sexta-feira, 13 de março de 2015

DOCES RECORDAÇÕES - Dr. Sebastião Palmeira.

DOCES RECORDAÇÕES
                                                  Sebastião Palmeira.


COMO ERA DOCE O CALDO LÁ DO ENGENHO,
COMO ERAM INGÊNUAS AS NOSSAS BRINCADEIRAS,
CORRÍAMOS PELAS LADEIRAS, SUBÍAMOS NAS MANGUEIRAS, EM BUSCA DE PASSARINHOS.



E QUANDO ACHÁVAMOS OS SEUS NINHOS,
COM OVOS OU FILHOTINHOS,
VIBRÁVAMOS DE CONTENTAMENTO,
COM AQUELE DESCOBRIMENTO.



NAS NOITES ENLUARADAS, DEITÁVAMOS
NO BAGAÇO SECO DA CANA QUE CIRCUNDAVA O ENGENHO,
OUVÍAMOS LINDAS HISTÓRIAS ENQUANTO CHEGAVA À HORA
DE VOLTARMOS PARA CASA.



VOLTAVA COM MEU PAI NA GARUPA DO SEU CAVALO,
ENQUANTO OS FILHOS E AS FILHAS DOS MORADORES, 
MEUS AMIGOS DE INFÂNCIA DESPEDIAM-SE NA ESPERANÇA
DO PRÓXIMO DIA E DA PRÓXIMA BRINCADEIRA.


 Sebastião José Palmeira é advogado criminalista, Procurador de Estado, especialista em Direito Penal, professor de criminologia, membro da Academia Maceioense de Letras e presidente de honra da ALPHA internacional diretor-geral da Seune-AL.


segunda-feira, 9 de março de 2015

Leituras brasileiras sobre a Nova Ordem Internacional (1989-1991)

Edição nº 6, ano IV

Printer-friendly versionEnvie para um amigoPDF version
Publicado em: 
03 de Jul de 2013
Depois de um período de reorganização, a Revista Mosaico trazpúblico seu sexto número. Com essa edição, esperamos contribuir para um diálogo plural dentro das áreas de história e ciências sociais, através de artigos de profissionais e de estudantes. Com esse espírito interdisciplinar, que é a marca de nosso programa de pós-graduação, a Mosaico apresenta, nesse número, o dossiê Mundos do Trabalho, bem como os artigos e resenhas recebidas em fluxo contínuo.
O dossiê ressalta a diversidade das relações de classe constitutivas da formação da classe trabalhadora no Brasil. Na entrevista concedida por John French especialmente para este número da revista, o eminente historiador “brasilianista”, com vasta e qualificada produção acerca da história social do trabalho, ressaltou que “é difícil fazer generalizações sobre países grandes como México e Brasil”. Talvez por isso, a pluralidade que nossa revista propõe, sempre pensando a realidade a partir de mosaicos interpretativos, seja um espaço profícuo para abordagens férteis e criativas. A entrevista com French foi realizada durante sua participação no II Seminário Internacional Mundos do Trabalho, ocorrido no Cpdoc/FGV. O historiador aborda a sua formação acadêmica, o interesse pelo estudo dos movimentos operários, as diferenças no processo de formação da classe trabalhadora em países latino americanos e o fenômeno do lulismo.
    No artigo Sociabilidade Operária na Primeira República, Ana Cristina Pereira Lima interpreta a atuação do Circulo de Trabalhadores e Operários Católicos de São José em Fortaleza. Fundado em 1915, a organização disputou a educação da classe operária, criando um tempo festivo e uma socialibidade que ocupava o espaço público da cidade. As formas de lazer e ocupação do tempo livre estavam no cerne das disputas para a educação da classe operária.
            Em A trouxa de D.Izaura, Marilécia Oliveira dos Santos analisou o cotidiano da Vila Operária da Companhia Empório Industrial do Norte (CEIN). Longe da imagem idília de paz e harmonia projetada pela memória oficial da vila operária criada por Tarquínio de Souza, o cotidiano estava repleto de conflitos e tensões. Entre 1949 e 1960, Dona Izaura Meireles sofreu um processo crime, sendo acusada de roubar uma trouxa de tecidos da fábrica. A partir da análise dos testemunhos prestados à justiça,  a autora discute as relações sociais no espaço de moradia.
            Em As dimensões das comissões de fábrica na história do sindicalismo brasileiro, Josué Medeiros analisa as relações de classe na fábrica ASAMA Indústria de Máquinas S/A –  a indústria era localizada na zona oeste do município de São Paulo e atuava no setor metalúrgico. O autor situa as contribuições da exeperiência da Comissão de Fábrica da ASAMA para a discussão historiográfica sobre o novo sindicalismo. Para tanto, faz importante revisão bibliográfica sobre o tema, apresentando o estado da arte sobre esse campo de estudo.


Leituras brasileiras sobre a Nova Ordem Internacional (1989-1991)

