustosidade momentânea, desde que fuja (sendo inexoravelmente capturada) da regra da padronização visual e comportamental, para que os itens que simbolizam a ostentação agora em pouco, pouquíssimo tempo, se tornem itens de necessidade as próprias pessoas que, cada vez mais, deixam de adquirir bens para se entregar, viver para eles.

As relações interpessoais, segundo Bauman, suspiram um saudosismo descaracterizado do pré-conceito do termo, ele não se dá pelas inter-relações, mas por uma busca da eficácia de mútua vigilância, de saber quem é você no limitado universo de sua vizinhança, ressalta-se, homogênea. Criando-se uma situação dúbia, pois ao mesmo tempo em que se investe em proteção, adicionando formas de expurgar esses novos vilões, há o enclaustramento, cada vez mais reducionista, de seus investidores em uma realidade-cela.

Acabam-se os contatos? Você deve estar se perguntando, Bauman afirma que estas relações foram removidas das situações de casualidade e desnutridas de qualquer interação afetiva, já que nunca foi tão fácil se relacionar com outrem sem ter o mínimo de contato com estes, com discursos preestabelecidos (de aquisição e não de interação) e em lugares já determinados, na verdade, denominados pelo autor de “não-lugares”. Os “não-lugares” são, normalmente, espaços que se presta a exercitar a sua indiferença com o ambiente que o cerca. A não sociabilidade e civilidade desses espaços não permitem estada por estendido limite de tempo e nem sensação de se estar ali. Transportes públicos, quartos de hotel, fast-foods, etc. se apresentam como lugares domiciliares, mas sem as liberdades do lar. Assim como lugares que não interessam, que não valem menção de memória, como a miserabilidade de favelas ou a morbidez de cemitérios, estes espaços não recebem atenção destas pessoas, mesmo que elas, algumas diariamente, façam tal trajeto, até porque:

“O vazio do lugar está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas de quem anda. Vazios são os lugares em que não se entra e onde se sentiria perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos” (BAUMAN, 2001, p. 122)

As regras são claras: conversa-se, negocia-se, cumprimenta-se cordialmente, mas sempre evitando maior contato, como dogmatiza essa modernidade leve e solta que assim desfigura a, então, relação congruente da idéia de espaço-tempo de outrora, como no tempo em que a velocidade dependia do esforço humano ou animal, hoje as extensões fisiológicas, que abocanham espaços cada vez maiores em cada vez menos tempo, estendem distâncias, encurtam o tempo, expandem a expectativa de vida, mas tornam todo ato desse tempo de locomoção e vivência numa ação instantânea, imediatista, onde a exaustão e desaparecimento do interesse também vem neste bojo a reboque.

Toda produção e trabalho, cada vez mais leves, se tornam atitudes presenteistas. Até a antiga e positivista fé no progresso é agora mais evidente pela crença e apego ao presente para a formação de um futuro promissor ou a ausência de um messias a ditar explicitamente seu conjunto de mandamentos. Essa instabilidade, onde o abismo de três vertes: entre o ideal e o real dos planos de cada um e do senso coletivo, nunca foi tão profundo, pois se o trabalho aqui surge como principal esperança do controle do presente para, conseguinte, tentativa de controle do futuro, da manutenção da ordem de controle deste por vir caótico, há aí a promoção, mesmo que involuntária, da exorcização da experiência e das decisões cometidas por outros sistemas, segundo seus indiferentes fantasmas antigos que devem ser sepultados. Mas estas pessoas líquidas ignoram os novos espectros e seus inéditos assombros (da instabilidade em curto prazo, do mal-estar social, da impessoalidade atual, etc.) que, não desses túmulos, mas surgem na escuridão das próprias sombras destes críticos-coveiros das experiências passadas.

E, diferente da visão em pedaços, peças desconexas, remendos provenientes da produção mecanicista de montagem, da política estatal do bem-estar como podador das anomalias e apostas de longo prazo, impera na modernidade líquida o recurso da subjetividade, das idéias ocupando o lugar das coisas materiais, afinal, não há nada mais leve e versátil que uma idéia a tiracolo. E neste contexto os canais de comunicação se intensificam e ganham músculos, o “noticiário” se apresenta como a transmissão da realidade fiel, sem partidarismo ou distorção, haja vista que o tempo, bem maior, é escasso e esse enxugue se torna supra-necessário além do fato de que uma vez figurado como prólogo da história a ser contada, o presente é a promessa de um futuro promissor, por isso é encarado como deficitário e incompleto.

Deficitário e, ao mesmo tempo, dinâmico e presente, precisa sê-lo para atingir a plenitude futura, esse ritmo não permite o exercício, por exemplo, de reflexão das ações individuais ou coletivas, não há tempo a ser “perdido”:

“Os mecânicos de automóveis de hoje não são treinados para consertar motores quebrados ou danificados, mas apenas para retirar e jogar fora as peças usadas ou defeituosas e substituí-las por outras novas e seladas, diretamente da prateleira. Eles não têm a menor idéia da estrutura interna das ‘peças sobressalentes’ (uma expressão que diz tudo), do modo misterioso como funcionam; não consideram esse entendimento e habilidade que o acompanha como sua responsabilidade ou como parte de seu campo de competência. Como na oficina mecânica, assim também na vida em geral: cada ‘peça’ é ‘sobressalente’ e substituível, e assim deve ser. Por que gastar tempo com consertos que consomem trabalho, se não é preciso mais que alguns momentos para jogar fora a peça danificada e colocar outra em seu lugar? (BAUMAN, 2001, p. 186)

Desse modo, a durabilidade é precária ou inexistente nessa realidade. Outra marca desse movimento (contínuo) é a extrema falta de confiança, o medo da perda brusca do que já se conseguiu e/ou do que se está galgando. Essa desconfiança não é pecado, pelo Evangelho comunitário (termo de Bauman) dessa sociedade o dogma de convivência enaltece um discurso/sentimento patriota e suas “virtudes”, de benevolência e tolerância para com o próximo (a bem da verdade, visto como competidor) e sua carga cultural multifacetada enquanto repudia o sentimento nacionalista e sua fama de agressão e ódio aos outros, os mesmo competidores vistos como responsáveis pelos infortúnios não só da nação, da coletividade, mas como tramitáveis obstáculos de objetivos pessoais.

É muito claro ao autor que esse discurso patriótico é tão cheio quanto um balão de ar já que, segundo sua interpretação, dada a necessidade dessas pessoas escolherem um posicionamento entre a liberdade (no sentido genuíno do termo) e a segurança, a sociedade líquida optou por unanimidade pela segurança. Unanimidade porque a uniformidade já a muito tempo não está mais nos produtos ou serviços, muito menos nos métodos de produção ou divulgação, essa padronização que Ford implantou nas peças, as colocando em linha de produção já se proliferou para o comportamento humano (?) dessa sociedade, como um chip implantado em cada um desses que completam, mas não formam essa sociedade fluida, em seus trejeitos vivenciais, onde todos miram num objetivo comum sem nenhum ineditismo, como em um espetáculo que infinitamente (o infinito do agora) se mantém em cartaz.

E nessa linha de raciocínio, meio que trágica Zygmunt Bauman conclui sua obra dando a essa sociedade simbiótica um tom circense, posta ao público e cheia de vaidades, onde esses “atores sem papel” precisam de circunstâncias momentâneas de encenação para que não corram o risco de uma possível união afetiva. Não criam nada mais que a excitação do desempenho ou que se prolongue mais do que a finitude do cheiro das coisas novas, dos produtos consumidos, relacionando-se de forma incipiente com suas aquisições de plástico, metal, high-tech ou mesmo as de carne, osso e sangue que trazem uma alma como acessório de fábrica para serem (apenas) degustados em situações carnavalescas, na festa presenteista da carnalidade:

“’Comunidades de carnaval’ parece ser outro nome adequado para as comunidades em discussão. Tais comunidades, afinal, dão um alívio temporário às agonias de solitárias lutas cotidianas, à cansativa condição de indivíduos de jure persuadidos ou forçados a puxar a si mesmos pelos próprios cabelos. Comunidades explosivas são eventos que quebram a monotonia da solidão, cotidiana, e como todos os eventos de carnaval liberam a pressão e permitem que os foliões suportem melhor a rotina que devem retornar no momento em que a brincadeira terminar. E, como a filosofia, nas melancólicas meditações de Wittgenstein, ‘deixam tudo como estava’ (sem contar os feridos e as cicatrizes morais dos que escaparam ao destino de ‘baixas marginais’)” (BAUMAN, 2001, p. 229)

 


Saiba mais sobre as obras de Zygmunt Bauman.
Compre livros a partir destes links e ajude Klepsidra a permanecer no ar de graça.


