quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A criação do mito do Brasil Holandês - Gabriel Passetti / USP

A criação do mito do Brasil Holandês
Gabriel Passetti  História/USP
passetti@palmeirasonline.com - download arquivo
Ao pensar escrever este trabalho para Klepsidra, levei em consideração a curiosidade que passa a muitos de nós sobre o período em que parte do Brasil foi governada pelos holandeses (1630 a 1645, em Pernambuco principalmente).
As principais leituras basearam-se em "Tempo dos flamengos", "História geral da civilização brasileira", "Guerras do Brasil (1504-1654)" e "História da vida privada no Brasil".
Talvez a leitura tenha ficado um pouco "viciada" nos escritos de Mello Neto ("Tempo dos flamengos"), mas isto ocorreu principalmente pela dificuldade em se encontrar nas bibliotecas outros livros sobre o tema (como obras "Olinda restaurada" e "Os holandeses no Brasil" que estão extraviados ou sempre locados).
 
 
A Guerra se baseou muito nos fortes.
Vista atual do Forte Orange, na Ilha de Itamaracá
A conquista
A invasão holandesa ao Nordeste Brasileiro se deu entre os anos de 1630 e 1654, com dois grandes períodos de guerras: 1630-1635 e 1645-1654 quando os portugueses finalmente reconquistaram o centro econômico de sua principal colônia.
O senso comum e os discursos dos guias turísticos mostram, mesmo que indiretamente, a idéia de que o Brasil poderia ser bem diferente se a colonização holandesa tivesse funcionado. Não existiria um "Brasil" coeso, mas com certeza este "Brasil holandês" teria algumas bases sociais e econômicas bem diferentes do nosso "Brasil português".
A visão deste "Brasil melhor" que é tanto difundida, é influenciada pelo fato do governador da colônia holandesa ter sido o Conde Maurício de Nassau, cuja popularidade era ampla entre todas as culturas.
A tomada do Nordeste Brasileiro pela WIC (Companhia Holandesa das Índias Ocidentais) se deu após diversos anos de estudos, onde grande parte da comunidade judaica local colaborou com os invasores, devido às perseguições sofridas junto aos católicos. Também foram utilizados alguns espiões nos barcos que para cá vieram, que registraram a geografia do local e levaram índios à Europa. Havia dois interesses fortemente ligados na decisão holandesa de dominar as colônias sul-americanas dos portugeses.
O primeiro deles era o fato da Holanda ter se tornado inimiga de Portugal após este ser vassalo da Espanha, o outro o financeiro propriamente falando, visto que a produção e o comércio de açúcar eram extremamente lucrativos e os holandeses já dominavam as transações comerciais deste produto.
Após a morte do infante D. Henrique em 1580, houve uma grave crise na linha de sucessão ao trono português, visto que o jovem Rei ainda não havia deixado herdeiros. Não me atarei muito às discussões da corrida de sucessão de Portugal, visto que este não é o tema deste trabalho. Após muita discussão internacional e uma tentativa de golpe, finalmente o Rei de Espanha, Felipe II (Felipe I de Portugal) assume o trono fazendo com que Portugal se torne inimigo consequentemente da Holanda, por esta ser inimiga da Espanha.
A Holanda tinha diversos investimentos no Brasil com empréstimos a senhores de engenho e intensas ligações comerciais com a venda de açúcar e de pau-brasil. Em 1621 foi criada a Companhia das Índias Ocidentais, de capital aberto na Bolsa de Valores de Amsterdã, e nos mesmos moldes da já importante Companhia das Índias Orientais. Quem presidia a WIC (sigla em flamengo) era o Conselho dos XIX.
Primeiramente tentou-se conquistar a cidade de Salvador, capital administrativa da colônia portuguesa, porém com a derrota optou-se por Olinda e Recife, centros econômicos. Em 1630 uma frota composta de 56 navios, com 3780 tripulantes e 3500 soldados chega a Olinda. Rapidamente dominaram esta vila e pouco tempo depois a de Recife.
 
Matias de Albuquerque, governador português de Pernambuco à época, levantou acampamento em Arraial de Bom Jesus com a intenção de organizar a defesa. Tal centro de defesa foi importantíssimo quando em 1631 chega uma frota hispano-portuguesa de 23 navios para o contra-ataque. Em parte a tal contra-ofensiva foi triunfante, visto que os navios desembarcaram em Alagoas e seus efetivos conseguiram forçar os holandeses a abandonar e incendiar Olinda para defenderem somente Recife. Porém, a política expansionista holandesa não seria freada ai, visto que no mesmo ano estes partiriam para tentar, sem sucesso, a conquista da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Tal conquista, porém, já estaria concretizada em 1635, quando o domínio holandês no Brasil, ou o "Brasil Holandês" já chega até o Rio Grande do Norte. Até junho do mesmo ano, excetuavam-se somente o Arraial de Bom Jeses e o Forte de Nazaré nesta conquista, porém neste mês caem estes dois últimos focos de resistência.
Vista de uma das principais igrejas de Olinda,
com arquitetura tradicional portuguesa colonial
A chegada de Maurício de Nassau
1637 pode ser considerado um marco na história da colonização holandesa no Brasil, pois é neste ano que chega seu mais famoso e importante administrador, o Conde Maurício de Nassau (João Maurício de Nassau-Siegen).
Nassau marcou época como governador tentando realizar uma política conciliatória entre holandeses e portugueses, além de oferecendo liberdade restrita de credo para católicos e judeus. Entretanto, isto não impossibilitou uma crescente onda anti-semita baseada na ideologia religiosa e no poder social e econômico que os judeus adquiriram com o tempo.
A política do Conde também trouxe diversos avanços culturais e estruturais ao Recife. A ciência foi incentivada, criou-se uma política de higiene e sanitarismo público. Foram construídos jardim botânico, zoológico, museu artístico e um plano urbanístico para a Cidade Maurícia, baseado no urbanismo holandês.
O governador combateu a oligarquia local dos senhores de engenho, incentivando o crescimento de uma nova classe dominante, a burguesia. Deste modo, foram combatidas a monocultura e a fome. Todo o interior, entretanto, ainda era tomado pelos portugueses que tinham o conhecimento da produção da cana-de-açúcar e consequentemente a economia em suas mãos, enquanto o poder institucionalizado estava nas mãos dos holandeses.
Com a conquista assegurada, o governo holandês ofereceu aos imigrantes e aos senhores de engenho portugueses que não fugiram para a Bahia diversos incentivos fiscais e empréstimos a prazo para a reconstrução dos engenhos arrasados pela guerra, com gado morto e escravos fugidos.
 

O movimento de reconquista português
Quando D. João VI fez a revolução e acabou com a União Ibérica em 1640, Portugal passa a ser aliado da Holanda contra a Espanha, o que altera profundamente a situação no Nordeste Brasileiro. Enquanto o armistício ainda não é assinado, Nassau parte para a conquista de novos territórios como São Paulo de Luanda em Angola, o Golfo da Guiné e o Maranhão.
 
D. Fernando de Mascarenhas se torna o responsável pela reconquista, vindo à América com 86 embarcações e 11.000 soldados já em 1640 mas somente 1000 homens conseguiram desembarcar na Ponta dos Touros. Oficialmente o Rei português é contra este movimento, mas secretamente o apoia e financia. A guerra foi se prolongando e ficando sem perspectivas de fim fácil. Somente em 1644, mesmo ano da saída de Nassau do governo, os portugueses conseguem reconquistar o Maranhão.
No ano seguinte, eclodiria a primeira grande insurreirção, que foi poucos dias antes denunciada por uma carta anônima ao governo holandês. Apesar disso, os portugueses conseguem reconquistar Alagoas e Sergipe, fundando o Arraial Novo de Bom Jesus, em homenagem ao primeiro foco de resistência destruído anos antes.
Área máxima do império colonial holandês via WIC no Século
XVII. Sob a sigla VOC estão os domínios da Cia. das Índias
Orientais, não representados em sua totalidade neste mapa
Mapa do auge da conquista holandesa no Nordeste Brasileiro, tendo
o Rio São Francisco como fronteira Sul e o Maranhão como fronteira Norte
Com o desenrolar dos combates, os holandeses passam a ficar cada vez mais na defensiva, centralizando seus esforços em Recife, Ilha de Itamaracá, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Fernando de Noronha. É neste movimento que aparecem as famosas batalhas dos Guararapes, marcos da guerra de reconquista, ocorridas em 19 de abril de 1648 e em 19 de fevereiro de 1649. As intenções portuguesas eram de fechar uma passagem para o Arraial Novo de Bom Jesus e para o Cabo de Santos Agostinho. Nestes importantes confrontos, lutaram 4500 holandeses contra somente 2200 portugueses.
Apesar da enorme desvantagem quantitativa do lado português, na primeira batalha morreram 500 holandeses, tendo os outros fugido para Recife.
No ano seguinte, ocorre o segundo embate, 3510 homens e 6 canhões holandeses enfrentam 2600 motivados portugueses. Mais uma vez a vitória é arrasadora para o lado lusitano, que exterminou a vida de 1000 flamengos.
 