Printer-friendly versionEnvie para um amigoPDF version
Editorial: 
Edição nº 6, ano IV
Andrea Ribeiro
Mestre CPDOC/FGV e doutoranda IESP/UERJ
Resumo: 
O objetivo desse artigo é analisar algumas das leituras brasileiras sobre a Nova Ordem Internacional, no contexto das mudanças sócio-políticas internas e externas que se processavam. Essa análise foi feita a partir dos textos produzidos por três personagens da história da política externa brasileira: Celso Lafer, Gelson Fonseca Júnior e Rubens Ricupero. Através de seus textos pudemos identificar a resiliência de certos temas que são caros ao pensamento social brasileiro do século XX, como a aspiração por autonomia, o desejo de implementação de um projeto nacional e a percepção do Brasil como país que compartilha valores com o mundo ocidental.
Abstract: 
The aim of this article is to analise the Brazilian lectures about the New World Order, within the international and domestic changing context. This analisis has been done through the papers written by three Brazilian foreign politics history characters: Celso Lafer, Gelson Fonseca Júnior e Rubens Ricupero. Throughout their writings we could identify the resilience of such subjects as autonomy`s aspiration, the desire to implement a national political project and the Brazil`s self perception as a country which shares western values. Keywords: Brazilian Social Thinking, International Relations, New World Order
A década de 1990 foi um período marcado por grandes transformações na política internacional. O fim da Guerra Fria e o reordenamento do sistema internacional; a reestruturação da economia global; a redemocratização dos países latino-americanos e a emergência de novos atores (estatais e não estatais) e de novos temas (meio-ambiente, terrorismo, narcotráfico) nas relações internacionais são exemplos dessas mudanças. Nesse contexto transicional, as políticas externas dos países periféricos sofreram um processo de atualização de modo a dar conta dessas transformações. No Brasil, o processo de redemocratização e a realização das primeiras eleições diretas depois de 20 anos de regime militar davam o tom dos debates travados pelos atores nacionais. Com a eleição, em 1989, de Fernando Collor de Mello, do Partido da Reconstrução Nacional (que venceu o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores), foram colocadas em marcha reformas de caráter político-econômico com o objetivo de tornar o Estado eficiente e retomar o rumo do desenvolvimento econômico com o abandono do tradicional modelo desenvolvimentista. Diante de uma crise inflacionária sem precedentes[i], as metas propostas visavam garantir a transferência de tecnologias de ponta e o investimento de capital estrangeiro para a modernização industrial, a partir da institucionalização de uma política de comércio exterior e de uma política industrial voltadas para a reformulação do modelo de substituição de importações, que incluíam a privatização de empresas estatais e a renegociação da dívida externa com credores internacionais (Vieira, 2001). Além disso, o programa de governo incluía a normalização das relações internacionais do Brasil, com a adesão aos principais tratados internacionais, que envolviam os direitos humanos e a transferência de tecnologias sensíveis.
Ao longo desses 20 anos, o debate sobre a conformação da ordem internacional e o lugar do Brasil, e de outros países periféricos, se tornou uma área fértil para pesquisa (Cervo, 2001, 2005; Lima, 2005; Hurrell, 2001; Pinheiro, 2001; Spektor, 2010; dentre outros). Não apenas porque o Brasil hoje ocupa um lugar de destaque, haja vista a discussão sobre que tipo de liderança regional pode ou deve ser exercida e como; mas também, por conta das fontes primárias (depoimentos e documentos oficiais) que começam a ser disponibilizadas.
Recentemente, o historiador norueguês Odd Arne Westad (2005) propôs que a Guerra Fria, entendida como um conflito ideológico em dois projetos de modernização (um liberal e outro comunista), criou um espaço de atuação para os países do então chamado Terceiro Mundo, antes inexistente. De acordo com o autor, os países localizados fora do centro de poder do sistema internacional atuaram e, em certa medida, construíram uma agenda internacional própria, e não simplesmente determinada pela ingerência das superpotências. Ainda que Westad não estenda sua análise aos países da América do Sul, pode-se pensar que também para esses países havia um espaço de ação internacional que os permitiu desenvolver seus projetos de modernização nacionais.
Outro analista da Guerra Fria, o norte-americano John Ikenberry (2000) produziu um trabalho interessante sobre as estruturas sócio-políticas criadas durante esse período histórico marcado pela bipolaridade e a política do containment direcionada para a União Soviética e o seu projeto comunista. Para o autor, o maior produto da Guerra Fria foi a ordem liberal calcada na institucionalização das normas internacionais que nasceu com o fim da Segunda Guerra Mundial, que permitiu que o Ocidente e seus valores se espraiassem ao redor do mundo. Nesse sentido, vale destacar que a expansão dos valores ocidentais e a hegemonia norte-americana foram temas que dominaram as discussões sobre a conformação de uma nova ordem mundial de líderes políticos dos países periféricos como o Brasil.
As transformações que se deram no período abarcado por esse trabalho (1989-1991) não se restringiram aos gabinetes, elas também se evidenciaram nas ruas, nas manifestações populares por maior liberdade e melhores condições de vida ao redor do mundo, desde a Praça da Paz Celestial, na China, passando pelos países do Leste Europeu, da América Central, e os da América do Sul, até o Brasil. Aqui, por exemplo, em 1989, o debate dominante girava em torno da continuidade do processo de democratização e da primeira eleição presidencial direta, e não sobre o fim da Guerra Fria. As incertezas sobre a realização das eleições, as críticas às políticas sociais e econômicas do governo José Sarney (além das denúncias de corrupção) e às inúmeras greves e manifestações populares (de trabalhadores, de sem-terra, de minorias indígenas) produziram um conturbado quadro histórico. As críticas e crises se estenderiam pelos anos 1990 e 1991, com as medidas ortodoxas tomadas pelo governo Collor para conter a inflação e diminuir os gastos públicos.
Não há ainda uma reflexão sistemática sobre esse período e sobre as suas implicações para o Brasil no cenário internacional. De modo geral, e por conta das características intrínsecas do desenvolvimento das ciências sociais (inclusive a história) no Brasil, há uma resistência em pensar o país e sua trajetória como parte de uma narrativa histórica global. As explicações produzidas tendem a focar no caráter específico do desenvolvimento político, cultural e social brasileiro e nos constrangimentos externos sofridos, sem, contudo articular os acontecimentos históricos internacionais aos nacionais. As conexões existentes entre os problemas intrínsecos do Brasil em sua formação e outras experiências nacionais, próximas ou distantes, serviam muito mais como exemplo do que como componente explicativo.