Zygmunt Bauman e o sistema que hipotecou o futuro


“Minha casa é a que tem a árvore mais alta da rua”, instruiu-nos Zygmunt Bauman, para que o repórter-cinematográfico Paulo Pimentel ao volante e o repórter ao lado atrapalhado com GPS não se perdessem em Leeds, norte da Inglaterra.
Ali, em confortável casa protegida ou ameaçada pela tal árvore, o professor mora desde os anos 70, época em que deixou sua Polônia natal para dar aulas de Sociologia na Universidade de Leeds, de considerável reputação internacional, sobretudo na matéria dele.
Bauman está com 86 anos e se aposentou há mais de dez, porém continua prolixo na produção de artigos, conferências e livros.
Suas obras correm mundo, inclusive o Brasil, onde tem uma dúzia de livros publicados e bem vendidos pela Editora Zahar.
O lançamento mais recente, no Brasil, no Reino Unido e em dezenas de países, foi 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, que reúne as colunas ou “cartas” escritas por ele para a revista semanal italiana La Repubblica Delle Donne. entre 2008 e 2009.
Mas ele não para de escrever e comentar sobre assuntos diversos da cultura contemporânea e por isso já prepara mais um livro, que reúne desde artigos e ensaios a pequenas observações do dia-dia-dia.
– Será uma espécie de diário” – explica-nos Bauman enquanto nos oferece salmão e suco de frutas em seu escritório. — Por isso mesmo, vai ter o título: Isto Não É Um Diário”.
– Parece o Magritte e seu quadro de um cachimbo com o título Isto Não É Um Cachimbo? – ouso comparar, aproveitando que o professor não larga o cachimbo e fuma-o sem parar durante nosso encontro.E no espírito de intelectual interessado em vários assuntos, ele já nos remete a um estudo de Michel Foucault sobre o quadro de Magritte.
O local de trabalho do professor em casa é aconchegante, com vista para o jardim, e estantes tomadas por seus muitos livros traduzidos em vários idiomas, além de fotos e lembranças das três filhas e da mulher falecida há poucos anos.
Carros acelerados e barulhentos percorrem uma avenida próxima, mas não o incomodam, diz ele rindo, aos 86 anos, “porque já estou meio surdo mesmo”.
De fato, o telespectador poderá notar que as perguntas soam em tom mais alto do que as respostas, a pedido dele, preocupado em garantir que nos ouvisse. Dá para perceber também o forte sotaque polonês do professor, apesar do inglês fluente e rico na escolha de palavras e expressões.
Ele tem voltado à Polônia com frequência, desde que deixou de ser persona non grata , após a queda do comunismo – como já tinha ocorrido com ele sob a ocupação nazista. Vai a trabalho, para consultas acadêmicas ou dar palestras, porque não tem mais família lá.
O bom humor do professor não se abala quando o cinegrafista interrompe a gravação e brinca: “o senhor está muito levado, mexendo-se demais na cadeira”. Ele ri e promete se comportar melhor.
Bauman esteve no Brasil uma só vez, há mais de 10 anos, convidado pela Sociedade Brasileira de Sociologia, para uma conferência em São Paulo.
– Antes da era Lula –, comenta.
– Foi então durante a presidência de seu colega sociólogo Fernando Henrique Cardoso? – perguntamos.
– Ele é sociólogo? Eu não sabia.
Nossa conversa gravada cobre assuntos variados. Poderíamos ter continuado o papo por muitas horas e tratado de outros tópicos, mas o programa só dura meia-hora. E o professor já nos advertira de que se cansa com facilidade. Por isso, o Milênio oferece apenas uma amostra do vasto repertório de Zygmunt Bauman.

por Silio Boccanera

Zygmunt Bauman e o sistema que hipotecou o futuro

qui, 12/01/12


Em agosto de 2011, uma revolta em Londres chamou a atenção do mundo. Sem liderança aparente ou qualquer tipo de exigência, jovens foram às ruas. Incendiaram e saquearam lojas, invadiram shopping centers e destruíram símbolos da sociedade de consumo que os excluía.

A questão era intrigante. O que levou essas pessoas a essas ações violentas? Embora compartilhassem o contexto de crise econômica e falta de oportunidades com aqueles que levaram a cabo os movimentos da Primavera Árabe, os jovens do Reino Unido não queriam transformar a ordem. Segundo Zygmunt Bauman, “foi uma revolta de consumidores desqualificados”. Eles queriam, na verdade, participar do sistema. O sociólogo viu naquela revolta o símbolo do momento em que vivemos.

Bauman foi uma testemunha das mudanças desse século de extremos. Nascido em 1925, na Polônia, sobreviveu ao nazismo, vivenciou o comunismo e, há 40 anos, pesquisa e mora na Inglaterra. Sua maior contribuição foi o conceito de liquefação dos laços sociais. Por mais que nossas relações não tenham perdido densidade ou complexidade, elas passaram a ser mais fluidas e incertas. As mudanças no modo de produção desencadearam uma série de pequenas revoluções no cotidiano que, aos poucos, criaram o contexto para que a sociedade atual se desenvolvesse.  De uma fábrica que detinha cada etapa da confecção de um bem, temos hoje cadeias de produção que se espalham pelo mundo como teias que se entrelaçam graças à tecnologia da informação e aos transportes cada vez mais rápidos. O tempo que era linear tornou-se instantâneo e o conhecimento passou a ser a base para a geração de valor. Em poucos anos, o capital que era sólido e fixo, ganhou enorme liberdade no espaço e no tempo.

Como consequência, todo o tecido social foi afetado. No nível do trabalho, a atualização e a capacitação profissional passam a ser constantes e a renovação dos quadros não mais obedece uma ordem linear. Foi rompida a sequência entre escola, universidade e trabalho. O mercado busca cada vez mais a especialização e muitos diplomados acabam em subempregos ou desempregados. Na arquitetura, os não-lugares – shopping centers, estradas, aeroportos – representam pontos de conexão em uma rede de fluxos indefinidos. Governos ficam à deriva em um contexto que Bauman classifica como “divórcio entre política e poder”. Na vida pessoal, a constante necessidade de se redefinir, de se aprimorar e de se adaptar cria um ambiente de insegurança e angústia. A saída, para muitos, é o consumo. Um alívio rápido que permite que se estabeleçam laços com determinado grupo ou idéia, mesmo que de maneira fugaz, pois sempre haverá algo mais novo ou mais interessante. Os estímulos constantes e a necessidade de criar para agregar valor fecham o ciclo de um sistema que se retroalimenta e se expande a uma velocidade que parece sempre maior do que se pode acompanhar.

Para Bauman, aqueles jovens demonstraram a crise de um sistema consumista que hipotecou o futuro, desmantelou gradualmente as estruturas que mantinham a coesão social e comercializou a moral.


Fotos: Julia Pimentel

por Rodrigo Bodstein

domingo, 21 de julho de 2013

Histórico crítico das manifestações no Brasil - Ana Monique Moura

Histórico crítico das manifestações no Brasil


É preciso que, para além de ler os clássicos teóricos do Comunismo, se pense com eles e para além deles, no sentido de conduzir uma força de reflexão política e não uma comunidade hagiográfica do pensamento da tradição 
19/07/2013
Ana Monique Moura*

É algo muito ambíguo o que tem ocorrido e permanece ocorrendo nas ruas do nosso país, tamanha é essa ambiguidade, que veio confundindo teóricos, políticos, sociólogos de todo o mundo sobre como definir este panorama. Não é gratuito que se revele ambíguo e, portanto, difícil, pois como diria Maiakovski: “o mar da história é agitado”. Estamos acostumados a definir a história e o nosso tempo ainda de maneira linear e definir os períodos de protestos de maneira um tanto didática, mas é preciso que nos penetremos nesta confusão para compreender o que está acontecendo. Com rigores de observações unilaterais isso fica inviável. É preciso aceitar a agitação do período e ver nisso a possibilidade de sua compreensão e não a sua ausência. Nosso momento é um enredo truncado, com definições sempre falíveis, caso tentem repetir abordagens.
Não valeria dizer, por outro lado, que pareça uma revolução, mas também não é, inteiramente ou apenas, uma festa. A manifestação que aconteceu para impedir a fixação do aumento dos R$ 0,20 centavos a mais nas passagens de ônibus não é inovadora. Há anos, desde a nossa desconfiável insurgente democracia, movimentos estudantis vem enrijecendo lutas, cuja minoria participativa é inegável. Dentro das próprias universidades em que estudam são, com frequência, rechaçados pela infinita maioria esmagadora de outros estudantes que se dizem apolíticos, ou afastados do envolvimento, assim dizem, “sem retorno”, com a politização de ideias.
Em triste contrapartida, os movimentos estudantis atuais, claro, preciso ser ferrenha quanto a isso, de fato, carecem de uma envergadura mais política e menos emotiva. A folia da indignação é o que se mostra muito mais presente nas atividades dos grupos que saem às ruas há anos. Esta ausência de envergadura, que significa, em outros termos, não apenas a ausência de leitura e compreensão tanto do jovem quanto do velho Marx, e de outros autores como Bakunin, Kropotkin, aliada à leitura de autores atualíssimos sobre o tema, como o Badiou, Derrida (dentre tantos outros), mas a própria produção intelectual dos grupos. Não há, e se há, não é suficiente.
Porém o recuo da maioria infinita não se dá pelo reconhecimento desta falta de envergadura política, e sim porque, neles, a possibilidade de envergadura política nem mesmo alça algum feixe de possível presença. Se parece claro a despolitização de muitos jovens estudantes que se põem muitas vezes na luta, o que diríamos da grande massa que se aparte desta minoria?
Embora este fato triste, e ao mesmo tempo, até esperado, em se tratando de um país em que a preguiça intelectual ainda é grande problema, é preciso que haja sempre desconfiança na negação da luta por parte dos demais em relação às lutas dos estudantes contemporâneos.
Ainda que haja ingenuidade intelectual, há uma arma que eles sabem utilizar muito bem, que é o discurso da indignação, coisa que já critiquei em outro texto publicado aqui (Os índios e o Brasil: Da história às redes sociais). Uma indignação que se revela, muitas vezes, como apelativa e acrítica. A linguagem publicitária do sistema culminou por estar presente em muitos dos discursos que deveriam se propor como um discurso mais politizado. Hoje, por fim, usarmos os termos “propaganda de esquerda” ou “propaganda de direita” é mais vigente do que o discurso político para ambos.
Mas é preciso que a luta de uma esquerda crítica de si mesma permaneça, que resista aos titubeios e disfarces das novíssimas esquerdas que não tem nada de esquerda. O que ocorre é que a direita se apropria das conquistas da esquerda e assume tais conquistas como próprias do direitismo político. Aqui a propaganda tem um papel fundamental, ao divulgar que sem a direita, as conquistas adquiridas não receberiam a gestão devida.