Representação romântica da batalha dos
Guararapes entre portugueses e holandeses
Diante de tais perdas, a WIC se torna cada vez mais fraca, estando já praticamente falida e com levando diversas críticas na metrópole. Passam assim a uma tática suicida politicamente, cobrando desesperadamente os empréstimos feitos aos senhores de engenho que irritados passam a apoiar mais ainda a causa portuguesa.
As batalhas continuarão até 23 de janeiro de 1654, quando os holandeses cercados e reunidos no forte das Cinco Pontas se rendem finalmente às tropas portuguesas com a garantia de que poderão voltar a salvo para a metrópole. Os judeus, que tanto ajudaram aos holandeses, abandonaram Recife e se dirigiram a outras colônias holandesas, como o Suriname, a Jamaica, Nova Amesterdã (atual Nova York), além da própria Holanda.
Um tratado de paz, porém, seria assinado somente sete anos depois em Haia após por duas vezes a armada holandesa ter surgido no Rio Tejo em Portugal para forçar este país a indenizar os flamengos pela tomada de seus territórios na América do Sul. Fica acertado que os holandeses desistiriam oficialmente destas terras ao serem indenizados em 4 milhões de cruzados, restituição de sua artilharia e favorecimentos comerciais. Foram realizados pagamento em parcelas anuais de 250.000, tendo o Brasil contribuído ao final com 1.920.000.
 

Políticas urbanas
Os holandeses propriamente ditos estiveram durante toda a ocupação (24 anos) encurralados em uma pequena faixa de terra que acompanhava o litoral e onde ficavam as suas cidades. A política colonizadora holandesa baseou-se nas cidades, diferentemente da política basicamente agrária portuguesa.
Isto acabou gerando diversos problemas de abastecimento e de vivência nas cidades, onde por diversos momentos houve longos períodos de fome e epidemias. Outro grande problema era o habitacional, afinal havia pouco espaço em Recife e as políticas habitacionais na Ilha de Antonio Vaz não surtiram efeito até a criação de uma ponte juntando-a ao núcleo urbano do Recife. O problema habitacional atingia grandes camadas da população, a cidade do Recife foi tomada por sobrados de dois ou três andares, cortiços, quartos coletivos para os funcionários da WIC. Foram realizados também aterros em mangues para ampliação da área habitável. Com estes problemas, os aluguéis atingiam preços exorbitantes na cidade.
Já Olinda, antiga capital portuguesa e centro político da região, foi primeiramente utilizada pelos invasores. No entanto, devido a sua difícil defesa, logo foi abandonada e incendiada. Depois disso, os portugueses passaram a reconstrui-la e utilizá-la como centro de resistência. Porém, logo esta reconstrução foi coibida por Nassau, que queria a ocupação da Ilha de Antonio Vaz.
O governante planejou e incentivou a ocupação da chamada Cidade Maurícia, totalmente planejada nos moldes holandeses. Pretendia-se com sua construção aliviar a lotação habitacional que havia no Recife. Em Maurícia, havia um melhor sistema de higiene e saneamento público, com o impedimento da livre circulação de animais e luta pela limpeza das vias públicas, por exemplo.
A construção civil foi largamente introduzida e incentivada pelo governo holandês. Construiu-se, além da Cidade Maurícia, mercados, fortalezas, diques e pontes, entre outros. Estes marcos influenciaram em muito a visão que se têm até hoje do governo holandês no Brasil: um poder formado por grandes construtores de benfeitorias públicas. O método de construção holandês era diferente do adotado pelos portugueses. Como exemplo a este argumento, pode-se citar a configuração das casas com a utilização de tijolos ou madeira ao modo nórdico.
A Câmara dos Escabinos era uma entidade responsável pelo controle "civil" da vida urbana. Nela estavam cinco holandeses e quatro "dos da terra", eleitos por um eleitorado selecionado. Os colonos que para cá viam muitas vezes eram pobres demais para empregar negócios, e assim necessitavam sempre de empréstimos por parte de particulares ou da WIC, o que acabou gerando extremo endividamento da população. Mello Neto descreve a vida social e moral na colônia holandesa como negra em muitos momentos, o que assustava os protestantes calvinistas, principalmente com relação às prostitutas.
 

Políticas Agrárias
A ocupação do Brasil, apesar do seu teor urbano-burguês, se deu principalmente para a exploração e comércio das plantações de cana-de-açúcar. Os holandeses tentaram de início se tornar senhores de engenho, porém, sem o devido conhecimento da cultura, acabaram com o tempo cedendo seu lugar aos antigos senhores portugueses. Muitos destes holandeses que pretenderam se tornar senhores eram altos funcionários da WIC, que além de não realizarem suas tarefas também não eram senhores em tempo integral. Assim, não eram nem uma coisa nem a outra. Outro tipo de comércio que também chamou a atenção dos holandeses foi o de pau-brasil, que logo se tornou monopólio da WIC.
Os portugueses e os brasileiros já detinham o conhecimento para o cultivo da cana, passando assim a dominar a agricultura e por conseqüência a economia, enquanto os holandeses dominavam a política. Mas a economia açucareira do governo invasor foi dificultada, além das pestes, secas e enchentes, pelos incêndios e saques patrocinados e promovidos pelo governo baiano de origem portuguesa.
A política de Nassau para combater a fome criou diversos atritos do governo com os senhores, já que se exigiu a plantação de mandioca para consumo local, e os senhores, que não aceitavam a imposição muitas vezes passavam por vexames em suas próprias terras obrigados pelas forças holandesas a iniciar o novo cultivo. Estes fatos foram decisivos para a decisão dos senhores de iniciarem uma rebelião em 1645, criada e sustentada pela elite agrária de origem portuguesa.
A revolta chefiada pelos senhores conseguiu apoio dos governos inglês e francês, além dos portugueses baianos e, secretamente, do governo português pós-restauração de 1640. Confiando nos acordos com os portugueses, os holandeses diminuíram o potencial defensivo do Brasil.
O Nordeste brasileiro durante o período nunca foi auto-suficiente em alimentos, apesar das tentativas governamentais de incentivo à plantação de mandioca e de utilização de Alagoas como centro produtor de gêneros alimentícios de primeira necessidade e de gado.

A questão religiosa
Os holandeses nunca afirmaram abertamente ser conta os portugueses, mas somente contra os católicos. Apenas escondia-se a perseguição, pois a religião predominante dos portugueses era a católica. Os holandeses sabiam do poder das ordens religiosas, e assim as expulsaram, principalmente a Jesuíta. Apesar disso, Nassau permitiu nas cidades a realização de missas "a portas fechadas". Entretanto, no interior, com o enorme poder dos portugueses senhores de engenho, a política religiosa era menos restritiva.
A colonização após a invasão não se deu somente com a vinda de holandeses. Era incentivada a vinda de populações principalmente protestantes, como ingleses, franceses e escoceses. Mesmo assim, a vinda de judeus para a região foi grande também. É interessante observar como houve uma espécie de "migração" entre religiões devido aos casamentos. Protestantes, católicos e judeus casavam-se entre si e muitas vezes um dos elementos do casal mudou de religião apenas para acompanhar o outro.