A Condição Brasileira
Ao compararmos as respostas de outros países de tipo médio, como o Brasil, ao reordenamento internacional, é possível perceber as variedades de escolhas possíveis (desde o alinhamento irrestrito argentino, até o isolamento cubano). Cervo (2005) argumenta que na América Latina, a adoção de políticas neoliberais, nos anos 90, não encontrou paralelo em qualquer lugar do mundo. O Chile, ainda nos anos 70, seria o país modelo para o continente. Mais tarde, sob o impacto do período de crises econômicas, México, Venezuela, Argentina empreenderiam reformas significativas para proceder à liberalização econômica. No Brasil, Bresser Pereira (1992) chamou atenção para a resistência do empresariado nacional às reformas e ao caráter restrito de aplicação dos projetos de privatização de empresas e de abertura comercial. Se durante os anos da Guerra Fria, o Brasil pôde se industrializar e urbanizar através de um modelo de desenvolvimento ancorado no Estado, os anos 90 representariam um empecilho à manutenção desse modelo. A reflexão sobre a centralidade do Estado nos projetos de desenvolvimento, e a transmutação desse papel do “Estado-propulsor” para o de “Estado-obstáculo” como entrave ao crescimento econômico, e os questionamentos sobre a necessidade de um Estado “menor” produziram efeitos sobre o modo como pensar onde o país “deveria estar” no mundo. O que sugere que a atual posição brasileira no sistema internacional, seu maior ativismo nos foros multilaterais e sua aproximação com a América do Sul não são dados naturais, determinados a priori, mas sim frutos de opções feitas pelas elites dirigentes baseadas em formas de pensar e entender o Brasil e o mundo que tem suas raízes no pensamento social (político e econômico) desenvolvido ao longo da segunda metade do século XX.
Desde os anos 60, com o programa de Política Externa Independentedo governo Jânio Quadros, o Brasil ensaiava seus passos autônomos no terreno internacional. Durante o regime militar, a política externa do governo Geisel (1974-1979), que ficou conhecida como “pragmatismo responsável” (Lima, 1994), tinha por objetivo promover o desenvolvimento do país através do incremento de suas relações econômicas exteriores de forma não-ideológica, considerando como dada a “opção pelo sistema democrático ocidental” (Vizentini, 1995). Estabeleceu-se um contraponto em relação às políticas externas dos governos militares anteriores comumente identificadas pela literatura como de “alinhamento automático” aos interesses norte-americanos. Segundo Spektor (2010), o relacionamento desigual entre os dois países, onde era evidente a disparidade de poder, permitiu ao Brasil empreender uma associação em que era possível “manipular o poder da grande potência em favor próprio” (2010:185). Além disso, ainda de acordo com Spektor, o período foi marcado por mudanças sobre o modo de pensar as relações internacionais do Brasil com outros países, que incluía “um poderoso argumento” que passou a ser aceito tanto pelo Brasil como pelos Estados Unidos: o de que o Brasil poderia ser um dos pilares de sustentação da ordem global (2010:186). Com o declínio da détente e a desestabilização do governo de Richard Nixon (1969-1974), a fase da “relação especial” com os Estados Unidos daria lugar a uma série de conflitos bilaterais nos anos 80.
No último governo militar, o do general João Batista Figueiredo (1979-1985), temas que haviam sido evitados durante a existência do regime - como meio-ambiente, energia nuclear e direitos humanos - em virtude das resistênciasultranacionalistas dos militares, entraram na pauta de discussões políticas. Fenômeno que Seixas Correa (2006) chama de processo de "inversão do ônus da acusação" contra os países do Sul. Ele argumenta que, de vítima das ações dominadoras dos países industrializados em direção ao controle dos mercados periféricos, os países em desenvolvimento passaram a vilões, sendo responsáveis pelos males da humanidade: eram poluidores, não tinham uma política de desarmamento clara, não respeitavam os direitos humanos. Como resultado da inserção desses novos temas na agenda internacional - narcotráfico, degradação ambiental, direitos humanos, imigração ilegal, conflitos regionais e democratização - os países em desenvolvimento perderiam a capacidade de influenciar essa agenda, antes pautada pelas teses da UNCTAD e por temas como o desenvolvimento econômico e a nova ordem econômica internacional. Dada a marginalização do Terceiro Mundo, diante do “arco conceitual” do “reaganismo e do thatcherismo” (idem), o Brasil se encontrava isolado quando o primeiro governo civil chegou ao poder em meados dos anos 80.
Diante dessa situação de isolamento, a preocupação da agenda de política externa brasileira no final dos anos 80 e começo dos 90 girava em torno da possibilidade de manter o equilíbrio entre os imperativos do desenvolvimento econômico e social brasileiro e continuar atuando de forma contundente no cenário internacional. Se num primeiro momento o Brasil tinha se vinculado claramente ao grupo de países que reivindicava a mudança dos termos de funcionamento do sistema internacional, através da participação no Grupo dos 77, com o fim do período em que Estados Unidos e União Soviética representavam os modos de modernidade possíveis, o Brasil parecia não ter contra quem lutar ou por que brigar.
As linhas mestras da política externa de Sarney incluíam a criação (sic) de uma nova ordem econômica internacional, com destaque para a solução da dívida externa; a crescente prioridade à América Latina, a atenção especial à situação no Oriente Médio (Guerra Irã-Iraque); a intensificação das relações com a África, “a par do nosso repúdio ao sistema do apartheid”; o desenvolvimento do potencial das relações com a Ásia; o aperfeiçoamento da cooperação com os países de economia planificada; o desarmamento mundial; e o fortalecimento da ONU, OEA e demais organizações internacionais. Apesar de suas diretrizes bastante genéricas, pode-se perceber que o quadro no qual essa política se insere ainda estava relativamente determinado pela necessidade interna de se estabelecer o regime democrático e garantir a normalização das relações do país com o exterior. Foram dados passos importantes em direção ao desarmamento e à integração regional, com o aprofundamento das negociações com a vizinha Argentina para a cooperação na área de controle de produção de energia nuclearque deram margem à criação do Mercosul, já nos anos 90; em direção ao compromisso com o desenvolvimento sustentável, através do oferecimento do presidente Sarney para sediar a Conferência do Meio Ambiente da ONU; e em direção aos direitos humanos, com a promulgação da Constituição de 88 e a mudança de postura relativa aos problemas enfrentados pelas minorias, como violência contra mulher e índios, etc (Sodré,1995). O evento mais simbólico da política externa da Nova República foi, sem dúvida, o reatamento das relações diplomáticas com Cuba, em junho de 1986, rompidas desde 1964, pelo governo militar do marechal Castelo Branco.
Na visão do chanceler Abreu Sodré (1995), o mundo que se descortinava para o Brasil no final dos anos 80 era multipolar, com a criação de “espaços comuns” europeus, asiático, norte-americano e latino-americano. A ordem dos fatores parece refletir aqui a importância relativaque o chanceler prestava a cada um desses "espaços comuns". Nesse contexto de multipolaridade, o multilateralismo estaria em crise por conta da “falta de vontade política dos grandes atores internacionais” (1995:288). Também em Abreu Sodré identificamos um traço peculiar, mas não exclusivo, de associação dos conflitos à miséria, fazendo inclusive uma leitura similar à indiana sobre a necessidade do desenvolvimento para a paz. Um discurso de modernidade alternativo, que conciliava o capitalismo e a falta de desenvolvimento, e superava os aspectos mais radicais da teoria da dependência, fazendo coincidir o desejo de industrializar-se com o desejo de justiça social, com um mundo mais justo. O tom de resistência de seu discurso (provavelmente feito com colaboração de assessores) pode ser entendido através da análise da erosão da relação Brasil-Estados Unidos, que tinha como fundo não apenas os problemas “brasileiros”, mas principalmente o reposicionamento da política externa norte-americana para o mundo e para a América Latina mais especificamente. A política intervencionista do governo Reagan, em termos econômicos e políticos - como no caso da ilha de Granada, da Nicarágua e de Honduras – somada à linguagem apocalíptica do presidente, compôs o quadro de recrudescimento da Guerra Fria e de endurecimento em relação à América Latina.
Em uma reformulação da noção de ocidentalidade do Brasil, Jaguaribe (1985) diria que não seria preciso que o Brasil fizesse algum tipo de esforço para tornar-se ocidental, porque seu passado já havia lhe legado essa condição. Por outro lado, a superação do atraso, reformulado em termos de ascensão ao Primeiro Mundo, exigiria sim um esforço conjunto: do Brasil com a comunidade internacional. O investimento internacional no Brasil tinha enormes chances de retorno (em energia, alimentos e produtos secundários), mas não interessava aos Estados Unidos. A não complementaridade das economias norte-americana e brasileira faria com que o multilateralismo se tornasse condição sine qua non para a atuação internacional do Brasil democrático (Jaguaribe, 1985).
A política externa do governo Collor também tinha um discurso de resistência às imposições dos países industrializados, mas estava repleta de exemplos de aproximação do Brasil com o Primeiro Mundo (viagens presidenciais aos Estados Unidos, ao Japão, e à Europa), que sinalizavam para o abandono da retórica terceiro-mundista e de confronto com o sistema internacional. Nesse processo de construção da democracia, a interpretação da diplomacia brasileira sobre o ambiente externo e a visão externa sobre o país condicionaram o seu posicionamento internacional e a definição de sua política externa. Mas, mesmo antes da assunção de Fernando Henrique Cardoso ao poder, o projeto de inserção internacional do Brasil estava se desenhando. Lima (1994) alega que razões ideológicas e pragmáticas explicam o retorno ao padrão da "aliança estratégica" com os Estados Unidos durante o governo Collor. Esse fenômeno tinha como motivação a possibilidade de ocorrência daquilo que Adam Przeworski (1993) chamou de "modernização via internacionalização”, e a necessidade de remover os pontos de fricção com os Estados Unidos a fim de restabelecer a reputação brasileira frente às agências econômicas internacionais e sensibilizar os países credores no que se refere à negociação da dívida externa. Mesmo considerando que o projeto liberal tenha surgido como alternativa ao fracassado modelo de desenvolvimento voltado para dentro (especialmente nos países do Sul capitalista e do Leste europeu), no caso do Brasil, a adoção do projeto de reforma do Estado adquiriu características singulares, porque se chocava com os valores hegemônicos antes vigentes entre as elites brasileiras (especialmente os militares), como a soberania nacional, a autonomia e a industrialização como projetos nacionais (Lima, 1994).
Mas então, qual foi a influência ou em que medida esteve presente a preocupação com o projeto nacional nas percepções dos formuladores de política externa brasileira? Segundo Maia (2009) o projeto nacional pode ser entendido como conceito nativo empregado pelas elites intelectuais brasileiras que buscam formar ou modelar a identidade do país e o senso de destino no mundo afora. Ele identifica repertórios e linguagens distintos na modelagem do projeto nacional que contemplavam a ideia de periferia, o papel do Estado como instrumento do desenvolvimento e conteúdos culturais da identidade brasileira. Esses repertórios continuaram em operação mesmo depois que as condições externas haviam se alterado. A ideia de projeto nacional está freqüentemente associada ao chamado desenvolvimentismo nacional, programa político-econômico que se desenvolveu no Brasil a partir dos anos 50 e que tem ligações com as teorias formuladas pela CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe da ONU). Nesse sentido, a resiliência do discurso do projeto nacional, diante da dissolução das condições materiais que deram lugar ao desenvolvimentismo chama atenção.