I

Por fim, a esquerda começa a ser objeto da direita e o perigo se mostra tanto pior no momento em que a esquerda entra na ingenuidade de que está promovendo alguma luta política inovadora, quando, em verdade, está sendo aproveitada pelos direitistas. O mínimo de esclarecimento intelectual aqui bastaria aos entusiastas de esquerda para evitar isso.
É preciso que, para além de ler os clássicos teóricos do Comunismo, se pense com eles e para além deles, no sentido de conduzir uma força de reflexão política e não uma comunidade hagiográfica do pensamento da tradição. Como já pensou muito bem o Maurice Ravel, “a tradição é a personalidade dos imbecis”. E o próprio Marx guarda como cerne de sua crítica da economia política uma fundamental crítica à religião. Com toda certeza, ele não esperaria dos comunistas uma genuflexão ao seu pensamento como uma doutrina a ser honrada. É pensamento crítico, não religiosidade. Isto é básico. Esta atitude ingênua acarreta na ridicularização cada vez mais declarada da “atitude política” por parte dos jovens que se dizem de esquerda.
Deve-se entender que, se o nosso país ficou repleto de pessoas nas ruas isso não se deu de uma maneira estritamente revolucionária. Houve uma propaganda de direita que se aproveitou dessa conjuntura e ali, nas universidades, os estudantes que sempre estiveram nos protestos ficaram ingenuamente felizes com a repercussão, e os que sempre recuavam agora aderiam às manifestações.
Há muitos que criticam as manifestações por uma ausência de direcionamento de pautas, mas esta crítica é um tanto falha. Em um país cujas decisões políticas são todas ao mesmo tempo muito falhas, as manifestações só podem também revelar esse mosaico de decisões a serem corrigidas. O problema não é o pluralismo das manifestações, mas o pluralismo carnavalesco de decisões que se pretendem políticas para o país. As manifestações são apenas uma decorrência natural de um palácio de governo no qual a bacanal de leis irrisórias acontece com frequência e vem se acumulando a cada ano, desde Fernando Collor.
O problema é que a política do Brasil é feita por analfabetos políticos que alimentam outros analfabetos políticos, no sentido Brechtiano. Se engana quem acha que está à frente de modo crítico disso por levantar um cartaz nas ruas. O neoliberalismo consiste em aderir a todas as tomadas contrárias a ele para, ao invés de conservar e tornar-se estéril a partir da coibição, ampliar e multiplicar seu mercado a partir da aceitação. Isso explica porque, dentre tantas outras coisas, Marx é emblema do Cartão Mastercard em Chemntiz na Alemanha, porque Che Guevara é emblema de camisas de marca, e o personagem de V de vingança é mercadoria querida dos manifestantes brasileiros que, ao comprarem o produto, geram royalties para a Warner.
Estamos encurralados. E não digo isso solitariamente. De uma maneira sofisticada e através da literatura, George Orwell, na obra “1984”, retrata antecipadamente muito bem isso. E sua crítica ao poder é tão ferrenha que deixa ser possível para nós pensar até mesmo a esquerda sendo comparada ao que a direita tem feito conosco. E nos colocamos a pensar: o que a direita e/ou o fascismo fez é o que também a esquerda e/ou o comunismo faria se chegasse ao investimento do delírio do poder, a saber, controlaria a todos para evitar que outra forma de poder viesse à tona. Há a descrição do controle de mídia, jornais, a comunicação do grande irmão, o famoso Big Brother, com os seus governados que são, por isso mesmo, manipulados.
Penso que a saída para a ampliação da reflexão disso, se houvesse ou se houver, estaria, em alguma boa porcentagem, na revisão de algumas propostas feitas por Bakunin, na sua critica radical ao estado, uma vez que o problema reside, como vemos, na estrutura desse poder que existe, ao menos teoricamente, para nos tonar mais dignos de uma vida social, o que é uma douta mentira. A erradicação do estado seria, de acordo com Bakunin, a erradicação das possibilidades de uso excessivo de poder sobre os outros, para o bem ou para o mal. Ah, mas isto, nos dizem, é anarquia! Sim, é anarquia contra anarquias soberanas, anteriormente fundadas.
É necessário saber que não estamos em Maio de 68, mas muito provavelmente estejamos em 1984 de George Orwell, mas no estilo bem abrasileirado.

II

Pergunto a vocês, leitores comunistas ou anarquistas, seria essa juventude brasileira, que está nas ruas, politizada? Em um recente artigo na Revista Carta Capital (edição 754), Vladimir Safatle chega a ser muito peremptório ao dizer que essa é a época de uma consciência política no Brasil. Com exceção do brilhantismo de seus pensamentos, não vejo meios para concordar com uma ideia tão deslumbrada.
Em primeiro lugar uma manifestação política em forma de protesto não pode ser esperada. Ela deve chegar de surpresa. Neste caso, a manifestação de fato que protestou aconteceu uma única vez, a primeira manifestação em São Paulo. Mas, em um lugar no qual os militares esperam, em sua maioria, de maneira tranquila, em que boa parte das lojas da cidade fecha, como ter voz de impacto a manifestação que ali chega? Em segundo lugar, como pode haver uma consciência política se a juventude está despolitizada, mesmo quando ousa falar muito mais por euforia, do que por compreensão, de política? No meio desta juventude se metem os outros jovens direitistas cantando e muitas vezes fazendo os outros de esquerda também cantar “deitado eternamente em berço esplêndido”. Ora, como dizer que estamos deitados eternamente em berço esplêndido? O Movimento Sem Terra esteve presente nas manifestações e foi vaiado em muitas cidades. Seu grito foi substituído pelo “deitado eternamente em berço esplêndido”. Que tipo de consciência política é essa que está indo às ruas?
Não importa o que façamos, se o fazemos numa apelação e firmação do poder do estado, o resultado disso será reconfigurado pelo neoliberalismo atual e que se imiscui nas decisões políticas do país. Aqui, a teoria do “menos estado” no pensamento liberal cai por terra. O próprio estado detém princípios liberais, não nos enganemos.
Um exemplo. Eugênio Gudin, economista brasileiro na época do presidente Café Filho (década de 50) defendeu a teoria de que recuar e diminuir os impostos não resolve nenhum problema. O que precisa ser feito é procurar um meio do país ter condições de conviver com o aumento dos impostos. Mas, talvez ele não tenha pensado que, em geral, se há aumento de impostos, algo vai mal na economia do país. É necessário que se reveja o número significativo que um governo paradoxalmente tirânico e populista investe em subsídios favorecedores de uma ideia de política da caridade, como o programa Bolsa Família, que substitui uma política que deveria nascer, sem esse tipo de estado, reinventada para uma emancipação da educação, trabalho e liberdade intelectual, no meu ver, importantíssima para um país doente pelo analfabetismo político. A medida dos subsídios não só serve para investir na separação entre o que se toma como “o miserável que recebe ajuda” daquele que não precisa de ajuda, como serve para enrijecer o poder do estado a insuflar no povo a necessidade de ter um estado que lhe seja, sempre e cada vez mais, superior, temível e, na ajuda, divino, tal como Deus. Não foi a toa que Bakunin associou o estado ao significado de Deus.