Os judeus
A comunidade judaica no Recife foi muito grande e poderosa, fortemente ligada aos judeus de Amsterdã. Depois de certo tempo, os judeus passaram a dominar grande parte da economia burguesa devido ao fato de se expressarem em ambos os idiomas e fazer empréstimos e compras à vista de escravos e venda a prazo.
A cultura judaica na América teve início no Recife holandês, com a vinda de diversos líderes religiosos e culturais. Apesar da perseguição dos protestantes, que apenas continuaram com a perseguição portuguesa, os judeus tinham aqui mais liberdade religiosa do que na desfrutada na Europa, e até chegaram a abrir uma sinagoga - a primeira de toda a América. É interessante observar a rivalidade que foi criada entre judeus holandeses, askhenazim e os judeus ibéricos, sefardins.
Após determinado tempo, começou um movimento anti-semita no Recife, cujos motivos eram o poder econômico e a facilidade para a aclimatação dos judeus, diferente dos holandeses.
 

Os europeus de outras nacionalidades
Nunca houve uma total harmonia entre portugueses e holandeses. As relações sempre foram baseadas na desconfiança. Logo o governo percebeu que o principal poder dos portugueses estava nos seus senhores de engenho, e então tratou de retirar o poder destes com a Câmara dos Escabinos e com vexames em suas terras, transferindo o poder à classe média urbana.
As outras nacionalidades que vieram para o Pernambuco Holandês foram todas protestantes - ingleses, franceses e escoceses. Entretanto, durante a guerra de reconquista de 1645-1654 grande parte destes europeus não-holandeses passaram para as frentes portuguesas.
 

Os índios
Uma das bases da política colonizadora holandesa foi as alianças com os índios, que eram anti-portugueses devido à escravidão indígena. Assim, estas tribos se tornaram guardas das fronteiras do território holandês, ao norte, sul e oeste. Além disso, tais índios também foram informantes das riquezas minerais e da geografia da região dominada.
Antes mesmo da invasão, a Companhia das Índias Orientais definiu que todo índio em terras conquistadas teria direito à liberdade. Porém, chegou a haver uma breve escravização, nas áreas mais distantes, de índios "inimigos". Isto logo acabou, pois gerou desconfiança nos índios aliados. Por outro lado, apesar de livres, os índios eram extremamente explorados, maltratados e mal pagos.
Os líderes protestantes tentaram durante longos períodos a catequização dos índios aliados. Buscou-se a o estabelecimento de seminários para o ensino da moral protestante, primeiro em holandês e depois em português, mas a idéia não deu certo: os índios se rebelaram em 1643 contra a tomada de suas crianças. Mesmo com o fim dos seminários e depois da saída dos holandeses, padres católicos portugueses afirmaram terem encontrado tribos de costumes protestantes.
É interessante observar que apesar de aliados, os índios do Rio Grande do Norte, os tapuias, eram também temidos pelos holandeses, devido à sua "selvageria e violência". Um forte traço da ideologia holandesa com relação aos índios foi que, apesar de aliados, as relações conjugais entre brancos e índios sempre foram combatidas e repelidas.
Um mercado de escravos no Brasil Holandês
Os negros
No início, a política holandesa foi de combater a escravidão por motivos ideológicos, mas assim que percebeu a vantagem econômica desta passou a adotá-la inclusive de forma monopolista, por parte da WIC. Os negros eram extremamente necessários ao método de produção criado pelos portugueses e seguido pelos holandeses. Seu tráfico ao longo dos mares não tinha muitas diferenças. Inicialmente, as condições dentro dos navios negreiros holandeses eram piores do que as condições nos navios portugueses.
Somente depois é que melhoraram esse quadro, permitindo até melhores lucros com menor mortalidade. A preferência era pelos negros angolanos, "melhor adaptados ao trabalho escravo". Para alimentar o crescente mercado consumidor na América, a Holanda conquistou grandes territórios na África para a obtenção de escravos.
Apesar disso, o tratamento dado aos escravos era melhor do que o oferecido pelos portugueses, inclusive formando-se amizades entre holandeses e negros, posteriormente alforriados. Durante a guerra de conquista de 1630-1635, os negros dos engenhos e das lavouras fugiram e se refugiaram em quilombos principalmente na região de Palmares. Estes foram constantemente combatidos pelos holandeses, porém conquistaram muita força nesta região.
Diferente do que ocorria com relação aos índios, os pastores protestantes não demonstraram grande interesse com relação à evangelização dos negros, o que inclusive foi apontado como alguns como motivo das derrotas nas guerras de 1645-1654. Afirmava-se que Deus estaria os punindo por abdicarem do ensino aos negros.

Conclusão
A ocupação holandesa do Nordeste Brasileiro é vista como um passado que não deveria ter sido encerrado pela reconquista de 1645-1654, pois a política holandesa teria formado um Brasil mais forte economicamente e, desde o seu início, urbano. Esta visão é superficial: para negá-la, bastaria observar-se o desenvolvimento das colônias holandesas nas Antilhas, por exemplo, que atualmente estão tanto no Terceiro Mundo quanto o Brasil.
Em contrapartida, a política holandesa restringia muito mais as possibilidades econômicas do Nordeste do que a portuguesa, bem como limitava o plano social, com a crise entre brancos e judeus, negros e índios. Assim, durante os 24 anos de dominação foi criado uma grande segregação religiosa-racial.
Moeda do
Brasil Holandês,
de 1645
No entanto, não devemos deixar de lado os pontos positivos da política holandesa, e principalmente do Conde Maurício de Nassau. Com sua base urbana, trabalhou para impedir o poder dos senhores de engenho e das oligarquias agrárias, incentivando assim a transformação da sociedade pernambucana de agrária para urbana. Além disso, foram muitos os esforços em melhorias para a população local, que viu em Nassau um governante que os ajudou com suas políticas de combate à fome e à monocultura e de higiene e saneamento básico.
A comunidade judaica na América até os nossos dias cita orgulhosa os tempos de colônia em Pernambuco, onde desfrutava de liberdade religiosa impensável na época para os padrões europeus e católicos.
Se podemos falar de algum erro do governo holandês, que acabou por gerar a revolta e perda de Pernambuco, foi de não ter incentivado mais os holandeses a acessar a terra. Deste modo, os portugueses, apesar de dominados, tinham a economia em suas mãos, autêntica base do projeto econômico da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais.
Criou-se um mito com relação ao governo de Nassau para a população do Recife e região, algo como um herói nacional. Ignora-se o fato de Nassau ser um governante a mandos da mercantilista, ou capitalista, Companhia das Índias Orientais. Suas políticas muitas vezes foram feitas para impedir uma guerra civil e a instabilidade social na colônia. O incentivo à colonização da Ilha de Antonio Vaz se deu principalmente após a superlotação da cidade do Recife, e Nassau, vivendo na colônia, podia muito melhor do que o Conselho dos XIX perceber que, se não fosse ampliada a área habitável da colônia, em breve uma insurreição nasceria.
 
O alemão Maurício de Nassau representava somente uma tendência, que ia inclusive contra o pensamento de grande parte dos comandantes da WIC, que tinham um pensamento muito mais semelhante ao português, buscando uma exploração interligada com o sistema colonial. Foi inclusive esta diferença que proporcionou a saída prematura de Nassau do governo colonial holandês no Brasil. Obviamente, Nassau também fora um incentivador da cultura e gastou muitas vezes dinheiro próprio para criar locais onde havia um incentivo à cultura e à ciência, como foi o caso do jardim botânico e do zoológico, por exemplo. Gastou do seu próprio bolso para finalizar a obra da ponte juntando o Recife à Cidade Maurícia, mas, mais uma vez, devemos observar que este fato se deu também para incentivar a cidade por ele planejada e para conter a lotação habitacional que estava tornando insustentável o modo de vida e a própria urbanização do Recife.
Maurício de Nassau
A colonização holandesa foi, portanto, urbana e burguesa, diferindo assim da instalada pelos portugueses, extremamente agrária. Não podemos afirmar se uma ou a outra seria melhor para o futuro desenvolvimento do país, pois só podemos observar o produto de uma delas e é superficial ao fazer paralelismos com o desenvolvimento de colônias holandesas em outros locais. O máximo que podemos afirmar é que, de 1630 a 1654, parte do Brasil viveu sobre outro sistema social que foi combatido e derrotado por problema internos dele próprio e pela classe social dominante do sistema econômico-social que havia sido desmantelado.
Dúvidas permanecem em aberto, principalmente porque a pesquisa que realizei não foi muito extensa. Apenas busquei levantar os principais pontos sobre a permanência dos holandeses no Brasil e discutir um pouco a criação do mito de Maurício de Nassau e seu governo em Pernambuco com o que tinha à disposição nas bibliotecas da USP. Espero mais tarde poder retomar esta pesquisa e aprofundá-la muito mais.
 