A tríade da normalização:
Selecionamos três personagens para a análise das questões propostas para este trabalho: Gelson Fonseca Júnior, Celso Lafer e Rubens Ricupero. A escolha dos personagens não dá conta de todas as dissidências internas ao Itamaraty, mas reflete uma das possíveis vertentes de atuação em política externa desenvolvidas[ii].
Gelson Fonseca foi assessor do secretário-geral Paulo Tarso de Flecha e Lima durante o governo Sarney. À convite do embaixador Marcos Coimbra, cunhado do presidente Collor, atuou como assessor especial da presidência. Foi o responsável pelos discursos e pela agenda presidenciais. Com o impeachment de Collor, Fonseca deixou o cargo e mais tarde foi convidado (por Fernando Henrique Cardoso) a presidir a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), ligada ao Ministério das Relações Exteriores (MRE). Como presidente desta instituição, organizou uma série de seminários para discutir temas de política internacional, como aqueles que resultaram na publicação da coleção Temas de Política Externa. É interessante perceber que Fonseca não se coloca como um formulador político, mas como mero executor: "eu não estava ali formulando política externa, fazendo propostas políticas". Embora ele se coloque como figura secundária no processo de formulação da política externa brasileira, sua permanência e crescente importância ao longo do período em análise o qualifica para compor a tríade de "agentes da normalização", considerando que esse grupo assumiu um papel fundamental na afinação do discurso do Itamaraty e do governo Fernando Henrique.
Celso Lafer entrou no MRE em 1992, no contexto de uma reforma ministerial promovida pelo presidente Collor. A reforma havia sido desencadeada pela necessidade de "ampliar a base parlamentar" do governo em meio a uma crise institucional. Dessa reforma o PSDB, partido ao qual Lafer era filiado, se recusava a participar. Seu nome foi indicado pelo então ministro da Fazenda, Economia e Planejamento, Marcílio Marques Moreira, amigo íntimo de Lafer, "porque ele [Moreira] sentia que o entrosamento entre economia e relações exteriores era fundamental para o projeto de modernização que tinha em mente e para a visão que o presidente tinha sobre a inserção internacional do Brasil" (Lafer, 1993:271). O convite só foi aceito depois de uma longa conversa com o presidente, articulada por Moreira, ao final da qual ele sairia com a impressão de que "teria a oportunidade de servir ao país iniciando algo novo e criativo" (Lafer,1993:273). Na visão de Lafer, o Itamaraty estava consciente sobre a mudança que havia ocorrido no mundo, mas esse diálogo não tinha um foco nítido. Parte dessa falta de foco se devia a uma questão administrativa: a reforma estrutural no Itamaraty, com a divisão da Secretaria-Geral, enfraqueceu o ministério. De modo que Lafer, ao assumir, reunificou a Secretaria-Geral e nomeou Luiz Felipe Seixas Correa para ocupá-la. Como primeira missão, o ministro teve que organizar a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Conferência do Rio). Durante sua gestão, Lafer também comandou as negociações em torno do Acordo Quadro de Cooperação entre o Brasil e a Comunidade Econômica Europeia (CEE), nos campos comercial, científico-tecnológico e social. Ainda presidiu a delegação brasileira enviada à 47ª Assembleia Geral da ONU às vésperas de sua saída do ministério, no final de setembro de 1992. Na ocasião, defendeu a reformulação do Conselho de Segurança com a inclusão de outros países, como o Brasil e a Argentina, que disputavam esta posição, e a continuidade dos esforços para o desarmamento nuclear. Participou também da 22ª Sessão da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), onde o Brasil assinou o documento de adesão à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o chamado Pacto de São José. Em outubro de 1992, com a saída de Collor, Lafer seria substituído por Fernando Henrique Cardoso no MRE. Em 1995, Lafer seria nomeado embaixador-chefe da missão permanente do Brasil em Genebra.
Rubens Ricupero, embaixador de carreira, foi subchefe da Casa Civil do presidente Sarney, até ser nomeado assessor especial "na vaga criada pela indicação de Célio Borja para o Supremo Tribunal Federal" (Ricupero, 2011). Depois de 1987, passou a atuar como representante brasileiro no GATT e chegou a presidir o Grupo Informal de Países em Desenvolvimento e o Comitê de Comércio e Desenvolvimento. Nesta função apresentou suas críticas aos subsídios e às práticas comerciais ilegais empreendidas pelos países industrializados, notadamente os EUA e a CEE. Em 1991, foi nomeado embaixador em Washington, substituindo Marques Moreira que, por sua vez, seria chamado para ocupar o cargo de ministro da Economia, Fazenda e Planejamento de Collor. O nome de Ricupero também foi sugerido por Moreira ao presidente Collor, que por sua vez o sugeriu ao então ministro das Relações Exteriores, Francisco Rezek (Moreira, 2001:261). No período que passou em Washington, foi chefe da delegação do Brasil ante a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas e da delegação do Brasil na Conferência sobre Desarmamento, além de ter atuado como representante governamental brasileiro frente ao Banco Mundial, ao FMI e ao Banco Africano de Desenvolvimento. Como embaixador, colaborou com a organização da Conferência do Rio, presidindo o Comitê de Finanças. No governo Itamar, em meados de 1993, seria nomeado ministro extraordinário para Articulação de Ações na Amazônia Legal. Com a fusão desse ministério, Ricupero passaria a ser o ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal. Sua gestão duraria apenas alguns meses. Logo ele assumiria o Ministério da Fazenda, então ocupado por Fernando Henrique Cardoso, que saíra para candidatar-se à presidência da república, em abril de 1994. Nesse cargo teve um papel de destaque como responsável pelo lançamento do Plano Real. Com a eleição de Fernando Henrique deixou o ministério da Fazenda para se tornar embaixador do Brasil na Itália, em 1995.
O primeiro aspecto relevante que gostaríamos de ressaltar são as ideias formuladas por nossos atores para entender o mundo que surgiu com o fim do conflito bipolar. Ricupero, no seu texto Os Estados Unidos da América e o Reordenamento do Sistema Internacional (1996[iii]), faz uma crítica tanto a tese de Fukuyama quanto a de Huntington. A interpretação de Fukuyama sobre o fim da História é considerada ingênua, ainda que não se descarte a tendência homogeneizante mundial, pressionada pela globalização econômica. Ricupero também não concorda com a explicação de Huntington, porque acredita que “teria havido algum exagero em identificar no nacionalismo o candidato mais plausível a sucedâneo da disputa ideológica da Guerra Fria” (p.103). Como o autor entende que a falência econômica do bloco do Leste foi a principal causa do fim da Guerra Fria (o fracasso do modelo de economia planificada dos países comunistas, que teria sido incapaz de suportar a competição com a dinâmica economia capitalista do bloco ocidental), o grande desafio do momento Pós-Guerra Fria seria encontrar o equilíbrio econômico que permitisse o desenvolvimento de "todos os povos do planeta", afim de evitar o "retorno à barbárie e a falta de civilidade" provocados pela pobreza. Nesse sentido, a persistência dos fenômenos do desemprego e do afluxo de migrantes aos grandes polos econômicos adicionados às práticas políticas protecionistas responsáveis pela reprodução do subdesenvolvimento seriam ameaças graves ao sistema capitalista como um todo. O caminho proposto por Ricupero seria o desenvolvimento econômico conforme os postulados do liberalismo econômico. Daí sua insistência na inflação como mecanismo corrosivo e antidemocrático.
Nesse texto, Ricupero também apresenta sua explicação para a ordem internacional do Pós-Guerra Fria, que seria caracterizada pela homogeneidade em termos políticos (normas internacionais e princípios democráticos), pela tendência à homogeneização em termos econômicos, e pela heterogeneidade estratégico-militar que tinha como resultado a unipolaridade dos Estados Unidos. Esse era um mundo marcado pelo fenômeno da globalização. Nesse caso, o fenômeno da globalização, caracterizado pelo crescente estímulo ao intercâmbio de grandes empresas, cada vez mais centrais e mais influentes no comércio mundial (especialmente as dos setores manufatureiros), traria consigo um forte impulso para uniformizar normas e padrões internacionais e para a concentração dos investimentos estrangeiros diretos em torno dos Estados Unidos, da União Europeia e do Japão, os três grandes polos de irradiação em que: “O padrão de acumulação reflete com nitidez o domínio de cada um desses centros dinâmicos sobre a área de influência geográfica situada em sua periferia” (Ricupero, 1996:90). No caso do continente americano, sob a influência majoritária dos Estados Unidos, o Brasil seria exceção, pois a soma das inversões europeias seria maior do que a das inversões norte-americanas. Essa afluência dos investimentos diretos aos grandes pólos do poder econômico, por sua vez, atrairiam os financiamentos, as correntes de comércio e a transferência de tecnologia, e produziriam o fenômeno da concentração econômica, fazendo com que os países ricos se tornassem cada vez mais ricos. Nesse sentido, a globalização é entendida como um fenômeno negativo, que ameaçaria os países em desenvolvimento em geral, e mais especificamente, o Brasil. A ordem mundial que emergiria desse movimento de intensificação dos fluxos econômicos comerciais e financeiros (multifacetada e pluralista), estaria em contraste com o predomínio dos Estados Unidos na área estratégico-militar:

Articulando-se as peças desse mosaico, o desenho que emerge é o de um sistema internacional complexo, de certo dualismo, com tendência maior para o multi do que para o unipolarismo. Trata-se, no entanto, de modalidade sui-generis do multipolarismo, devido, em primeiro lugar, à presença de um líder […] Desta vez, em parte por sobrevivência de uma das alianças do regime anterior e, mais ainda, por serem os EUA detentores do poder estratégico hegemônico e assim mais iguais do que os outros, o sistema tende ao multipolarismo mas obedece, mais ou menos claramente, à liderança americana (Ricupero, 1995:96)


Os Estados Unidos teriam uma “vantagem inigualável” por poderem atuar em todos os cenários, o que lhes conferiria “superioridade” e lhes permitiria exercer a função de “catalisadores das coligações de geometria e composição variáveis”, porque poderiam atuar como administradores de crise em contextos diversos (idem). A capacidade hegemônica norte-americana não era absoluta, como os fracassos das intervenções militares norte-americanas na Somália, na Bósnia e no Haiti, nos anos 90, “Mas, sem eles ou contra eles, os outros podem muito pouco” (Ricupero, 1995).
Ricupero ressalta ainda uma terceira característica da nova ordem: além da manutenção de uma antiga aliança [ocidental], do equilíbrio complexo [vários cenários em que não há um único líder hegemônico], há também o recurso frequente ao multilateralismo para legitimar as ações norte-americanas. O multilateralismo é percebido como uma característica em expansão da nova ordem, ele é também alvo de críticas. Ao mesmo tempo em que a incorporação de novos atores aos organismos multilaterais apontava para a maior democratização do sistema internacional, percebia-se uma tendência por parte das grandes potências em utilizar tais organismos como meios para legitimar suas propostas de gerenciamento das relações internacionais. Segundo essa lógica, a incorporação de novos atores não representaria necessariamente a “abertura do sistema internacional” e a promoção dos valores ocidentais em todo o planeta, mas o aprofundamento das diferenças econômicas e políticas (e culturais) tendo como resultado o aumento da distância entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Enquanto representante brasileiro no GATT, Ricupero foi crítico à atuação norte-americana em relação à América Latina e considerou um exagero “falar-se em novo ordenamento quando o que se pretende não é substituir totalmente um sistema, como se fez em 1944-45, mas apenas adaptar aos novos tempos as instituições do período anterior [ONU, FMI, Banco Mundial]” (1996:101). Sua visão reúne elementos díspares ao diagnóstico sobre a nova ordem: ao mesmo tempo em que, no plano discursivo interno, há uma tentativa em de se diferenciar de uma linha de reflexão atrelada ao pensamento político brasileiro mais nacionalista (tanto nas agências governamentais como nas corporações industriais nacionais), produz-se também uma revalorização da identidade nacional e do papel do Estado, assim como se mantém a crítica à ingerência norte-americana no mundo. Nessa crítica, a possibilidade de ingerência seria responsável por uma desconfiança quanto à eficácia e a efetividade da ordem nascente.
Enquanto em Ricupero as explicações têm um fundamento econômico-estrutural, em que a competição econômica teria sido responsável pelo fim do comunismo e as negociações comerciais seriam o meio mais eficiente de promover a justiça social; em Lafer e Fonseca verificamos uma ênfase nos fatores ideais de promoção da paz e de valorização das identidades em congruência com uma linha de pensamento idealista das relações internacionais, como a escola inglesa, em que o desenvolvimento de organizações internacionais compartilhadas é essencial para garantir a crescente estabilidade da ordem internacional.
No artigo Questões para a Diplomacia no Contexto Internacional das Polaridades Indefinidas (1994), os autores apresentam suas observações sobre a ordem internacional do Pós-Guerra Fria a partir da construção de um mundo que se encontra em uma “situação de transição”. Por esta razão, o Brasil como país médio, ou país-baleia (Lafer, 1992), precisaria adaptar-se “criativamente”, atualizando o seu modo de fazer política externa. Nesse contexto, os postulados teóricos vigentes (realismo e racionalismo) - que dominaram a produção de conhecimento na área de relações internacionais - não seriam suficientes para entendermos as mudanças em curso.

Uma das características principais da Guerra Fria era a de que os diversos campos tinham uma dinâmica clara, comandada por um processo global de rivalidade, em que as polaridades estavam definidas. (…) É certo que um mundo de polaridades definidas é mais previsível, o que, em certas circunstâncias, representa um componente favorável às escolhas estratégicas de longo prazo. Por isso, é também um mundo mais perigoso em termos globais (os riscos da falha de dissuasão e a tendência à globalização dos conflitos regionais) e, por isso mesmo, as pressões para o alinhamento diplomático são constantes. (Lafer e Fonseca, 1994:51).

Em um mundo repleto de incertezas, o Estado deve agir rápido, e de forma certeira para “ganhar” o jogo das disputas de poder internacionais, e deve “construir” com rapidez e sensibilidade suas estratégias de inserção. Há aí uma demanda pela produção de um projeto nacional via reformulação da política externa cujo objetivo era garantir a modernização e o desenvolvimento econômico.
Os autores fazem uma distinção clara entre o mundo da Guerra Fria, cuja compreensão da ordem esteve fundada sobre a bipolaridade, com foco sobre o sistema internacional, sobre a dissuasão nuclear, sobre o equilíbrio do terror, sobre a hierarquia e a sujeição dos países à relação entre as superpotências (1994:51-52), e o mundo do Pós-Guerra Fria, em que a ordem deveria ser entendida através da observação de suas “forças básicas” (uma adaptação do termo “forças profundas" de Pierre Renouvin): as forças centrípetas, que cumprem uma função agregadora e são impulsionadas pela dinâmica da globalização; e, por outro lado, as forças centrífugas, desagregadoras, com impulso fragmentador, que guardam relação com as identidades nacionais.
As forças econômicas centrípetas, antes vistas como uma consequência descontrolada (positiva para uns, negativa para outros) do mercado, passariam a constituir agora a infraestrutura de um mundo de paz e desenvolvimento (1994:56). Para melhor entender a dinâmica dessas forças que configurariam o sistema internacional como intrinsecamente contraditório, Lafer e Fonseca defendem que o Pós-Guerra Fria compôs-se de dois ciclos distintos. O primeiro ciclo seria marcado pelo otimismo na criação de um consenso em torno dos valores liberais da democracia e do livre-comércio, pela crença na vitória do liberalismo e em suas instituições. A Queda do Muro de Berlim (1989) e a Guerra do Golfo (1990) seriam os grandes marcos do período. O tema da Nova Ordem Internacional teria passado a fazer parte da agenda internacional não mais como uma reivindicação dos países pobres, mas como um acordo de comunidades irmãs. É à derrota de Saddam Hussein, em 1991, que os autores atribuem o crescimento do otimismo na ação do Conselho de Segurança da ONU, que por sua vez teria superado os impasses produzidos pelo poder de veto das cinco potências do período da Guerra Fria. Nesse contexto, o sistema internacional parecia estar se transformando em uma autêntica comunidade internacional composta por países ou sociedades que compartilham valores e produtos sem fronteiras ou preconceitos. Nesse quadro, “a própria noção de soberania teria de ser refeita, já que passaria a estar balizada por necessidades da comunidade internacional” (1994:57).
No primeiro Pós-Guerra Fria “dois modelos de hegemonia” poderiam ser vislumbrados. No primeiro modelo, os Estados Unidos emergiam como único líder, caracterizando o sistema como unipolar. No segundo, os Estados Unidos conservava-se como líder, mas seus movimentos seriam acompanhados por outros países desenvolvidos; seria o modelo chamado de coalizão legítima ou, em uma vertente mais otimista, o modelo da democracia em expansão. A expectativa gerada por esse otimismo liberal parecia também indicar que o grau de conflito entre formas de legitimidade seria baixo (diferentes visões de mundo não implicariam em conflitos militares) e que a disjunção entre poder e ordem (distância entre o desejo do que tem o poder de maximizá-lo e a possibilidade de manter a ordem estável) estaria resolvida. Aquele que possui poder e o que possui legitimidade coincidiria, seria a encarnação do desejo de todos os atores internacionais.
Como o modelo utilizado proposto pelos autores indica, as forças centrípetas combinam impulsos econômicos e valores políticos, e consequentemente, produz a necessidade de reforço das instituições internacionais. Dessa forma, a conclusão de que uma ONU reformada e pluralista poderia garantir a segurança coletiva parece lógica. Por essa razão, o enfraquecimento do Estado diante dos processos transnacionais, forçaria a acomodação das soluções nacionais em termos cada vez mais próximos dos comandos universais (1994:59). O desmantelamento da União Soviética e a decomposição da Iugoslávia, em 1991, marcariam o início do segundo ciclo do Pós-Guerra Fria. Esse ciclo seria definido pela emergência de nacionalismos e disputas étnicas (como a Guerra dos Bálcãs) e pela implantação de práticas capitalistas promotoras de conflito em ambientes incipientes onde antes vigorava a economia planificada. As forças centrífugas e desagregadoras dominariam e reverteriam “o otimismo iluminista de 1989” (1994:60), de modo a colocar em xeque a legitimidade das organizações internacionais na resolução de conflitos.
Nesse debate, é curioso notar que, para Lafer e Fonseca, a globalização e as forças centrípetas não necessariamente coincidem; ao contrário, consistiriam coisas diferentes, guiadas por interesses e valores distintos (1994:63). Dessa forma, a dedução aparentemente lógica que associa o maior fluxo econômico à geração de maior estabilidade sistêmica não é corroborada pelos autores, que advogam a necessidade de uma “globalização qualificada” que leve em conta a heterogeneidade de valores compartilhados entre os diversos atores internacionais. Se coexistirem percepções distintas sobre a globalização e mesmo sobre os modelos de produção capitalistas no interior do bloco ocidental em função da falência das práticas neoliberais, novas formas de legitimidade deveriam ser buscadas via diálogo. Essa revisão conceitual se estende para a discussão acerca da obsolescência do Estado. Se, no primeiro ciclo Pós-Guerra Fria, o Estado era entendido como um obstáculo ao desenvolvimento, depois de 1991, os questionamentos passam a girar em torno da maneira como o Estado poderia lidar com as forças da globalização.
Há muitos pontos em comum entre os modelos de Ricupero, de um lado, e Lafer e Fonseca, de outro. Ambos destacam a dificuldade em definir o sistema e sua inerente contradição: a harmonia mundial em torno dos valores ocidentais é contrastada pelo desequilíbrio na distribuição dos recursos econômicos no plano internacional; a posição de liderança dos Estados Unidos é questionada dadas condições de governabilidade do sistema "de um líder"; e o Brasil, como país semi-industrializado, é visto como capaz de realizar seu "projeto nacional" autônomo e colaborar positivamente para a estabilidade da ordem nascente.