III

Acredito que das ideias anárquicas, já que seu todo não consegue se manter, o que deve ser mantido, e o mais importante, é a recusa permanente do poder excessivo de Estado sobre decisões que comprometem a dignidade social do povo. Quanto ao Socialismo, nós sabemos, não podemos esbravejar tal nome com tanta alegria. Hitler já o fez suficientemente a ponto de não ser preciso nenhuma referência ingênua a esse termo. Se trata de um termo atualmente muito genérico, a ponto de perder o sentido. Também não falemos, com raras exceções, em Comunismo, não porque não tenha dado certo na União Soviética, como muitos argumentam (o que me parece um argumento de certa forma vazio, já que o capitalismo também não deu certo), mas porque sua proposta deve ser repensada. Proponho que possamos não apenas falar, e sim por em prática algo próprio do Comunismo, que é a crítica à alienação e, acrescente-se, que essa crítica não seja feita à alienação da massa, mas também e com urgência à própria alienação dos intelectuais e dos estudantes em relação às suas posturas atualmente doutrinadas.
A crítica contemporânea à alienação começa muito bem com uma crítica aos donos da mídia, que favorecem um estado, para além de corrupto, mafioso. Mas é preciso lembrar que esta crítica não deve ser feita com um elogio a uma outra mídia alternativa, embora ela precise existir, mas não isoladamente. O protesto deve estar seguido de uma negação a todo e qualquer tipo de hegemonia midiática sobre nossas cabeças frágeis e preguiçosas. Nada pior e mais deplorável do que repetir o termo “revolução”, os nomes “Marx” e “Che Guevara” sem saber o que tudo isso significa e fazê-lo tão só por uma atitude hagiográfica. Uma mídia que viesse substituir a Globo, mas que para se manter manipulasse um novo povo, provocaria um espírito tão fascista como o que a Globo injetou em seu público. Ocorreria o que de fato Orwell mostrou muito bem em seu romance “1984”, como falei acima.
Muitas pessoas estiveram e estão segurando seus cartazes coloridos e sorrindo nas ruas. Pareciam e parecem condizer com alguma mensagem subliminar que diz: “Sorria, a manifestação está sendo manipulada”. E a pesar disso, sorriem. E é perfeito para essas pessoas que esteja tudo odiável e que o ódio seja festejado, até que as eleições cheguem com suas novas promessas teatrais supostamente acolhedoras de um país de “risonhos lindos campos”, que em verdade, está abandonado por leis que deplora seu povo há muitos anos. Nada mudou, o que precisa mudar é tão somente a recepção do que não é nada novo. No dizer mais poético de Maiakovski, “... Não há nada de novo no rugir das tempestades”.
*Ana Monique Moura é doutoranda em Filosofia - UFPB. Autora do livro “Entre Kant, Filosofias e Arte”, 2012.

Leonardo Boff - A refundação do Brasil? O sentido oculto das manifestações de rua

A refundação do Brasil? O sentido oculto das manifestações de rua

21/07/2013
        
         O que o povo que estava na rua no mes de junho queria, em último término, de forma consciente ou inconsciente? Para responder me apoio em três citações inspiradoras.

A primeira é de Darcy Ribeiro no prefácio ao meu livro O caminhar da Igreja com os oprimidos((1998):”Nós brasileiros surgimos de um empreendimento colonial que não tinha nenhum propósito de fundar um povo. Queria tão-somente gerar lucros empresariais exportáveis com pródigo desgaste de gentes”.

A segunda é de Luiz Gonzaga de Souza Lima na mais recente e criativa interpretação do Brasil:”A refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada (São Carlos 2011):”Quando se chega ao fim, lá onde acabam os caminhos, é porque chegou a hora de inventar outros rumos; é hora de outra procura; é hora de o Brasil se Refundar; a Refundação é o caminho novo e, de todos os possíveis, é aquele que mais vale a pena, já que é próprio do ser humano não economizar sonhos e esperanças; o Brasil foi fundado como empresa. É hora de se refundar como sociedade”(contra-capa).

A terceira é do escritor francês  François-René de Chateaubriand (1768-1848):”Nada é mais forte do que uma ideia quando chegou o momento de sua realização”.

Minha impressão é que as multitudinárias manifestações de rua que se fizeram sem  siglas,sem cartazes dos movimentos e dos partidos conhecidos e sem carro de som, mas irrompendo espontaneamente, queriam dizer: estamos cansados do tipo de Brasil que temos e herdamos: corrupto, com democracia de baixa intensidade, que faz políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres, no qual as grandes maiorias não contam e pequenos grupos extremamente opulentos controlam o poder social e político; queremos outro Brasil que esteja         à altura da consciência que desenvolvemos como cidadãos e sobre a nossa importância para o mundo, com a biodiversidade de nossa natureza, com a criatividade de nossa cultura e como maior patrimônio que temos que é o nosso povo, misturado, alegre, sincrético, tolerante e místico.

Efetivamente, até hoje o Brasil foi e continua sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo politicamente libertados, continuamos sendo reconolizados, pois as potências centrais antes colonizadoras, nos querem manter ao que sempre nos condenaram: a ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities, grãos, carnes, minérios como o mostra em detalhe Luiz Gonzaga de Souza Lima e o reafirmou Darcy Ribeiro citado acima. Desta forma nos impedem de realizarmos nosso projeto de nação independente e aberta ao mundo.

Diz com fina sensibilidade social Souza Lima:”Ainda que nunca tenha existido na realidade, há um Brasil no imaginário e no sonho do povo brasileiro. O Brasil vivido dentro de cada um é uma produção cultural. A sociedade construíu um Brasil diferente do real histórico, o tal país do futuro, soberano, livre, justo, forte mas sobretudo alegre e feliz”(p.235). Nos movimentos de rua irrompeu este sonho exuberante de Brasil.

Caio Prado Júnior em sua A revolução brasileira (Brasiliense 1966) profeticamente escreveu: ”O Brasil se encontra num daqueles momentos em que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida do país de maneira consentânea com suas neessidades mais gerais e profundas e as espirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas”(p. 2). Chateaubriand confirma que esta idéia acima exposta madurou e chegou ao momento de sua realização. Não seria sentido básico dos reclamos dos que estavam, aos milhares, na rua? Querem um outro Brasil.

Sobre que bases se fará a Refundação do Brasil? Souza Lima diz que é sobre aquilo que de mais fecundo e original temos: a cultura brasileira.”É através de nossa cultura que o povo brasileiro passará a ver suas infinitas possibilidades históricas. É como se a cultura, impulsionada por um poderoso fluxo criativo, tivesse se constituído o suficente para escapar dos constrangimentos estruturais da dependência, da subordinação e dos limites acanhados da estrutura socioeconômica e política da empresa Brasil e do Estado que ela criou só para si.   A cultura brasileira então escapa da mediocridade da condição periférica e se propõe a si mesma com pari dignidade em relação a todas as culturas, apresentando ao mundo seus conteúdos e suas valências universais”(p.127).
Não há espaço aqui para detalhar esta tese original. Remeto o leitor/a a este livro que está na linha dos grandes intérpretes do Brasil a exemplo de  Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Hollanda, de Caio Prado Jr, de Celso Furtado e de outros. A maioria destes clássicos intérpretes, olharam para trás e tentaram mostrar como se construíu o Brasil que temos. Souza Lima olha para frente e tenta mostrar como podemos  refundar um Brasil na nova fase planetária, ecozóica, rumo ao que ele chama “uma sociedade biocentrada”.

Não serão estes milhares de manifestantes, os protagonistas antecipadores do ancestral e popular sonho brasileiro? Assim o queira Deus e o permita a história.


Leonardo Boff (*1938) doutorou-se em teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e depois professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Conta-se entre um dos iniciadores da teologia da libertação. É assessor de movimentos populares. Conhecido como professor e conferencista no pais e no estrangeiro nas áreas de teologia, filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Em 1985 foi condenado a um ano de silêncio obsequioso pelo ex-Santo Ofício, por suas teses no livro Igreja: carisma e poder (Record).
A partir dos anos 80  começou a aprofundar a questão ecológica como prolongamento da teologia da libertação, pois não somente se deve ouvir o grito do oprimido mas também o grito da Terra porque ambos devem ser libertados. Em razão deste compromisso participou da redação da Carta da Terra junto com M.Gorbachev, S.Rockfeller e outros. Escreveu vários livros e foi agraciado com vários prêmios.
Salientamos alguns títulos: Ecologia: Ecologia, Mundialização, Espiritualidade (Record), Civilização planetária (Sextante), A voz do arco-iris (Sextante), Saber cuidar (Vozes), Ética e ecoespiritualidade (Verus), Homem: satã ou anjo bom (Record), Evangelho do Cristo cósmico (Record); Do iceberg à Arca de Noé (Sextante); Opção Terra. A solução da Terra não cái do céu (Sextante); Proteger a Terra-cuidar a vida.Como evitar o fim do mundo (Record); Ecologia: grito da Terra, grito do pobre (Sextante) pelo qual recebeu o prêmio Sérgio Buarque de Holanda como o melhor ensaio social do ano de 1994 e em 1997 nos EUA foi considerado um dos três livros publicados naquele ano que mais favorecia o dialogo entre ciência e religião.
Junto com Mark Hathaway escreveu nos USA The Tao of Liberation. Exploring the Ecogoy of Transformation com Prefácio de Fritjof Capra, ganhando a medalha de ouro da instituição Nautilus para criatividade intelectual e o primeiro lugar do livro religioso do ano. Recebeu os títulos de dr.honoris causa em política pela Universidade de Turin em 1991, dr.honoris causa em teologia pela Universidade de Lund (Suécia) em 1992 e dr.honoris causa em teologia, ecumenismo, direitos humanos, ecologia e entendimento entre os povos pelas Faculdades EST de São Leopoldo em 2008 e dr.horis pela Cátedra del Água da Universidade de Rosário na Argentina em 2010.  Em 2008 pela Universidade de São Carlos em Guatemala e pela Universidade de Cuenca no Equador, recebeu o titulo de Professor Honorário. Foi assesssor da Presidência da Assembléia da ONU ao tempo da administração de Miguel d’Escoto Brockmann (2008-2009) e participa atualmente do grupo de reforma da ONU, especialmente quanto à Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade.




segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Homem: Animal Político

Fonte:
DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. 5ª ed. SP: Abril Cultural - Brasiliense, 1984. (p.12-15)