Bibliografia
FAUSTO, Boris: "História do Brasil". EdUSP, São Paulo, 1995. HOLANDA, Sérgio Buarque de: "O domínio holandês na Bahia e no Nordeste" in História geral da civilização brasileira, 1º vol., livro 4, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1960.
MELLO NETO, José Antonio Golsalves de: Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. José Olympio, São Paulo, 1947.
PUNTONI, Pedro: Guerras do Brasil (1504-1654). Brasiliense, São Paulo, 1992, Coleção tudo é história nº 141.
VILLALTA, Luis: "O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura" in MELLO E SOUZA, Laura de (org.): História da vida privada no Brasil, vol. 1. Cia. das Letras, São Paulo, 1997.
Dicionário de História do Brasil. Melhoramentos, São Paulo, 1976.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Governadores Alagoanos e os "Tempos de Antes" - Dr. José Alberto Saldanha de Oliveira - Universidade Federal de Alagoas

Governadores Alagoanos e os "Tempos de Antes"

Governadores Alagoanos e os “Tempos de Antes” 

José Alberto Saldanha de Oliveira*
Universidade Federal de Alagoas

Resumo: Esse artigo se baseia nas noções de identidade, memória, e mito político[1] ao analisar as Mensagens de Governo, enviadas à Assembléia Legislativa do Estado de Alagoas por aqueles que entre as elites e o imaginário popular disputam a condição de portadores da modernidade alagoana: Arnon de Mello (UDN – União Democrática Nacional), governador de 1951 a 1955 e Muniz Falcão (PST – Partido Social Trabalhista e depois PSP – Partido Social Progressista) governante de 1956 a 1960. 
Palavras-chaves: Governadores Alagoanos, Identidade, Memória, e Mito Político.

Abstract: This article is based on the concepts of identity, memory and political myth as it analyses Mensagens de Governo, documents sent to the local Legislative Assembly by those who, between the elites and the popular  imaginary conception, dispute the condition of owners of the modernity in Alagoas: Arnon de Mello (from the political Party UDN – União Democrática Nacional), whose government lasted from 1951 to 1955 and Muniz Falcão (from PST- Partido Social Trabalhista, later on PSP – Partido Social Progressista), governor from 1956 to 1960.
Key-words: Alagoanos governors, identity, memory end political myth.


Fonte:https://sites.google.com/site/revistacriticahistorica/numerozero/existe-uma-alagoas-colonial/governadores-alagoanos-e-os-tempos-de-antes

Dentre as funções do historiador, uma delas tem sido desvendar as tramas da memória histórica, bem assim como enfrentar os referenciais históricos estáticos e as fortes doses de mitologia. Creio que esse trabalho pode ser facilitado no diálogo com as noções de identidade, memória, mito e mitologia política[2].
Memória e identidade não são fenômenos estáticos. As referências ao passado sofrem um processo permanente de desconstrução e reconstrução, pois toda vez que um projeto é reelaborado, essa reelaboração repercute na identidade e provoca uma reorganização da memória. Como são vários os “presentes”, conseqüentemente são vários também os “passados”. Assim sendo, a investigação histórica tem que valorizar os silêncios e as ocultações que também integram a memória, sem esquecer, no entanto, que mesmo sendo seletiva não pode ser construída arbitrariamente, pois se alimenta do material fornecido pelos processos históricos.
A análise do papel da memória na constituição da identidade (grupo social ou indivíduo) deve dialogar com alguns elementos. Os acontecimentos vividos pessoalmente; os acontecimentos “vividos por tabela” (vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer, que por meio da socialização política ou da socialização histórica projetam uma identificação com determinado passado, ao ponto de ser possível falar de uma memória herdada); os personagens – vividos no decorrer da vida, freqüentados por tabela ou mesmo os que não pertenceram ao espaço-tempo do indivíduo-sujeito; e os “lugares da memória” (lugares particularmente ligados a uma lembrança que pode ser pessoal, como também pode não ter apoio no tempo cronológico)[3]. Por isso, a memória, enquanto elemento constituinte do sentido de identidade, torna-se extremamente importante ao garantir o sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.
Outras noções importantes para a análise da construção das identidades são as de mito e mito político. Diante dos desequilíbrios sociais e das tensões no interior das estruturas sociais, os mitos surgem com a função de reestruturação mental, pois sua lógica coercitiva visa reconquistar uma identidade comprometida. O mito “deve ser concebido como uma narrativa que se refere ao passado, mas que conserva no presente um valor eminentemente explicativo, na medida em que esclarece e justifica certas peripécias do destino do homem ou certas formas de organização social”[4].
Ao relatar “um acontecimento ocorrido no tempo primordial” o mito confere significação e fornece parâmetros para a conduta humana, pois narra de que modo algo foi produzido e como começou a ser. “É pelo relato de como as coisas vieram à existência que o homem pode explicá-las, dominá-las e atuar sobre elas”[5].
As sociedades e os grupos sociais são portadores de um mito do seu próprio passado, um relato que explica como começaram a existir. A narrativa mítica traz à tona não só a origem de tudo, mas, sobretudo “onde encontrá-lo e como fazer com que apareça, quando se deseja”[6]. Os indivíduos pertencentes ao grupo partilham interesses e aspirações comuns. Recordam e registram sobre o passado vivido e herdado, acontecimentos reais e imaginários, quase sempre sob uma ótica de favorecimento.
Da mesma forma, o mito político enquanto sistema de crença coerente e completo – cujo papel explicativo se desdobra em um papel de mobilização – é simultaneamente determinante e determinado, na medida em que é oriundo da realidade social e igualmente criador dessa realidade social. Uma visão alimentada pelos “tempos de antes”, ou seja, “imagens de um passado tornado lenda, visões de um presente e de um futuro definidos em função do que foi ou do que se supõe ter sido, ao mesmo tempo ficção, sistema de explicação e mensagem mobilizadora”[7].
Assim sendo, cabe ao historiador decodificar a memória e introduzir o distanciamento necessário entre o passado e o presente, pois enquanto a memória sacraliza o passado, a história faz uso do passado para desmistificá-lo e torná-lo inteligível no presente. Através de uma elaboração intelectual, visa à inteligibilidade daquilo que ocorreu. Tendo como função maior construir ou reconstruir identidades, a memória se distancia da história, que, por considerá-la sempre “suspeita”, tem a missão de desconstruí-la”[8]. 
Em busca desse “outro olhar” é possível dialogar com as Mensagens de Governo, enviadas à Assembléia Legislativa de Alagoas, pelos governadores Silvestre Péricles, Arnon de Mello, Sebastião Muniz Falcão e Luiz Cavalcante, respectivamente os responsáveis pela condução do Estado de 1946 a 1964.
Além do mais, com a reavaliação que a historiografia brasileira vem desenvolvendo a respeito daquilo que se convencionou chamar de “populismo”, é possível redimensionar o significado do projeto nacional-estatista construído durante as décadas de 1940 e 1960, cujo contexto alagoano guarda íntima ligação com o cenário nacional.
Atacar “os tais populistas” da segunda metade dos anos de 1950 (Juscelino Kubitschek, Presidente da República e Muniz Falcão, Governador) era a tônica daqueles que não aceitavam a derrota nas urnas. Reunidos na sua maioria na União Democrática Nacional – UDN, destacando-se as figuras de Carlos Lacerda em nível nacional e Arnon de Mello em Alagoas, acreditavam que o povo só poderia ter sido enganado para não ter percebido a justeza de suas propostas.
Nessa oportunidade esse texto se reporta àqueles que entre as elites e o imaginário popular disputam a condição de portadores da modernidade alagoana: Arnon de Mello (UDN – União Democrática Nacional) e Muniz Falcão (PST – Partido Social Trabalhista e depois PSP – Partido Social Progressista).
Em relação a Arnon de Mello (governador de 1951 a 1955), além das mensagens governamentais, seu livro “Uma Experiência de Governo”, reunião de vários discursos, permite a compreensão sobre seu desempenho à frente do governo estadual[9]. O livro se apresenta como uma prestação de contas, mas é, ao mesmo tempo, um relato dos “tempos de antes”. Um testemunho do “homem público” sobre sua obra.
Em seu discurso de aceitação da candidatura ao governo do Estado, pronunciado a 30 de agosto de 1950, no Clube Fênix Alagoana, argumenta que busca a “pacificação de Alagoas”. Para Arnon, “não nos animam ódios, nem vingança. Nada há que recear da nossa vitória, que não será de ninguém nem contra ninguém: será a vitória do povo de Alagoas. Não visamos a perseguir nem a castigar, mas a construir e a estimular todas as energias em benefício do engrandecimento da terra comum”[10].
Em seguida, manifesta sua identidade com os infortúnios do povo. “Homem do povo que me prezo de ser, sinto como na própria carne os sofrimentos do povo alagoano, que, mal vestido, subnutrido, faminto, desiludido, desenganado, abandonado até já adquiriu, a bem dizer, o direito de não ter fé”. Como a buscar explicações diz não poder “compreender, aliás, como, num país que sofre dos males do latifúndio e da monocultura, que são o atraso, se abandone à própria sorte a pequena propriedade, que é o progresso, e não se fomente com maiores recursos a produção”[11].Entretanto, prefere não apontar culpados.