O lugar do Brasil na NOI
A identificação desse mundo que está “em transição” entre o novo e o velho modelo de modernização, colocava novas questões para os diplomatas brasileiros: como conviver com uma potência cujos recursos de poder são tão grandes em um mesmo continente? Quais seriam os benefícios ou malefícios dessa convivência? Lafer (1993), em entrevista concedida ao CPDOC, coloca o problema:

a política externa brasileira (...) havia sido pensada tendo em vista a relação Leste-Oeste e a relação Norte-Sul, esta articulada nas brechas da primeira. O fim da relação Leste-Oeste significou grosso modo que, do ponto de vista político, o movimento dos não-alinhados, no qual sempre mantivemos uma atitude de observadores reticentes, perdeu seu objetivo, e do ponto de vista econômico, o Grupo dos 77, onde nossa ação sempre foi muito importante, viveu uma redução de seus recursos de poder (1993:6).

 A substituição de um regime autoritário por outro democrático não significou a imediata substituição de um regime econômico fechado e protegido por um sistema aberto de livre-comércio estrito senso. O grande dilema brasileiro, no entanto, permanecia sendo a modernização econômica. Contudo, o caminho da modernidade exigia investimentos em qualificação de mão de obra, desenvolvimento de tecnologia e abertura comercial. O diagnóstico comum ao grupo estudado era claro: o mundo tinha mudado, a estrutura econômica tinha se alterado, e o modelo de desenvolvimento adotado pelo país, com industrialização via substituição de importações em regime protecionista já não respondia às exigências de um mercado global competitivo. Essas exigências forçariam a transformação do perfil de produção das economias periféricas, especializadas na produção de bens primários, com emprego de mão de obra barata e não qualificada. A tendência decrescente do preço desses produtos levaria essas economias a um impasse. A modernização era urgente.
A partir de suas análises sobre a configuração da ordem internacional, nossos personagens também produziram indicações de ação para a inserção do Brasil no mundo.
Em seu texto O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 anos de uma relação triangular publicado em 1995, Ricupero analisa as relações internacionais do Brasil com seu entorno continental. Em sua opinião, não se pode abstrair o papel “muitas vezes determinante” que os Estados Unidos representou nas relações com a América Latina. De modo que, para se entender o papel da América Latina na política externa brasileira, deve-se pensar em termos de uma relação triangular caracterizada simultaneamente caracterizada por assimetria (quando diz respeito às relações bilaterais do Brasil e dos países latino-americanos com os EUA) e por simetria (o relacionamento do Brasil com a América Latina).
A aliança do Brasil com os Estados Unidos teria sido marcada por um cálculo estratégico baseado tanto na existência de uma “convergência ideológica” no campo dos valores e das aspirações, como no reconhecimento de um diferencial de poder entre os dois países. Essa relação teria determinado a subordinação da América Latina às relações preferenciais com o maior parceiro comercial do Brasil. Essa aliança teria deixado de ser “não escrita”[iv] para formalizar-se com o alinhamento brasileiro aos Aliados na Segunda Guerra Mundial em 1942 e finalmente com a assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) de 1947, que estabeleceu os marcos da cooperação militar intracontinental. Com a Guerra Fria e o acirramento dos conflitos ideológicos expressos pela crescente bipolarização do sistema internacional, assim como a escassez de recursos norte-americanos destinados aos países latino-americanos, vai se desenvolvendo o que Ricupero chama de “diálogo de surdos”. Esse diálogo é caracterizado pela distância entre os clamores norte-americanos por engajamento latino-americano nos temas de segurança, e as percepções desses países sobre o vínculo existente entre o subdesenvolvimento e a instabilidade política. De um lado, a defesa intransigente do livre-comércio e da necessidade de investimentos privados nacionais e estrangeiros com intervenção mínima do Estado; de outro, a defesa de um modelo alternativo de desenvolvimento ancorado pelo processo de industrialização via substituição de importações, em que o Estado teria um papel fundamental, cuja expressão ideológica seria a teoria do desenvolvimento formulada pela CEPAL.
Ainda segundo Ricupero (1995), no Brasil, o fortalecimento dos grupos nacionais e de uma vertente de pensamento nacionalista com fundamentos econômicos funcionaria como motor da desintegração do “consenso ideológico anticomunista da Guerra Fria” nos anos 50 e 60, o qual nos aproximava dos Estados Unidos (p.335).
As tensões entre Brasil e os Estados Unidos ficariam evidentes durante o governo  Carter (1977-1981). Como reação às pressões norte-americanas por maior liberdade política e pelo abandono do projeto nuclear brasileiro, o governo Geisel denunciou o tratado militar Brasil-Estados Unidos em 1977. Esse período de divergência nas relações Brasil-Estados Unidos teria correspondido, segundo Ricupero (1995), a um movimento de aproximação com os governos latino-americanos no governo do general Figueiredo, momento marcado pela gestão do chanceler Saraiva Guerreiro durante a qual se firmou o acordo tripartite entre a Argentina, o Brasil e o Paraguai que encerrou a questão das águas compartilhadas na região de Salto de Sete Quedas (RS), e adotou-se a posição de “neutralidade relativa” diante do conflito das Malvinas, entre a Argentina e o Reino Unido, em 1982.
Contudo, afirma Ricupero, a “latinoamericanização” da política externa brasileira só poderia se completar depois da segunda crise do petróleo (1979), que deu impulso ao processo de reorganização econômica mundial e produziu uma longa década de estagnação econômica na América Latina - a “década perdida”. Além disso, a instabilidade latino-americana, caracterizada pelo recrudescimento da crise política centro-americana e a reação intervencionista dos Estados Unidos (Panamá e Guatemala), permitiram uma convergência única dos interesses de países como o México, a Venezuela, a Colômbia, e o Brasil, em torno da concretização do processo de redemocratização da região. É nesse contexto que se destacam a participação brasileira no Grupo do Rio (que reunia Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, ao lado de México, Venezuela Colômbia e Panamá) e a aproximação com os países vizinhos - a Argentina, o Uruguai e o Paraguai - em torno dos temas da redemocratização e do desenvolvimento econômico. Dessa forma, o processo de negociação das dívidas externas dos países latino-americanos teria sido permeado pelas sucessivas crises econômicas e políticas com os Estados Unidos (que atuavam tanto no plano multilateral quanto no bilateral) que produziram um quadro de escassez de recursos econômicos e de dependência dos programas de ajustes das agências internacionais.
À divergência entre o Brasil e os países latino-americanos em relação ao ritmo de superação da crise econômica, e em razão da dificuldade brasileira em superá-la, acrescentava-se a própria crise política interna. Essa sobreposição de crises reforçou a imagem internacional do Brasil como um país que não estava dando certo, como um perdedor, um país atrasado. Ainda assim, a possibilidade de inserção do país em uma nova ordem internacional é avaliada com otimismo por Ricupero, porque forneceria as condições necessárias para o país exercer sua capacidade de iniciativa e autoafirmação. Descartados o “maniqueísmo bipolar” e o perigo de destruição nuclear, que davam margem ao alinhamento automático dos países periféricos e reprimiam as reformas sociais em escala global, tem-se um quadro de reordenamento mundial cujo signo é a democratização. Dentro desse quadro montado pelo autor, as chances do Brasil atuar de forma significativa seriam grandes, já que o país teria “condições de contribuir, junto com os EUA e outros países, para muitas das coalizões que serão crescentemente necessárias para enfrentar os grandes desafios globais” (Ricupero, 1995:353).
Quais seriam as credenciais brasileiras para inserir-se no mundo? Para Ricupero, o país poderia ser considerado um exemplo para a região, por não ter se desviado da promoção da democracia como um valor, nem abandonado a defesa de ações multilaterais para atingir seus interesses. A atuação brasileira na organização e no encaminhamento da Conferência do Rio sobre Meio Ambiente e o engajamento brasileiro no tema da desnuclearização continental (como signatário do TIAR, parceiro da Argentina na ABACC e defensor do desarmamento em escala global) poderiam então ser mencionados como exemplos dessa credencial brasileira, que vincularia o Brasil ao mundo ocidental. Como o Brasil não era nem uma potência nuclear, nem uma potência militar regional, não poderia mais representar uma ameaça à paz global. Essa convergência de valores seria responsável pela aproximação do Brasil à potência regional, os EUA, nesse momento. Essa aproximação, na visão de Ricupero, mais uma vez, não se traduz por subordinação. Não tendo “seguido” a onda de abertura econômica de países como o México e o Chile, o Brasil deveria lançar mão de um “projeto nacional” a fim de superar a “partir de dentro” os constrangimentos externos criados pela dívida externa e pelo aumento da dependência econômica (1995:354): “com o êxito da estabilização e do retorno do crescimento, o alinhamento é desnecessário e voltam a existir as condições de autonomia e de diversificação da cooperação externa (idem)”.