O homem é um animal que não vive sozinho, pois todo ser humano, desde que nasce até o momento em que morre, precisa da companhia de outros seres humanos. Foi observando isso que o filósofo grego Aristóteles escreveu que o homem é um animal político, pois é a própria natureza humana que exige a vida em sociedade.
É importante lembrar que não é só para atender as suas necessidades materiais que o ser humano precisa da companhia de seus semelhantes. Na realidade, o homem é o único animal que durante vários anos depois do nascimento não consegue obter sozinho seus alimentos. E no mundo moderno isso está cada vez mais difícil, mesmo para os adultos, uma vez que a sociedade humana se organizou de tal modo que a grande maioria passa a vida toda consumindo alimentos produzidos por outros.
Mas ao lado disso é preciso assinalar que mesmo o homem mais rico, que tenha dinheiro para comprar e armazenar em casa os alimentos suficientes para toda sua a vida, mesmo esse homem não consegue viver sozinho.
E não é só porque necessita dos serviços dos outros seres humanos para a manutenção da sua casa, o preparo dos alimentos e o cuidado de sua saúde, mas porque todo ser humano tem necessidades afetivas, psicológicas e espirituais, que só podem ser atendidas com a ajuda e a participação de outros seres humanos.
Assim, portanto, a vida em sociedade é uma necessidade da natureza humana, não se podendo falar do homem como indivíduo sem lembrar que esse indivíduo não vive sozinho, mas está sempre relacionado com outros indivíduos. Pode-se resumir essa idéia dizendo que o homem é um ser social por natureza e, por isso, tudo que ele tem ou realiza é tido ou realizado em sociedade.
Outro dado importante que deve ser ressaltado é que todos os seres humanos valem exatamente a mesma coisa. Pondo-se lado a lado dois recém-nascidos, sem revelar a condição social de cada um, ninguém poderá dizer que um vale mais que o outro. Por natureza todos nascem iguais e é a sociedade que estabelece diferenças, o que significa que as diferenças de valor entre seres humanos são artificiais, não naturais. Essa igualdade essencial de todos os seres humanos foi reconhecida e proclamada há milênios e deve ser buscada na organização social, dando-se absoluta igualdade de oportunidades a todos, desde o momento do nascimento. É contra a natureza permitir que uns nasçam ricos e socialmente bem situados enquanto outros nascem miseráveis e condenados a uma vida de sacrifícios e privações e inferioridade social.
Esse reconhecimento da igualdade essencial de todos não quer dizer que não existem diferenças individuais. Embora todos tenham o mesmo valor cada um tem sua individualidade, seu modo de ser, suas preferências, suas aptidões, seu julgamento próprio a respeito dos fatos da vida. O que a experiência comprova é que pessoas criadas no mesmo ambiente, recebendo o mesmo tratamento, sendo educadas da mesma forma, ainda assim apresentam diferenças de comportamento e muitas vezes reagem de maneiras diferentes perante o mesmo acontecimento.
Há, portanto, vários pontos fundamentais que devem ser levados em conta quando se tratar da organização da sociedade. Todos os seres humanos necessitam da vida social e todos valem essencialmente a mesma coisa. Mas cada um tem as características próprias de sua individualidade e por isso a vida em sociedade, embora necessária, acarreta sempre a possibilidade de conflitos.
Na verdade, a ocorrência de conflitos deve ser reconhecida como normal numa sociedade de homens livres. Mesmo que sejam asseguradas oportunidades exatamente iguais a todos, desde o ponto de partida, ainda assim os conflitos não desaparecerão, pois eles decorrem das diferenças de individualidades.
Há pessoas que por medo, comodismo ou por qualquer outra razão têm horror ao conflito e imaginam que seja possível uma sociedade livre de conflitos. Não é raro que tais pessoas acreditem que pelo uso da força todos os membros de uma sociedade poderão ser obrigados a aceitar os mesmos valores, a cumprir passivamente as ordens dos superiores e a se comportar de modo igual em todas as circunstâncias. Mas a história da humanidade e os fatos de todos os dias e de todos os lugares demonstram que onde existirem pessoas vivas existirão conflitos.
Em conclusão, o ser humano não é apenas um animal que vive, é também um animal que convive, ou seja, o ser humano sente a necessidade de viver mas ao mesmo tempo também a necessidade de viver junto com outros seres humanos. E como essa convivência cria sempre a possibilidade de conflitos é preciso encontrar uma forma de organização social que torne menos graves os conflitos e que solucione as divergências, de modo que fique assegurado o respeito à individualidade de cada um.
Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que todos os seres humanos são essencialmente iguais por natureza. Em consequência, não será justa uma sociedade em que apenas uma parte possa decidir sobre a organização social e tenha respeitada sua individualidade.

O ser humano como nó de relações totais

O ser humano como nó de relações totais

Leonardo Boff

Em 1845 Karl Marx escreveu suas famosas 11 teses sobre Feurbach, publicadas somente em 1888 por Engels. Na sexta tese Marx afirma algo verdadeiro mas reducionista:”A essência humana é o conjunto das relações sociais”. Efetivamente não se pode pensar a essência  humana fora das relações sociais. Mas ela é muito mais que isso pois resulta do conjunto de suas relações totais.
Descritivamente, sem querer definer a essência humana, ela emerge como um nó de relações voltadas para todas as direções: para baixo, para cima, para dentro e para fora. É como um rizoma, aquele bulbo com raízes em todas as direções. O ser humano se constrói na medida em que ativa este complexo de relações, não somente as sociais.
Em outros termos, o ser humano se caracteriza por surgir como  uma abertura ilimitada: para si mesmo, para o mundo, para o outro e para a totalidade. Sente em si uma pulsão infinita, embora encontre somente objetos finitos. Daí a sua permanente implenitude e insatisfação. Não se trata de um problema psicológico que um psicanalista ou um psiquiatra possa curar. É sua marca distintiva, ontologógica, e não um defeito.
Mas aceitando a indicação de Marx, boa parte da construção  do humano se realiza, efetivamente, na sociedade. Daí a importância de considerarmos qual seja a formação social que melhor cria as condições para ele poder desabrochar mais plenamente nas mais variadas relações.
Sem oferecer as devidas mediações, diria que a melhor formação social é a democracia: comunitária, social, representativa, participativa, debaixo para cima e que inclua a todos sem exceção. Na formulação de Boaventura de Souza Santos, a democracia deve ser ser sem fim. Temos a ver com um projeto aberto, sempre em construção que começa nas relações dentro da família, da escola, da comunidade, das associações, dos movimentos, das igrejas e culmina na organização do estado.
Como numa mesa, vejo quatro pernas que sustentam uma democracia mínima e verdadeira, como tanto acentuava em sua vida Herbert de Souza (o Betinho) e que juntos em conferências e debates, procurávamos difundir entre prefeitos e lideranças populares.
A primeiro perna reside na participação: o ser humano, inteligente e livre, não quer ser apenas beneficiário  de um processo mas ator e participante. Só assim se faz sujeito e cidadão. Esta participação deve vir de baixo para não excluir ninguém.
A segunda perna consiste na igualdade. Vivemos num mundo de desigualdades de toda ordem. Cada um é singular e diferente. Mas a participação crescente em tudo impede que a diferença se transforme em desigualdade e permite a igualdade crescer. É a igualdade no reconhecimento da dignidade de cada pessoa e no respeito a seus direitos que sustenta a justiça social. Junto com a igualdade vem a equidade: a proporção adequada que cada um recebe por sua colaboração na construção do todo social.
A terceira perna é a diferença. Ela é dada pela natureza. Cada ser, especialmente, o ser humano, homem e mulher, é diferente. Esta deve ser acolhida e respeitada como manifestação das potencialidades próprias das pessoas, dos grupos e das culturas. São as diferenças que nos revelam que podemos ser humanos de muitas formas, todas elas humanas e por isso merecedoras de respeito e de acolhida.
A quarta perna se dá na comunhão: o ser humano possui subjetividade, capacidade de comunicação com sua interioridade e com a subjetividade dos outros; é um  portador de valores como  solidariedade, compaixão, defesa dos mais vulneráveis e de diálogo com a natureza e com a divindade. Aqui aparece a espiritualidade como aquela dimensão da consciência que nos faz sentir parte de um Todo e como aquele conjunto de valores intangíveis que dão sentido à nossa vida pessoal e social e também a todo o universo.
Estas quatro pernas  vem sempre juntas e equilibram a mesa, vale dizer, sustentam uma democracia real. Ela nos educa a sermos co-autores da construção do bem comum; em nome dele aprendemos a limitar nossos desejos por amor à satisfação dos desejos coletivos.
Esta mesa de quatro pernas não existiria se não estivesse apoiada no chão e na terra. Assim a democracia não seria completa se não  incluisse a natureza que tudo possibilita. Ela fornece a base físico-química-ecológica que sustenta a vida e a cada um de nós.  Pelo fato de terem valor em si mesmos, independente do uso que fizermos deles, todos os seres são portadores de direitos. Merecem continuar a existir e a nós cabe respeitá-los eentendê-los como concidadãos. Serão incluidos numa democracia sem fim sócio-cósmica. Esparramdo em todas estas dimensões realiza-se o ser humano na história, num processo ilimitado e sem fim.