Não vamos perder tempo em fixar a quem se deve tal estado de coisas. Não nos atenhamos ao passado, na apuração de culpas. Olhemos para trás apenas com o fim de auferir dos dias idos a força que nos dá a consciência do dever dignamente e quase sempre heroicamente cumprido, apenas com o fim de tirar deles a sabedoria que dimana da experiência e nos ilumina para a ação política [12].

O apelo de “união” é reafirmado no discurso pronunciado na Praça Pedro II, (no dia 31 de janeiro de 1951), ao tomar posse.

Faço caloroso apelo a todos os alagoanos que amam a sua terra para que juntem aos meus os seus esforços com o objetivo de resolver os problemas do povo. Quem quer que deseje sinceramente servir a Alagoas encontrará em mim a determinação de aproveitar-lhe a boa vontade. Não procurarei afastar ou excluir ninguém, antes, pelo contrário, e tanto mais quanto nunca o nosso Estado precisou como agora da ajuda de todos os seus filhos [13].


Conclui dizendo, “feliz me sentirei se chegar ao fim do meu mandato com todas as forças que apoiaram a minha candidatura unidas em torno do Governo e acrescidas de outras”. Porque “para mim, governar não é isolar-se ou impor sua vontade, mas congregar, agremiar, coordenar, canalizar energias no benefício geral”.
Outro discurso a compor o livro é o intitulado “Confiança no Povo”, pronunciado a 30 de agosto de 1953, no Teatro Deodoro. Trata-se de um balanço dos dois anos e meio de governo. Ao rebater críticas dos adversários enfatiza que continua “a trabalhar sem ódios, os insultos mais vis não me afastam do pensamento de que sou, como governador, um magistrado que pode errar, mas que não se desmanda, que não cede ao impulso de paixões inferiores”[14].
Reafirma que ascendeu ao governo para ser “o governador de todos os alagoanos”. Que não perseguiu ninguém e que teve “a alegria de receber a solidariedade e a colaboração de homens públicos que, vindos de outras origens partidárias e políticas, reconheceram a justeza dos meus propósitos e uniram seus esforços aos meus em favor do bem coletivo”[15].
Entretanto, apesar do entendimento político do seu partido, a UDN, com o PSD e o PR, alguns aliados romperam o acordo.

Lamento que companheiros de outrora hajam rompido conosco sem motivo. Para a deliberação que tomaram estou certo de haverem contribuído menos os reais interesses de Alagoas do que o temperamento, os erros de visão as incompreensões de cada um. Mas o tempo lhes dirá quem tinha razão: se nós, que nos mantemos onde antes nos encontrávamos para evitar que retorne Alagoas ao passado, ou se eles, que nos negam apoio e procuram enfraquecer-nos, quando, exatamente os nossos adversários mais se animam à luta para a restauração, cheios de ódios, ansiosos de vingança[16].


Manifesta preocupação com o clima político que antecipa o embate eleitoral e impede “um ambiente mais calmo” onde “pudéssemos todos melhor trabalhar pela terra comum”. Por último, faz uma conclamação: “Em 1950, convocamos os alagoanos para lutar pela instauração da paz. Em 1953, convocamos os alagoanos para lutar, com a mesma firmeza e redobrada responsabilidade, pela manutenção da paz, que não é obra de um homem nem de um governo, mas do povo que quis e a impôs pelo voto. (...) Como em 1950, podemos confiar no julgamento do povo, que o povo nos saberá julgar”[17].
Dias depois, mais precisamente em 03 de outubro de 1953, vem o discurso pelas ondas da Rádio Difusora, “Prestando Contas ao Povo”. Demonstra, mais uma vez, que assumiu um papel de criar “um clima de tranqüilidade, indispensável à recuperação do Estado após a fase de terríveis agitações e arbitrariedades que vencera” e que procurou combater a “ligação entre a noção de governo e a de violência característica do governo anterior”. Lembra que lançou “os fundamentos de uma obra definitiva, em que realçam, no setor rodoviário, a construção e a pavimentação de estradas, e no setor de saúde pública, o saneamento de Maceió e o serviço de água para os bairros pobres da Capital e as sedes de municípios do interior”[18].
Na tentativa de acalmar os ânimos sinaliza: “não penso em ser candidato a nenhum posto eletivo. Minha preocupação é assegurar plena liberdade ao povo para que ele eleja em 1954 quem achar mais digno da sua confiança. E não há dúvida que o povo distingue, agradecido, quem sobretudo lhe seja útil. Cada vez mais me convenço de que só lhe conquistamos o coração pelo bem que lhe fazemos” E conclui: “que as forças políticas e espirituais despertadas pela renovação de Alagoas, com a consciência íntima, o sentimento real da missão e do destino que nos unem, continuem a revolução que foi para nós o 03 de outubro, mormente agora que, alcançadas a liberdade e a tranqüilidade, já se vão consolidando os nossos ideais de progresso”[19].
Por último, o livro nos presenteia com o discurso “Ao Fim do Governo”. Trata-se de sua despedida e foi pronunciado a 31 de janeiro de 1956. Reafirma que cumpriu a missão a ele confiada. “Fui sempre fiel aos propósitos do movimento popular de 1950 e à minha palavra de candidato, de tal modo que hoje insisto em repetir, sem qualquer constrangimento, e antes com orgulho, tudo quanto naquele tempo disse como intérprete dos vossos sentimentos”[20].
Além de apontar firmeza e tranquilidade no trato das questões de governo, afirmou: “não neguei o programa do meu partido. Nestes cinco anos pude certamente realizar o que pregamos nas campanhas de 1945 e 1950. Honra-me que os resultados dos esforços do meu governo não tenham decepcionado nem prejudicado, e sim beneficiado o povo e os meus correligionários”. Cita o crescimento do partido, o que lhe colocava como o maior no Estado (em 1950: 03 deputados federais e 09 estaduais; em 1954/55: 02 senadores, 05 deputados federais, 16 estaduais, 35 prefeitos e a quase totalidade da maioria das câmaras de vereadores). E que não fez um “governo de pessoas, de grupos, de facções”, mas “impessoal, interessado, acima de tudo, no bem comum, um regime de liberdade, paz e progresso”[21].
Em seguida, exalta sua coerência. “Nunca faltei à verdade. Meus atos confirmaram sempre as minhas palavras. Meu Governo atuou invariavelmente dentro dos ideais democráticos por mim pregados nas campanhas eleitorais. Fui sempre eu próprio, nas minhas palavras como nas minhas ações, e honra-me sobremodo haver interpretado os sentimentos alagoanos sem me negar, antes pelo contrário, confirmando-me em todos os momentos, fáceis ou difíceis”[22].
Relata seu sentimento sobre as angústias e dificuldades do povo.