Por essas razões, o Brasil teria um lugar marcado no grupo de países emergentes com capacidade de influir no cenário internacional e de atuar de forma pró-ativa. Mas havia um único caminho para a realização dessa capacidade, reformar-se internamente, controlando a inflação e retomando a trilha do desenvolvimento e participando ativamente da política internacional. A política exterior então teria um papel fundamental para a consecução desses objetivos, porque seria capaz de produzir o consenso necessário à atuação internacional.
Fonseca e Lafer (1994) defendem, como já dissemos, uma globalização qualificada, que combinasse integração econômica com soberania estatal. Nesse sentido, a ação diplomática deveria ser resultado do discernimento entre a perspectiva verdadeiramente nacional e uma perspectiva global para as modalidades de inserção internacional. Não há, sob essa perspectiva, uma relação necessária entre a supressão da autonomia estatal e o processo de globalização, mas, ao contrário, a globalização seria benéfica para o Brasil porque lhe permitiria aperfeiçoar seus mecanismos institucionais, inclusive diplomáticos, modernizando-os, democratizando-os, seguindo a “linha de uma adaptação criativa”.
Os autores defendem uma posição ativa do Brasil no sistema internacional. Uma posição que permitisse ao país exercer sua autonomia de potência média. Essa defesa não se caracteriza apenas como um projeto nacional defensivo, mas, ao contrário, tem um forte conteúdo afirmativo, que advoga inclusive uma capacidade de transformar o sistema internacional através da imposição do valor da tolerância: “Na verdade, as regras a presidirem os complexos equilíbrios entre globalização e autonomia é que podem levar a uma ordem mais justa e mais estável, mais permeada pela tolerância” (1994:70) porque “só com uma visão própria, portanto autônoma, do processo internacional, teremos condições de influenciar e de nos valer dessas indefinições” (1994:71). Ainda que, de um lado, haja uma inegável crítica à globalização enquanto processo de reposição hegemônica (que permitiria que as potências atuassem de forma intervencionista), por outro, não há uma solução que prescinda da relação com o mundo externo, é preciso se inserir: “a autonomia só será exercida com sucesso se levarmos em conta a necessidade de aceitar a inevitabilidade da globalização e soubermos aproveitar a sua dinâmica” (1994:71).
Para alcançar os objetivos definidos pelos autores, seria preciso desenvolver uma ação diplomática que levasse em consideração: a dispersão da agenda internacional com a importância cada vez maior dos temas ligados aos direitos humanos, ao meio-ambiente, à migração, etc; o novo papel, atribuído à diplomacia, de mediadora dos diversos interesses defendidos pelos vários grupos sociais nacionais (estatais e não-estatais); e a importância da tolerância como “valor-guia” da ação internacional do país.
Lafer e Fonseca defendem uma posição pró-ativa do Brasil no cenário internacional configurado nos anos 90, fundamentando o argumento sobre as credenciais que o país teria: a estabilidade política adquirida com a redemocratização (nesse sentido, Lafer destacou algumas vezes a importância da conclusão do processo de impeachment do presidente Collor como etapa fundamental para o fortalecimento democrático); o histórico diplomático do país, baseado na estabilidade do Ministério das Relações Exteriores, fruto do processo de burocratização e institucionalização ocorrido ao longo da segunda metade do século XX, que permitiu que os diplomatas compusessem um corpus coerente e fortalecessem seu papel de formuladores da política externa.
Diferente de Ricupero, que, em função de sua experiência como representante brasileiro nos foros econômicos multilaterais, sublinha o aspecto econômico das credenciais brasileiras, Fonseca e Lafer dão maior destaque aos aspectos, digamos, político-diplomáticos porque acreditam que essas credenciais são fruto "da própria história pacífica do país no cenário regional e mundial” (1994:77).
Em outro texto[v], Lafer (1993) define mais claramente as estratégias  fundamentais para garantir a inserção internacional: “visão de futuro”, “adaptação criativa” e “parcerias operacionais”. A primeira implicava estabelecer um nexo entre a realidade e a vontade de um país. A segunda estratégia consistia em ter a capacidade de transformar as situações aprioristicamente desvantajosas em oportunidades para fortalecer vínculos com outros governos através de uma atuação multilateral eficaz. A noção de “parcerias operacionais” guarda estreita relação com a percepção de que o Brasil é um país de interesses gerais que poderia exercer diferentes funções no cenário internacional, especialmente a de mediador entre os vários povos. No campo econômico, o país tinha necessidade de estabelecer parcerias comerciais com os EUA, com a CEE e com o Japão, seguido por países asiáticos e, por último, com a América Latina. Para ele, a América Latina “não é [seria] uma parceria, mas […] a nossa circunstância” (Lafer, 1993:78). Ele enxergava nichos de oportunidades também na China, em Israel e no Irã.
Nesse contexto de transição econômica e política, os temas de integração regional e de fortalecimento de blocos econômicos passam a ser motivo de debate. O mundo parecia caminhar para a interdependência, e o Brasil deveria caminhar junto. A aproximação com a Argentina já estava em curso, mas qual modelo seguir: o da Comunidade Europeia, atrelado a integração econômica e monetária, ou o dos Estados Unidos de formação de uma área de livre comércio sem coordenação política?
Fonseca (1998)  reforça a posição de Lafer, de que a América do Sul (não mais a América Latina) seria a nossa "circunstância". Em uma nova reformulação, agora conectada com as transformações internacionais, a integração voltava a ser projeto, mas reduzia seu raio de ação. Nos anos 90 e início de 2000, a política externa brasileira incorporaria em seu discurso a ideia de integração da América do Sul, realizada com a constituição do Mercosul com Argentina, Paraguai e Uruguai, e a adesão de Estados associados como a Bolívia, o Chile, a Colômbia, o Equador e o Peru. A criação dessa área representou a substituição da noção de integração latino-americana como determinada pela carta constitucional de 1988, fruto de um processo de integração regional malfadado iniciado nos anos 60, com a criação da ALALC (Associação Latino-Americana para o Livre Comércio) e sua posterior transformação em ALADI (Associação Latino Americana de Integração) nos anos 80. A América do Sul deixa então de ser a "fronteira-separação" para tornar-se "fronteira-cooperação" (Lafer e Fonseca, 1998).  A construção desse novo espaço diplomático pode ser entendida como um processo de substituição estratégica da noção de América Latina pela de América do Sul. Em função da imagem negativa da América Latina como uma região fadada ao não cumprimento dos acordos internacionais, ao desvario político-administrativo e ao caos estrutural, parece ter havido um consenso das elites políticas brasileiras sobre a necessidade de construir uma nova imagem do Brasil capaz de viabilizar a inserção do país em um contexto internacional estruturalmente modificado (Spektor, 2010).
Segundo Ricupero (1995), a América Latina no período em análise teria apresentado uma inflexão em direção ao Estados Unidos e as práticas liberais do Consenso de Washington. Por isso, há nos anos 90 uma aparente contradição entre os interesses dos vários países da região – notadamente os da Argentina e do México - e os do Brasil. Um projeto como a Iniciativa para as Américas (1991), que preconizava a criação de uma área de livre comércio no continente americano representava para o Brasil uma ameaça à sua organização econômica, em virtude do perfil concorrencial das demais economias da região. Tampouco era interessante para o país perder o acesso preferencial ao mercado latino-americano. Como não existia, entre as elites dirigentes nacionais, vontade de abrir mão da autonomia no campo das negociações comerciais, o sistema internacional configurado pelo “multipolarismo” econômico se apresentava como uma oportunidade do país ser um ator global. De acordo com Ricupero (1995), a contradição de rumos entre os caminhos seguidos pelos países latino-americanos no momento posterior a euforia da redemocratização e o interesse brasileiro em manter o ritmo do crescimento econômico e continuar o processo de modernização demandaria do Brasil um investimento maior em parcerias com os polos econômicos mundiais mais dinâmicos.