Leonardo Boff é autor de O destino do homem e do mundo, Vozes 2000.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Exploração e semifeudalidade na antiga usina Catende município brasileiro do estado de Pernambuco


 

A Massa Falida da Usina do Município de Catende (é um município brasileiro do estado de Pernambuco. Catende fica a 142 km de Recife, na Mesorregião da Mata Pernambucana), agora Cooperativa Harmonia, perpetua as desvantagens e mazelas já conhecidas há séculos no processo produtivo sucroalcooleiro, sob o manto de uma cooperativa articulada de maneira venal entre o governo e alguns privilegiados que compõem sua diretoria. A forma promíscua que se verifica nos atos da cooperativa, garante o seu sucesso em cima da fome e da desgraça do camponês, pseudo-cooperado. 

 

 José Júlio de Assis Trindade | Jornal A Nova Democracia

http://www.anovademocracia.com.br/58/11-usina.jpg
Pode-se assegurar que a cooperativa, na acepção do instituto jurídico, não existe. Conquanto, o termo "Harmonia" é risível e contraditório, em face da realidade do pensamento divergente que domina os associados insurgentes, que anseiam por melhores condições e fazem da discordância o móvel para a reação.

No município de Catende e adjacências são mais de 3 mil camponeses que não encontram condições de sair do sistema, ainda que padecendo a opressão dos dirigentes da Cooperativa. A urgência das necessidades diárias das famílias faz com que sucumbam à precariedade das condições de trabalho nos engenhos recebendo, quando recebem, um repasse financeiro insignificante, pois na maioria das quinzenas o recebimento é por meio de uma autorização no valor de R$ 105,00, para troca em suprimentos da cestas básicas em mercados e armazéns da região.

São esses ínfimos recursos das cestas somados com os recursos dos parcos rendimentos de aposentados e pensionistas do INSS, além do clientelista bolsa esmola, que movimentam o comércio e a economia local.

A pobreza grassa naquele sertão nordestino, remetendo o observador ao ciclo do açúcar do século XVII, que permanece vivo, enquanto os políticos locais, a Federação dos Trabalhadores na Agrigultura do Estado de Pernambuco-FETAPE, o MST, o PSB e administradores da Cooperativa se beneficiam de altos salários equiparados aos de executivos de grandes empresas de centros urbanos do Sudeste e do Sul do país.

A necessidade dos camponeses se insurgirem contra a situação opressora na qual se encontram, a fim de progredir em conquistas capazes de os retirar do absoluto sofrimento, esbarram na criminalização dos movimentos populares, ação coordenada e difundida pelo latifundiário. Na versão das classes reacionárias, qualquer discordância ou movimento popular dissonante, é antidemocrática e passível de penalização, ameaças e intimidações autoritárias.

Cativeiro

Os movimentos populares contrários aos métodos do associativismo da dita "cooperativa" são penalizados com a rescisão contratual e/ou a exclusão do sistema cooperativo, cumuladas com o despejo e a expulsão da residência que, no falido sistema, pertencem ao acervo da Cooperativa.

Os trabalhadores estão perdendo o medo de discordar e promovem ações destinadas à retomada da Cooperativa em suas mãos para que eles, os camponeses, no caso os donos do meio de produção, dirijam o próprio destino e assumam suas unidades de terras e façam a destinação que melhor lhes convierem. A monocultura já está exaurida, compromete todo o ecossistema, não transfere benefícios à coletividade, os preços praticados pela Cooperativa Usineira não atendem aos trabalhadores rurais contratados e são aviltantes para os trabalhadores subalternos cooperados, o preço é manipulado à revelia do mercado, para atendimento dos interesses pessoais da diretoria.

Nos meses de fevereiro e março de 2009 o pagamento aos trabalhadores foi em cestas básicas fornecidas de R$ 105,00, ou seja, não houve pagamento em dinheiro. A alegação da diretoria para pagamento em cestas foi o fato de que nesses meses os valores dos vencimentos seriam destinados ao pagamento dos financiamentos bancários, contraídos em nome dos pseudos-cooperados, conforme deliberado por uma suposta Assembléia.

A reclamação geral é que as decisões das assembléias são suspeitas porque não contam com a participação dos trabalhadores cooperados e os votos são manipulados pela diretoria.

A situação dos financiamentos é a seguinte: os trabalhadores são pressionados pelos diretores, capitães, cabos, entre outros representantes da Usina/Cooperativa, para assinarem um documento denominado DAP (Declaração de Aptidão do Pronaf) para sacarem no Banco do Brasil um valor de R$ 12.000,00, que são destinados aos cofres da Cooperativa Harmonia, sob o compromisso de que as parcelas mensais serão quitadas através dela, com o dinheiro do trabalhador cooperado.

É também inexplicável juridicamente a situação de liberação de créditos de financiamentos de programas da reforma agrária. Pásmem! Os empréstimos são retirados em nome do trabalhador pseudo-cooperado e repassado quase na totalidade para a diretoria da Cooperativa com o compromisso vazio de quitar as parcelas mensais com o fruto do trabalho de todos. As dívidas contraídas em nome dos trabalhadores chegam à cifra de R$ 60 milhões.

Semifeudalidade nua e crua

Os engenhos, como são conhecidos os módulos de plantações de cana, são dotados de algumas moradias para os trabalhadores, antes meeiros e agregados. Agora, depois do "assentamento" em face da desapropriação efetivada pelo INCRA, imaginava-se de propriedade dos trabalhadores assentados, o que é um ledo engano. Os camponeses permanecem sem a sua individualização e padecendo em barracões precários e, inclusive, sem latrina, ou seja, as necessidades fisiológicas são feitas literalmente no mato. Tal como no século XVII.

A nova face do latifúndio

A posse das terras permanece toda nas mãos da Cooperativa, que mantém empregados e prepostos em todo e qualquer engenho que faça parte da Usina. Os valores foram repassados para a Massa Falida da Usina Catende, estão depositados no Juízo da Falência na Vara Cível do Recife/PE, enquanto a legislação prevê assentamento em lotes ou glebas para cada um dos trabalhadores assentados. Assim, não existe a individualização dos módulos, como manda a lei. Os camponeses "assentados" permanecem "sem terras". Em evidente esbulho, quem efetivamente explora todos os engenhos é a Cooperativa com os seus mandatários e prepostos, com pulso firme e tirania, sob intimidações e ameaças de toda ordem, não admitem o plantio de qualquer cultura que não seja a cana-de-açúcar.

Pergunta-se: se o assentamento é legitimo e atende aos termos da lei, por que é negado  o direito do camponês ter seu corte e escolher a cultura que queira e lhe é imposto apenas o plantio da cana?

E tem mais: Não é possível conseguir um financiamento pessoal agrícola no Banco do Brasil S/A sem a anuência da Cooperativa Harmonia. A denúncia dos trabalhadores é de que existe a exigência da aprovação dos diretores da Usina/Cooperativa para a aquisição do empréstimo, através de formulário fornecido pelo gerente do banco.

O modelo maquiavelicamente festejado pela propaganda, como de gestão "socialista" implantado no município de Catende e região depois da falência da Usina Catende, está fadado ao fracasso posto que mantém suas balizas na urgência da fome das famílias e na disseminação da injustiça e da pobreza.

Nesse cenário abrem-se diversas janelas para os oportunistas de plantão com as políticas assistencialistas dos programas eleitoreiros das gerências Federal e Estadual, cada um com maior voracidade que o outro se arvora sobre as liberações de cestas básicas e de verbas dos "bolsas esmola" para o enriquecimento próprio. Certo é que os políticos e administradores da Usina desfilam na comunidade, em evidentes indícios exteriores de riqueza, com carros, motos, casas com banheiros luxuosos e roupas elegantes adquiridos com os repasses de toda ordem, enquanto produz num território desolador da monocultura dos canaviais, pobreza, desgraça, fome, miséria, doenças e infelicidade nos lares dos milhares de camponeses pobres e suas famílias.

A segunda viagem

No mês de agosto de 2009, tivemos a grata satisfação de visitar novamente o interior do estado de Pernambuco para participar, juntamente com Osmir Venuto, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção de Belo Horizonte, entre outras personalidades, inclusive vários estudantes da região e da cidade de Recife, no Seminário sobre a Criminalização dos Movimento Camponês, em uma escola pública de Catende.

Na oportunidade, além da participação no concorrido Seminário, tivemos o prazer de tomar parte em várias reuniões, inclusive de avaliação, na sede da Liga dos Camponeses Pobres do Nordeste, no município de Catende. Pudemos testemunhar o alto nível de organização dos trabalhadores. Osmir Venuto, durante a sua intervenção no encontro, fez a entrega aos trabalhadores rurais da "Estação Total", popularmente chamada de Teodolito, equipamento utilizado para medições de terra e levantamentos topográficos. 

O aparelho é uma verdadeira conquista do movimento camponês da região, pois com ele pretende-se multiplicar os cortes populares e acelerar os assentamentos.

Sempre com a presença dos comprometidos companheiros da Liga no Nordeste e lideranças dos camponeses, visitamos, também, o Assentamento José Ricardo, em Riachão, no município de Lagoa dos Gatos, onde participamos de Assembléia Popular e observamos plantações de variadas culturas, entre elas, milho, feijão, macaxeira, mandioca, banana, hortaliças, frutas e legumes, entre outros cultivos, que indicam fartura, em contraste com a monocultura da cana.