Nestes cinco anos não passei um dia sem ter a minha sensibilidade tocada pelas alegrias e pelas tristezas do povo, suas esperanças e suas desilusões, suas angústias e seus contentamentos. (...) Dentro do círculo das minhas atribuições, fiz o que pude para melhorar-lhe as condições de vida e assegurar-lhes novas oportunidades de bem-estar”. No entanto, “o problema, porém, não é de governo, mas do regime atual, que, vencido pelas próprias contradições, insiste ainda, nos seus últimos arranco de sobrevivência, em manter injustiças e privilégios que aprofundam e tornam mais clamantes as desigualdades sociais[23].


Adiante, explicita suas idéias sobre “o homem público” e “o homem do povo”.
Fui, no poder, o que sempre fui e me honro de continuar a ser: um homem do povo, um homem humano, um homem comum que trata os seus semelhantes, ainda os mais modestos, como camaradas e amigos. Governador, nunca deixei de apertar a mão dos esfarrapados, de abraçar os humildes de pés no chão, de confortar os infelizes, conviver com os pobres e os aflitos. E não apenas em Palácio: visitava-os constantemente em suas próprias casas, para mostrar-lhes que o Governo era deles também[24].

Seu discurso também permite identificar a visão do que é a ação do governo e sua concepção sobre o papel dos segmentos sociais.

Prestigiei o trabalhador sem pretender destruir o patrão, pois no bom entendimento entre o trabalho e o capital está, dentro do nosso regime, o interesse de ambos. Não houve nenhuma agitação social no decorrer do meu Governo; e, quando os operários da Nordeste pleitearam, por mais de ma vez, elevação de salários, tiveram em mim um advogado pertinaz junto a alta direção da Companhia, e foram atendidos. As classes produtoras sempre mereceram de mim todo o acatamento. Não cuidei apenas de fazer o bem, mas procurei sempre evitar e neutralizar o mal, prevenindo acontecimentos e reduzindo ou fazendo desaparecer conseqüências deles que não se ajustassem à tranqüilidade dos alagoanos[25].

Depois, sua análise é dirigida para a derrota de seu candidato ao governo na eleição de 1955. Se seu governo foi a expressão de um desejo que se tornou realidade, “a renovação de Alagoas” que se encontrava “num mundo de falta de liberdade”, como explicar a derrota eleitoral e a ida para a oposição? Argumenta, “bem calculamos, sem falsa modéstia, o que fizemos por nossa terra. Depositários da confiança popular, não nos sentimos na oposição menos responsáveis do que no Governo. O equívoco de 1955, tendo-nos tirando o poder, não nos tirou a flama de lutar pelo bem-estar do povo alagoano, não diminuiu em nós a ânsia de servir. Não esmiuçaremos as causas desse equívoco, mas estamos certos, desde logo, que ele não exprime desapreço ao Governo”[26].
Portanto, sobre a futura ação política, “é possível que tenhamos de viver dias atrozes. Mas estou convicto de que o povo, todos os alagoanos de boa vontade, até os mais humildes, dirão ‘não’ aos que desejam acabar com a liberdade, a paz e o progresso de Alagoas. Não repetiremos jamais o erro dos nossos adversários, que tudo fizeram para que o governador nada realizasse, dominados por um absurdo negativismo e sem qualquer poder criador”[27].
Conclui a respeito do futuro político afirmando: “devemos ter sempre em vista esta simples verdade: os homens passam, e o povo fica. Aguardemos os atos do futuro governo, e conduzamo-nos de modo que ele não nos possa culpar dos seus erros e malogros. E estejamos preparados para combatê-lo com todas as nossas energias se ele se decidir – ai dele! – pelo caminho do mal”[28]. 
Nas Mensagens de Muniz Falcão (governador de 1956 a 1960) à Assembléia Legislativa do Estado se encontra não só os apelos de “união por Alagoas”, mas a identificação de quais serão os sujeitos portadores de um projeto de desenvolvimento, o qual seu governo nada mais seria que a expressão dessa vontade.
A mensagem enviada em 21 de abril de 1956, tem como anexo o discurso intitulado “Os Rumos do Governo”, pronunciado quando de sua posse, no dia 31 de janeiro de 1956. Nele, ao mencionar o quanto que a emoção lhe toma conta, lembra: “de par com a patriótica vibração desta grandiosa data, em meio às emoções deste instante, não posso deixar de ter o pensamento voltado para os lares humildes, donde saíram milhares e milhares de sufrágios que, somados à votação provinda de todas as classes sociais, asseguraram a vitória da ‘Frente Popular’ num dos pleitos mais renhidos de que se tem notícia ente nós”[29].
Além de reafirmar querer “servir a todos os alagoanos sem discriminação partidárias, sem ódios e sem ressentimentos”, pontua a herança que recebeu do governo anterior, como exemplo, a dívida com o Banco do Brasil cresceu nos último 05 anos de 50 para 270 milhões de cruzeiros. Para em seguida dizer: “haveremos, entretanto, de empenhar todas as reservas de energia, trabalho e persistência no sentido da integral recuperação das Alagoas nos múltiplos aspectos, a fim de promover o seu progresso, a sua libertação econômica e preservar as grandes tradições em que se assentam as bases de nossa formação histórica”[30].
Para esse empreendimento, Muniz acredita que não faltará o decidido apoio dos poderes Legislativo e Judiciário, locais dos “mais elevados expoentes da inteligência, da cultura, da honradez, a serviço do povo”. Além do mais, ao seu lado “estarão todos os patriotas alagoanos”. E, que não teme em dizer que participarão desse projeto “os trabalhadores do campo, das fábricas e das oficinas, os servidores públicos, os soldados de nossa valorosa milícia, os professores, os comerciantes, os industriais, os banqueiros, os que exercem profissões liberais”. Uma união “para que possamos legar aos nossos filhos uma terra sem a desgraça e os sofrimentos de tantos”[31].
Um dos propósitos do novo governo é a expansão do ensino público, para tanto, espera a “colaboração dos bons alagoanos”. E enfatiza: “Não houve, ainda – diga-se de passagem – um movimento sério no sentido de integrar o trabalhador rural nos padrões da civilização contemporânea, dando até a impressão de que forças negativas estariam a impedir a libertação intelectual das camadas sociais menos afortunadas”[32].
Quanto à Segurança Pública, relembra que nos últimos anos, “a família alagoana foi abalada por lutas mesquinhas, desassossegada pelo faccionismo intolerante, golpeada pelo ódio e pela violência”.

Por isso, “responsável máximo pela ordem, pela paz e pela tranqüilidade do povo alagoano, cujos interesses e sentimentos me cabe defender, venho para o Governo com o espírito sereno, isento de ódios e de paixões. Não serei apenas governador dos vitoriosos e vencedores. Mercê de Deus, saberei cumprir com fidelidade os meus deveres face à Constituição, as leis e o povo das Alagoas, respeitando e fazendo respeitar os princípios democráticos, assegurando a liberdade e a justiça, pedras basilares no equilibro das relações humanas”[33].

Após enaltecer seu propósito em assegurar aos poderes Legislativo e Judiciário a independência, juntamente com a harmonia recíproca, conclui seu discurso.
Aí está o que me cumpria dizer ao povo alagoano, nesta data auspiciosa. Sem termos rebuscados e sem imagens de cunho literário, traduzem essas palavras o pensamento de quem fala sincera e lealmente, sem engodo, nem mistificações. Unidos num só propósito, governo e povo, haveremos de superar todos os obstáculos, para efetivar as legítimas aspirações de nossa gente. Aos descrentes, aos pessimistas e aos elementos negativos oporemos o vigor de nosso idealismo e a ação organizada em benefício da gleba comum[34].

No texto inicial da Mensagem de 21 de abril de 1956, o governador Muniz Falcão afirma que apesar das condições desfavoráveis em que recebeu o governo, acredita que o esforço do executivo e “a cooperação dos representantes do povo” levarão a “uma ação harmônica e continuada no sentido de serem dadas soluções concretas e definitivas aos grandes e justos problemas da nossa coletividade” Assim sendo, “torna-se assim necessária essa conjugação de esforços para que o povo alagoano, espoliado e empobrecido, encontre afinal os dias gloriosos porque tanto tem lutado e sofrido durante anos e anos”[35].
Em seguida, é possível identificar o seu desejo de iniciar o governo buscando “a paz social”. Sai da campanha e assume o posto de governante “sem ódios nem ressentimentos”. Diz, “não distingui, nem distingo no seio desta ordeira coletividade, vencedores nem vencidos. Vejo que existe em nossa terra um povo que anseia por paz e prosperidade, lema que domina as armas do Estado, mas que tem sido lamentavelmente esquecido por aqueles que tiveram sob os seus ombros a responsabilidade de bem conduzir os destinos de Alagoas”[36].
Demonstra humildade ao afirmar que:

Não quis o poder por vaidade, pelo simples prazer de governar. Acostumado a lutar e a sofrer, tendo galgado os vários degraus da minha vida pública à custa dos mais ingentes esforços, sinto e compreendo de perto as dificuldades daqueles que me fizeram o veículo para a conquista das suas mais legítimas aspirações. Dos seus sonhos de libertação, de melhores e mais tranqüilos dias. E esta noção de dever acompanha todos os meus atos de governador, está presente a cada momento em que me tenho de pronunciar como primeiro magistrado de Alagoas[37].

Declara que o Executivo acatará os atos emanados pelo Legislativo e pelo Judiciário. “Farei triunfar em Alagoas o império da lei e da justiça, possibilitando assim melhores condições de vida ao nosso povo, porque em última análise, ‘o progresso é o desenvolvimento da ordem’”[38].
Na Mensagem à Assembléia Legislativa, enviada em 21 de abril de 1957, Muniz Falcão trata, inicialmente, das dificuldades em colocar a máquina pública em funcionamento diante do “alarmante desequilíbrio financeiro em que se debati o Estado”. Isso teria levado o Governo à “adoção de medida extremas de compressão das despesas públicas”. O resultado das medidas possibilitou a eliminação do déficit de quase 43 milhões de cruzeiros, deixado pelo governo anterior, e ainda trouxe um superávit de 05 milhões[39].
Aproveita a oportunidade e trata do caso do homicídio do Deputado Marques da Silva, um dos ingredientes da crise política que levará ao pedido de impeachment, em setembro desse ano. Muniz lamenta que “os sentimentos de pesar e de revolta vieram a servir de pretexto para as mais absurdas explorações. E têm sido aproveitados para mesquinhas manobras políticas”. Relata que sua providência imediata, para demonstrar que não compactua com fatos dessa natureza, foi solicitar ao Tribunal de Justiça com base na Constituição Estadual, art. 73 VIII, que designasse juiz de direito e promotor público para apurar o crime. Assim procedendo, “ficava a apuração do delito a salvo de qualquer suspeita de parcialidade ou favoritismo”. Além do mais, esse tipo de providência “já vinha sendo adotada repetidas vezes pela alta Corte de Justiça do Estado inclusive em duas oportunidades durante o meu Governo – para a apuração do homicídio do Prefeito Gilberto Vilar, em Água Branca, e para a elucidação de incidentes em que se viram envolvidos os juízes de Major Isidoro e Mata Grande”[40].
Procurando mostrar que seus adversários se utilizam do assassinato para atacá-lo, na tentativa de reconquistar o poder, Muniz termina lembrando que as medidas por ele tomadas, não foram as que seu antecessor (Arnon de Mello) tomou quando do assassinato, em 31 de março de 1951, do candidato derrotado ao governo em 1950, Luis de Campos Teixeira, pelo deputado Oséas Cardoso. Ou quando foi assassinado Francisco Lima, sobrinho do ex-governador Fernandes Lima, oposicionista em Porto de Pedras. Nem quando foi morto por pistoleiros o ex-prefeito de Colônia de Leopoldina, Durval Gonçalves. Tão pouco nos casos da morte do fazendeiro João Beltrão em Coruripe, por soldados da Polícia Militar, do tiroteio de Arapiraca, em que saiu ferido o deputado oposicionista Claudeonor Pereira e do fuzilamento do industrial e fazendeiro José Tôrres, pelo delegado de polícia do município de Água Branca[41].
Conclui argumentando que seria imperdoável negligenciar a apuração e a repressão do delito. “Em nenhum instante vacilei em agir dessa maneira, pela nítida compreensão de que a impunidade é o principal fator de estímulo a deliquencia; e, também, porque, pelo meu feitio moral, não sei transigir com o crime”. E, considera ainda, que as acusações e provocações que vem sofrendo fazem parte do desejo de adversários “rancorosos e inconformados em arrastar Alagoas ao caos, à desordem, ao colapso da legalidade constitucional”. Mas deposita esperanças de que não faltarão reflexão e bom senso aos “homens de responsabilidade” para que não atrapalhe o ritmo de progresso e prosperidade necessários a Alagoas[42].
Ao final, a Mensagem traz o discurso pronunciado ao microfone da Rádio Difusora, no dia 31 de janeiro de 1957, comemorativo de um ano de mandato, intitulado “A Sorte da Terra e os Problemas do Povo”. Muniz dirige-se à “consciência pública de Alagoas” para uma primeira prestação de contas. Saúda afetuosamente “sobretudo as classes humildes, pois foram elas que em reação histórica se levantaram contra a prepotência e a corrupção e construíram o governo que preside e orienta os seus destinos”. Diz que apesar “do negativismo, da incompreensão e dos rancores dos que fazem hoje oposição”, o povo alagoano é testemunha do esforço do seu governo em construir a paz, desarmar os espíritos e propiciar a prosperidade do Estado. E que, além do mais, “em nenhum outro período da nossa vida republicana as classes sociais, sem uma única exceção, desfrutaram um clima de maior liberdade, inclusive a imprensa, que sob o meu governo, não sofreu nem sofrerá quaisquer restrições”[43].
Lembra também, que seus adversários patrocinam uma campanha tentando ligar o governo aos incidentes violentos do cenário político.

Mais de uma vez, intentaram a intervenção federal para Alagoas, atraindo sobre nós a atenção de toda nação, através de manobras orientadas sempre no sentido intervencionista. Notícias sensacionalistas, publicadas na Capital da República, davam a impressão de que o nosso Estado vivia conflagrado por lutas terríveis, de tal modo que, a certa altura, uma comissão de senadores abalou-se do Rio de Janeiro para vir até aqui com intenções mediadoras[44].


Conclui enfatizando que não se afastará dos propósitos estabelecidos em seu programa de governo e de seu compromisso em servir:

Mobilizaremos as nossas melhores energias para que possamos servir ao povo, sobretudo às classes humildes e menos favorecidas da sociedade que têm permanecido como marginais, ao lado de grupos poderosos só preocupados com a sua própria sorte e indiferentes aos grandes problemas sociais da nossa época.
Governo para ser governo, cumprindo a delegação que o povo lhe outorga através do sufrágio popular e dos regimes representativos, tem que enfrentar a universalidade dos problemas e voltar as suas atenções especialmente para os que sofrem.
O individualismo cego que ainda se observa em certos grupos da sociedade contemporânea, não pode resistir ao impacto das transformações sociais impostas pelo Estado Moderno. Uma nova consciência política se forma em todas as classes e a compreensão desse fenômeno é vital para a sobrevivência do próprio regime. É preciso entender que os bens da sociedade não devem ser apenas privilégios de poderosos, mas usufruídos por toda comunhão humana, integrada esta de ricos e pobres.
Esta orientação tem inspirado o meu governo e haverá de conduzi-lo até o fim do seu mandato, ainda que tenha de enfrentar as forças que me combatem, ocultas umas, e ostensivas outras, lutando desesperadamente pela conservação de uma ordem social perempta face ao processo de evolução do mundo contemporâneo.
Povo alagoano! O atual Governo de Alagoas não vos decepcionará. Não vos deixei impressionar pelas vozes de ‘cassandra’ nem pelo veneno destilado por falsos líderes que nunca se preocuparam, quando no Poder, com a sorte da terra e com os problemas do povo[45].