O envolvimento dos trabalhadores com a causa da conquista da terra para quem nela trabalha está em constante evolução pelo que se pode constatar, tanto pelas observações quanto pelas pesquisas entre camponeses e seus familiares. A Escola Popular é um exemplo concreto de conquista popular e da eficácia da mudança que se pretende.

O nível de satisfação com os resultados das ações da Liga pode ser medido pela maior participação dos camponeses e pela simpatia e aproximação de outras lideranças locais nos movimentos pela tomada da terra e pelo crescente combate ao modelo pseudo-cooperativo da Usina Catende e contra a exploração praticada nos vários engenhos.

A intensidade da luta tem transformado a região e incomodado, até, outros movimentos não legítimos e descomprometidos com a revolução agrária, apesar de se denominarem "organizações de luta pela terra". As intervenções da Liga dos Camponeses Pobres do Nordeste são intensificadas também no estado de Alagoas, onde o latifúndio com plantações de cana-de-açúcar parece alcançar todo o território do Estado.

Em Alagoas, passando pelo entorno de Maceió, avistando um imenso e horroroso lixão a céu aberto, seguimos para reunião com lideranças de trabalhadores e assembléia geral dos camponeses acampados à margem da rodovia, em uma região suburbana de Maceió, na luta por terreno para a construção de suas moradias.

Nesse acampamento da Liga, os trabalhadores travaram uma luta árdua pela conquista da terra e resistiram à ordem judicial de desocupação. Naquele dia os trabalhadores estavam de prontidão, aguardando o Oficial de Justiça e a força policial para o cumprimento da ordem. A decisão da assembléia foi a de resistir até quando tiverem forças, mostrando que os trabalhadores e trabalhadoras estão firmes e determinados na defesa de seus interesses.

De volta a Pernambuco, nos dirigimos ao município de Palmares e fizemos visita formal no presídio estadual ao camponês militante Fábio Paraíso da Luz, para avaliar as possibilidades jurídicas de requerer a progressão de pena para a liberdade.

Das ações efetivas da Liga dos Camponeses Pobres, e vistas com satisfação pelos nossos próprios olhos, pode-se contar que no Engenho Riachão ocorreu o chamado "Corte Popular", com a individualização e entrega das parcelas do antigo latifúndio para os agricultores e agricultoras que já semearam as suas safras, aliás já existe a comercialização da produção.

Existe o anseio de edificar uma vila urbanizada numa área da antiga fazenda, com sessenta e oito moradias no regime de mutirão.

Para tanto, foi apresentada a experiência de mutirão para a construção de moradias para trabalhadores de Belo Horizonte, Vespasiano e Nova Lima, em Minas Gerais, em parceria com a COHAB/MG.

Nossa ação de solidariedade rendeu bons frutos e decisões importantes. Da união entre o campo e a cidade deverão sair propostas que visem a ampliar as conquistas para ambos.

A apresentação de um dossiê sobre todas as irregularidades – não só da Usina como também das condições dos camponeses sem terra e dos trabalhadores sem moradia – às autoridades e também encontrar uma forma eficaz de fazer chegar à impressa nacional.

Concluindo, reafirmo a satisfação de encontrar firme a mobilização dos camponeses do Nordeste através da coordenação dos valorosos companheiros da Liga dos Camponeses Pobres, organizados para avançar e conquistar terra para plantar, encerrando o ciclo do arcaico modelo agrário brasileiro. 

_______________________
*Dr. José Júlio é advogado do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção de Belo Horizonte e Região.


Josué e as marcas profundas da semifeudalidade

Josué e as marcas profundas da semifeudalidade 

 José Ricardo Prieto

 

fonte:  
http://www.anovademocracia.com.br/no-39/160-josue-e-as-marcas-profundas-da-semifeudalidade
 
   

O Brasil é hoje um país de capitalismo burocrático de relativo desenvolvimento das forças produtivas, com regiões altamente industrializadas e outras, principalmente no campo, ainda muito atrasadas, com sobrevivência de relações de produção pré-capitalistas, a semifeudalidade. O monopólio da terra se instalou aqui desde o início da colonização, e muitos intelectuais, até hoje colonizados, continuam negando seu atraso e a urgente necessidade de eliminação do sistema semifeudal, burocrático e semicolonial para a verdadeira independência do país.
http://anovademocracia.com.br/39/28.jpg
O médico, geógrafo, diplomata e escritor Josué Apolônio de Castro — um dos maiores representantes do legítimo pensamento brasileiro — jamais se furtou à tarefa de combater o latifúndio. Seus escritos vão muito além das denúncias sobre a fome devoradora de homens no Brasil e no mundo. Sinal disso é que o primeiro ponto de seu Programa de dez pontos de combate à fome é justamente erradicar o latifúndio.

Josué escreveu, em 1964, o livro Sete palmos de terra e um caixão, sob encomenda de uma editora ianque, que queria publicar um ensaio sobre a situação do Nordeste brasileiro. O ensaio, que saiu também no Brasil, mostra o profundo entendimento que o Dr. Josué tinha da realidade brasileira, identificando a existência do latifúndio e as decorrentes relações semifeudais de trabalho como a principal contradição a ser resolvida no país.

Àquela altura, no início de 1964, o golpe contra-revolucionário iminente já se conformava. Josué iria sofrer as consequências, tendo seus direitos políticos cassados ainda em 1964, com o Ato Institucional nº 1. A justificativa era que Josué defendia ardentemente as reformas de base, já na época um clamor nacional, e também prometidas pelo governo João Goulart — o último estadista brasileiro na Presidência da República.

Josué foi presidente da FAO (Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas), isso num tempo em que na ONU se refletia a correlação de forças entre o capitalismo e o socialismo, onde a delegação soviética ainda conseguia dar alguma característica progressista àquela entidade imperialista.
Os males de origem
Josué começa por levantar a discussão historiográfica sobre a implantação ou não do feudalismo no Brasil, especialmente no Nordeste. Contrariando a historiografia burguesa, que advoga a instalação no Brasil de um regime mercantilista, capitalista já, nosso geógrafo, se utilizando do único critério válido para a denominação de um sistema econômico — o do modo de produção dos bens materiais necessários à existência de uma sociedade dada — estabelece que aqui, não só foi instalado pela metrópole o feudalismo como, por suas características e pelas pessoas envolvidas na empresa, para cá foi trazido o que havia de mais atrasado em Portugal.

Tal batalha teórica, que se produziu durante boa parte do século XX, teve em Nelsom Werneck Sodré um dos mais notáveis soldados partidários da existência da semifeudalidade no Brasil. Os teóricos ligados ao Partido Comunista do Brasil P.C.B. sempre estiveram na vanguarda dessa teoria, apesar de não tirar dela correta síntese que armasse o movimento camponês com uma linha revolucionária. Alberto Passos Guimarães, autor de Quatro séculos de latifúndio, exerceu uma importante influência sobre Josué de Castro na elaboração de Sete palmos de terra e um caixão.
Semifeudalidade e revolução
A batalha teórica não é vã, porque, como diz Josué de Castro, a distância entre a definição ou não da existência da semifeudalidade é a distância entre a revolução ou uma simples reforma.
O monopólio feudal e colonial é a forma particular, específica, por que assumiu no Brasil a propriedade do principal e mais importante dos meios de produção na agricultura, isto é, a propriedade da terra. O fato de ser a terra o meio de produção fundamental na agricultura indica um estágio inferior da produção agrícola, peculiar às condições históricas pré-capitalistas. À medida que o capitalismo penetra na agricultura, vão se desenvolvendo e aumentando sua produção no conjunto os demais meios de produção, isto é, os meios mecânicos de trabalho, as máquinas ou os instrumentos de produção, as construções, os elementos técnicos e científicos, etc. De tal maneira que, numa agricultura plenamente capitalista, esses passam a ser (e não mais a terra) os principais meios de produção. Quanto à agricultura brasileira, é fato comprovado pelos dados estatísticos que continua a caber à terra aquele papel predominante no conjunto dos meios de produção. Por isso, na situação objetiva de nossa agricultura, dominar a terra, açambarcá-la, monopolizá-la, significa ter, praticamente, o domínio absoluto da totalidade dos meios de produção agrícola.
(página 117)
O monopólio da terra, aqui instalado nas mãos da nobreza inútil e empobrecida do reino de Portugal, se mantém até hoje, igualmente nas mãos da classe que só perde em parasitismo no Brasil para a grande burguesia nativa (burocrática e compradora).

É fato que uma metrópole não poderia exportar para a colônia um regime econômico mais avançado do que o dominante em seu próprio território de origem. Se é verdade que o feudalismo português já não era o clássico, tendo evoluído da economia natural para a mercantil, o modo de produção continuava tendo como principal meio de produção a terra e as relações de produção continuavam sendo as que submetiam o servo ao senhor feudal.
Semifeudal com escravos
Transplantado para o Brasil, esse regime encontrou, no início, quase total falta de servos, recorrendo então à escravidão, primeiro com o apresamento dos índios do litoral— em seguida, os do interior— , e depois o tráfico de povos africanos, que foram a principal força de trabalho no Brasil até 1888.