Na Mensagem à Assembléia Legislativa de 21 de abril de 1958, Muniz se reporta ao ano que findou e que foi palco de “lamentáveis episódios que conturbaram o ritmo das atividades administrativas”, como também, “toldaram o ambiente das relações entre os poderes”. O processo de “impeachment não atingiu o seu objetivo capital – a deposição do governo – mas trouxe, sobretudo nos últimos meses do exercício passado, um colapso sem precedentes em nossa história política, inclusive a quase completa paralisação de todas as obras públicas e iniciativas governamentais” [46].
Após tecer considerações sobre a batalha jurídica que travou, procurando demonstrar “nos inúmeros e sucessivos apelos ao Judiciário, através de reiteradas iniciativas, que objetivavam solucionar, no campo neutro da justiça, a pendência entre o Legislativo e o Executivo”, afirma: “voltei sem ódios, estendendo as mãos aos homens de boa vontade que desejem sinceramente colaborar com o meu Governo em prol da paz, da tranquilidade e do progresso de Alagoas”. Por isso, ao enviar a Mensagem aos deputados “espera que aos seus trabalhos presida um elevado espírito de compreensão, inspirado nos mais caros e lídimos interesses da comunidade alagoana”[47].
Em 21 de abril de 1960 é enviada a última Mensagem à Assembléia do governo Muniz Falcão. Em sua introdução é feito um balanço da administração. Começa agradecendo a “inestimável colaboração recebida do Poder Legislativo, sempre que estiveram em equação os altos interesses do povo”[48], para em seguida expor o legado de seu governo:

Sinto-me à vontade para externar a minha satisfação pelo ambiente de tranqüilidade pública e respeito às liberdades individuais que o meu Governo conseguiu implantar em Alagoas desde o seu início, coerente com os compromissos assumidos e com os princípios de minha formação democrática. Durante os dois primeiros anos de minha gestão, a vida política do Estado foi tumultuada por lamentáveis acontecimentos, resultado da ação de grupos ambiciosos, inconformados com a perda das posições, nas quais se pretendiam firmar pela prepotência, pelo mandonismo e pela violência. Sem nada haverem feito em favor do povo, julgavam-se donos do poder. Derrotados, afinal, através do que se pode chamar a rebelião pelo voto, esses grupos deflagraram a luta sem quartel contra o Governador eleito em 1955 pela vontade indiscutível das urnas, luta sem precedentes e implacável, cujos resultados inquietantes sempre constituirão uma página lutuosa e negra nos anais de cultura e civilização da honrada gente alagoana. O dia 13 de setembro de 1957, em cuja tarde fatídica se ensangüentou a gleba generosa com sacrifício de um  dos  seus mais bravos líderes, o inditoso deputado Humberto Mendes, há de constituir um doloroso episódio da vida política do Estado[49].    

Acredito que esses relatos podem ser de grande valia na interpretação da história política alagoana. Permite dimensionar o quanto “os tempos de antes” são construtores de uma identidade, a qual a memória deseja perpetuar. Portadores de novos significados, os governadores enxergam em sua ação um papel civilizatório, capaz de trazer “a paz social” e “o bem estar da gleba”.
São intérpretes “dos sentimentos alagoanos” procurando “preservar as grandes tradições em que se assentam as bases de nossa formação histórica”. No entanto, estão sempre a combater “a ligação entre a noção de governo e a de violência característica do governo anterior”. Não se consideram “um governo de pessoas, de grupos, de facções”, mas “impessoal, interessado, acima de tudo, no bem comum, num regime de liberdade, paz e progresso”. Para que, enfim, “o povo alagoano, espoliado e empobrecido, encontre afinal os dias gloriosos porque tanto tem lutado e sofrido durante anos e anos”.
Será essa narrativa do passado, mas que conserva no presente um valor eminentemente explicativo e mobilizador, a construtora do mito político da tal “União por Alagoas”. Algo tão presente na vida cotidiana dos alagoanos do século XXI.

Bibliografia e Fontes
1.    Arquivo Público de Alagoas - Mensagem à Assembléia Legislativa – Governo Muniz Falcão – 1956.
2.    Arquivo Público de Alagoas - Mensagem à Assembléia Legislativa – Governo Muniz Falcão – 1957.
3.    Arquivo Público de Alagoas - Mensagem à Assembléia Legislativa – Governo Muniz Falcão – 1958
4.    Arquivo Público de Alagoas - Mensagem à Assembléia Legislativa – Governo Muniz Falcão – 1960
5.   Ferreira, Jorge. Prisioneiros do mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956). Tese de Doutoramento, Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo/USP, 1996.
6.    Girardet, Raoul - Mitos e mitologias políticas. São Paulo, Cia. das Letras, 1987.
7.    Mello, Arnon de. Uma Experiência de Governo. Rio de janeiro, José Olympio Editora, 1958. O livro e as Mensagens de Governo foram consultados no Arquivo Público de Alagoas – APA.
8.    Pandolfi, Dulce. Camaradas e companheiros: memória e história do PCB. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1995.
9.       Pollack, Michael - “Memória e identidade social” in Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992.




 

* Doutor em História pela Univsersidade Federal Fluminense e Professor no Curso de História da Universidade Federal de Alagoas.
[1] Segundo Pollack, Michael - “Memória e identidade social” in Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992 e Girardet, Raoul - Mitos e mitologias políticas. São Paulo, Cia. das Letras, 1987.
[2] Segundo Pollack, Michael - “Memória e identidade social” in Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992 e Girardet, Raoul - Mitos e mitologias políticas. São Paulo, Cia. das Letras, 1987.
[3] Ver Pollack, Michael - “Memória e identidade social” in Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p.201-202.
[4] Girardet, Raoul - Mitos e mitologias políticas. São Paulo, Cia. das Letras, 1987, p.11-13 e 180-183.
[5] Ver Ferreira, Jorge. Prisioneiros do mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956). Tese de Doutoramento, Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo/USP, 1996, p.14-15.
[6] Ferreira, Jorge – op.cit., p.33.
[7] Girardet, Raoul – op. cit., p. 98 e 182.
[8] Pandolfi, Dulce. Camaradas e companheiros: memória e história do PCB. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1995, p.16-19.
[9] Mello, Arnon de. Uma Experiência de Governo. Rio de janeiro, José Olympio Editora, 1958. O livro e as Mensagens de Governo foram consultados no Arquivo Público de Alagoas - APA
[10] Mello, Arnon de. op. cit.,  p. 08.
[11] Idem, p. 08-10.
[12] Idem, p. 11
[13] Idem, p. 21
[14] Idem, p. 32-33.
[15] Idem, p. 34.
[16] Idem, p. 35-36.
[17] Idem, p. 37-40
[18] Idem, p. 66-68.
[19] Idem, p. 75-79.
[20] Idem, p. 127-128.
[21] Idem, p. 134.
[22] Idem, p. 137.
[23] Idem, p. 137.
[24] Idem, p. 138. Grifo meu.
[25] Idem, p. 138. Grifo meu.
[26] Idem, p. 144.
[27] Idem, p. 147. Grifo meu.
[28] Idem, p. 148.
[29] Arquivo Público de Alagoas - Mensagem à Assembléia Legislativa – Governo Muniz Falcão – 1956, p. 164.
[30] Idem, p. 164.
[31] Idem, p. 165. Grifo meu.
[32] Idem, p. 167.
[33] Idem, p. 170-171.
[34] Idem, p. 173.
[35] Idem, p. 06-07.
[36] Idem, p. 07.
[37] Idem, p. 08. Grifo meu.
[38] Idem, p. 09.
[39] Arquivo Público de Alagoas - Mensagem à Assembléia Legislativa – Governo Muniz Falcão – 1957, p. 04.
[40] Idem, p. 05-07.
[41] Idem, p. 15.
[42] Idem, p. 16.
[43] Idem, p. 142.
[44] Idem, p. 145.
[45] Idem, p. 153-154. Grifo meu.
[46] Arquivo Público de Alagoas - Mensagem à Assembléia Legislativa – Governo Muniz Falcão – 1958, p. 05.
[47] Idem, p. 08-09.
[48] Arquivo Público de Alagoas - Mensagem à Assembléia Legislativa – Governo Muniz Falcão – 1960. Infelizmente, não existe no Arquivo Público a Mensagem de 1959.
[49] Idem, p. 03-04. Grifo meu.

“Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e pelo bom senso”. Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano)

  Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano) “Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e p...