Porém, o aumento da população em volta dos engenhos — principal unidade produtiva durante séculos — forçou o aparecimento de novo tipo de trabalhadores, aqueles que cultivavam ou criavam gado nas terras dos donatários, sesmeiros e outros tipos de detentores de terras. A abolição da escravatura elevou os escravos à qualidade de servos, a exemplo da passagem da Antiguidade à Idade Média, uma vez que muitos negros permaneceram trabalhando nas fazendas como homens livres, mas sem perceberem salário algum.

Os pagamentos das rendas da terra quase nunca eram feitos em moeda sonante, em que pese a relativamente baixa circulação monetária na colônia. O pagamento que se impunha era, então, "à moda antiga", ou seja, em espécie ou trabalho.

Mesmo nos engenhos, onde predominava a força de trabalho escrava, pululavam os camponeses que abasteciam de produtos alimentícios principalmente as casas grandes e as senzalas, de tal modo absorvidos estavam os senhores de engenho na produção do açúcar, praticamente todo destinado aos mercados da Europa.
Lavradores e rendeiros, nos engenhos, estão longe ainda de representar o desenvolvimento ulterior da renda agrária, sua evolução para renda dinheiro, ou sua aproximação da renda tipicamente capitalista. As contribuições que lhes impunham os senhores não passavam de tributos feudais, de formas pré-capitalistas de renda.
(página 144)
O foro, o cambão, a meação, as rendas variadas, são sustentadas até hoje nos latifúndios do Brasil e, na essência, não diferem nada da talha, da corvéia e das banalidades aplicadas durante a Idade Média, bem como o "direito de pernada", aplicado tanto cá como na Europa, onde se chamava também jus primae noctis; tudo com a benção da santa madre igreja, é claro, que também levava e continua levando a sua parte, que o dízimo e a venda de indulgências continuam a vigorar. A única falta é o feudal poder cartorial, que passou para mãos "laicas"1.

Resulta que a semifeudalidade é a principal causa da ocorrência de dois fenômenos bastante emblemáticos do Nordeste brasileiro: o cangaceirismo e o messianismo.
Os episódios de Canudos, Juazeiro, Caldeirão, Pedra Bonita e várias outras rebeliões locais, intempestivas e esporádicas, não são, como muitos pensam, fenômenos extra-históricos, mas expressão bem significativa da história do colonialismo feudal. O cangaceirismo, que grassou como um terror endêmico na região, e essas epidemias de delírio místico e de ódio destrutivo não passam de expressões desordenadas e descoordenadas do sentimento latente de revolta de populações encurraladas como um gado dentro de um cercado sem pasto: o regime latifundiário feudal. Estas manifestações de revolta, que explodem no fanatismo e no banditismo, são tentativas ingênuas de derrubar a cerca, de partir o círculo de ferro da miséria em que os indivíduos se sentem encarcerados.
(144-145)
Acossados pela extorsão latifundiária e pela miséria, influenciados pela instituição mais medieval de todas, a Igreja, as populações não só do Nordeste, na sua luta espontânea e indomável contra o latifúndio, sempre foram taxados de bandidos ou de fanáticos.
A formação do povo
A questão de saber em qual estágio da formação nacional nos encontramos se impõe, hoje mais que nunca, quando se trata de estabelecer o programa de independência nacional. A questão do poder para o povo se revela essencial, mas de que povo falamos?
Desta maneira, nunca se formou nessa área, pela sedimentação sociológica, a entidade povo, como expressão das aspirações e reivindicações de várias classes ou grupos sociais, e como força viva de orientação política do processo nacional. E foi essa ausência do povo, como entidade sociológica organicamente configurada, que explica a quase que ausência da revolução, no sentido clássico do termo, que deveria ter constituído o remate natural do episódio colonial.
(144)
Significa que os interesses das classes oprimidas, até então, não se identificavam ao ponto de se tornarem uma cidadela inexpugnável de necessidades prementes — ainda que no plano subjetivo faltasse o devido amadurecimento das suas lutas e das concepções científicas. Ficou ausente a fusão do movimento dessas classes com o ideal revolucionário e, principalmente, ainda não existia uma classe capaz de deter a hegemonia desse processo, situação que perdurou até o início do século XX no Brasil.

Com o advento das revoluções socialistas no mundo, encerra-se o ciclo das revoluções burguesas. Nos países dominados (colônias e semicolônias), a revolução, de caráter democrático, passou à condição de realizar-se unicamente quando organizada por um conjunto de classes revolucionárias, entre elas as mais avançadas, o proletariado (classe dirigente) e o campesinato (força motriz). Essa frente pressupõe as classes que constituem o povo que Josué dizia faltar, como força viva de orientação política do processo nacional.

Escritas em 1964, as palavras de Josué de Castro soam ainda muito atuais. Ele aprofunda a questão do semifeudalismo e esbarra na grande burguesia (burocrática e compradora) e no imperialismo, sócios naturais do latifúndio, sem contudo omitir esse encontro no quadro que demarca dois campos: o revolucionário e o contra-revolucionário:
E os planos de emancipação do continente permanecem letra morta, porque o interesse privado se sobrepõe ao interesse público e o interesse estrangeiro domina o interesse nacional. As vinte repúblicas [refere-se às repúblicas da América Latina] poderão gozar da independência política desde que dela se envaideçam e não façam uso. Dependem quase todas de um só comprador-fornecedor. Vendem a preços baixos e compram caro. Dependem dos monopólios que, como tumores cancerosos, proliferando, as asfixiam sob a exuberância de sua vida anárquica. Sobre a estrutura feudal se sobrepôs uma estrutura capitalista. Os dirigentes das duas ordens contraíram uma frutuosa aliança. Visando a manutenção e ampliação dos privilégios, os feudais cederam ao capitalismo estrangeiro o direito de cortar a carne à vontade, de espremer o suco e de empobrecer irremediavelmente estas nações. Tal situação semicolonial desperta um amargo ressentimento e prepara um caldo de cultura de grandes desordens políticas.
(175)
Portanto, urge, para as semicolônias, destruir o regime do capitalismo burocrático, que se estabeleceu no Brasil com as burguesias dos países imperialistas se aliando às atrasadas classes dominantes nativas, principalmente os latifundiários e a grande burguesia vende-pátria. Nessa base se construiu a atual situação de desenvolvimento capitalista de um lado e o atraso semifeudal de outro.


1. Foro - Aluguel da terra pago em produção ao latifundiário.

Cambão - Dias em que o camponês é obrigado a trabalhar nas terras cultivadas pelo latifundiário, em geral 99 dias por ano.

Meação - forma de contrato em que o camponês é obrigado a entregar a metade da produção ao latifundiário. Compreende também o "contrato" que obriga a entrega de proporções maiores, como dois terços (terça) e três quartos (quarta).

Rendas variadas - Pagamento pelo uso de equipamentos e edificações de posse do latifundiário, como tratores, caminhões, carroças, armazéns, silos, etc. Ainda hoje, nos centros urbanos das regiões camponesas, os proprietários das máquinas que beneficiam grãos não cobram o serviço em dinheiro, mas em porcentagem do grão beneficiado.

Talha - No feudalismo, obrigação de o servo dar, a seu senhor, uma parte do que produzia, em geral, a metade.

Corvéia - No feudalismo, obrigação que o servo tinha de trabalhar alguns dias por semana nas terras reservadas ao senhor.

Banalidades - No feudalismo, pagamentos feitos pelos servos pelo uso da destilaria, celeiros, moinho, animais, etc.

Direito de pernada (jus primae noctis - direito da primeira noite) - "direito" segundo o qual o senhor feudal mantinha relações sexuais com a noiva do vassalo ou servo na noite do casamento. Na atualidade, inúmeros são os relatos de "coronéis", principalmente do Nordeste, que levam para a cama as filhas virgens dos camponeses pobres.

Venda de indulgências - ato praticado pela Igreja Católica para a remissão total ou parcial dos pecados. Assim, o fiel ficava tranquilo quanto à conquista do reino dos céus e a Igreja com a bolsa cheia no reino da terra.

Forças produtivas - conjunto dos meios de produção e dos homens que os aplicam, sendo este a principal força produtiva, porque é ele que desenvolve os meios de produção, bem como aperfeiçoa as técnicas e a ciência. São elas: o homem, os instrumentos de trabalho, a técnica e a ciência, hábitos de trabalho, os ofícios e tradições de trabalho etc.

Meio de produção - conjunto dos meios materiais e grandes instrumentos de trabalho que os homens utilizam para produzir bens materiais (terra, edifícios, máquinas, fábricas etc).

Relações de produção - relações que os homens contraem entre si no processo social de produção. Os homens produzem bens materiais em comum. No processo de produção, entram em determinadas relações independentes da sua vontade. O caráter das relações de produção é condicionado pela relação dos homens com os meios de produção. As relações de produção historicamente determinantes em um país vão constituir o modo de produção.

Modo de produção - Modo historicamente determinado de obtenção dos bens materiais necessários aos homens para a sua produção e o seu consumo pessoal. É a unidade dialética e o resultado da interação das forças produtivas e das relações de produção. O modo de produção constitui a base do regime social e determina o seu caráter. Ou seja, tal modo de produção, tal sociedade: modo de produção comunista (comunismo primitivo); modo de produção escravista; modo de produção feudal; modo de produção capitalista; modo de produção socialista (primeira fase do socialismo no mundo).

“Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e pelo bom senso”. Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano)

  Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano) “Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e p...