Conclusão
Entre os anos 1989 e 1994desenvolveu-se uma reflexão acerca do lugar do Brasil no mundo que foi influenciada tanto pelos movimentos de abertura política e econômica que ocorriam no plano internacional como pelas transformações no plano doméstico. Essa reflexão ficou registrada em depoimentos orais, textos publicados em periódicos, artigos de jornal e mesmo em livros e documentos oficiais (ou não).
Buscamos, através da análise de documentos diversos, sintetizar as principaiscontribuições de Gelson Fonseca, Celso Lafer e Rubens Ricupero, chamados de tríade da normalização, para o entendimento da nova ordem internacional, marcada pela globalização e pela emergência dos Estados Unidos como superpotência solitária, e suas respostas para a questão do lugar que deveria ocupar o Brasil, como potência média, no mundo, e mais fundamentalmente sobre quais as chances do Brasil seguir com seu modelo de desenvolvimento autônomo diante das restrições impostas pelo fim da Guerra Fria.
A reflexão objeto desse estudo apresentou e atualizou elementos presentes em formulações políticas anteriores à redemocratização que marcaram o processo de industrialização brasileiro a partir dos anos 30, como a preocupação com a autonomia representada pelo pensamento econômico estruturalista da CEPAL e pelas ideias de “nacionalismo de fins” de Hélio Jaguaribe (1958); e a necessidade de formulação de um projeto nacional. Mais notável é que as reflexões desenvolvidas por esses personagens se caracterizam como um processo de reformulação das idéias interno, no Ministério das Relações Exteriores, que buscou atualizar os princípios de atuação dessa elite burocrática (autonomia, projeto nacional) adequando-os às novas contingências internacionais (globalização e reestruturação da economia mundial).
É possível inferir que o processo de renovação política e de ideias que cortou a sociedade brasileira nos anos 90 atravessou também o Itamaraty e produziu o debate a que ora nos referimos. Esse debate esteve pautado sobre as condições possíveis para o Brasil retomar o caminho do desenvolvimento sem abrir mão de sua identidade ocidental, vinculada ao estabelecimento da democracia e do modelo de economia capitalista, garantindo o exercício de sua autonomia. Nossos personagens destacam o processo de globalização como caminho possível para o Brasil e atribuem à falta de consenso político no plano interno as principais dificuldades enfrentadas pelo país durante os anos 80. A ideia de normalização das relações do país é parte importante do projeto nacional, são ambos entidades indissociáveis, que adicionam um componente novo ao cálculo político: o componente externo. Isso não significa que o componente externo não tenha exercido influência sobre a política externa brasileira ou mesmo sobre decisões políticas internas ao longo da história do país, mas nos anos 90, o que há de novo, é a articulação ideológica de ideias dispersas através das várias correntes de pensamento, notadamente as de desenvolvimento e soberania, de um lado, e a de inserção econômica internacional (necessária para a conclusão do ciclo de evolução de uma economia capitalista), unindo os que defendiam maior autonomia para o país através do fortalecimento do Estado, com os grupos que advogavam a necessidade de se abrir para o mundo. Em segundo lugar, destacamos que é um momento único em que se produz uma reflexão sobre o papel do Brasil no mundo. Essa alteração perceptiva pode ser atribuída, dentre outros fatores, à redemocratização política interna, mas também global, às crises econômicas e ao processo de reestruturação da economia mundial.

Referências:

Livros e Artigos
ABREU, M.P. A Ordem do Progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990;
AMORIM, Celso; e PIMENTEL, R. S. A América Latina diante da Regionalização e do Multilateralismo. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, vol.15, nº2, jul/dez 93, pp.175-192;
AMORIM, Celso. A integração sul-americana. DEP: Diplomacia, Estratégia e Política, n.10, (out./dez.2009) Brasília: Projeto Raul Prebisch;
APPADURAI, A. Modernity at large: cultural dimensions of globalization. University of Minnesota Press, 1996;
ARBILLA, José María. "Arranjos institucionais e mudança conceitual nas políticas externas argentina e brasileira (1989-1994)". Contexto Internacional, 22 (2): 337-386, 2000;
ARSLANIAN, Regis P. O recurso à seção 301 da legislação de comércio norte-americana e a aplicação de seus dispositivos contra o Brasil. Brasília: Instituto Rio Branco, 1994;
BETHELL, L. O Brasil e a ideia de "América Latina" em perspectiva histórica. Revista Estudos Históricos, Vol. 22, No 44 (2009);
BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro, o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000;
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos & THORSTENSEN, Vera. Do Mercosul a Integração Americana, Política Externa, 1 (3), dezembro 1992: 122-145;
CARDOSO, F.H. A política externa do Brasil no início de um novo século: uma mensagem do Presidente da República. Rev. Bras. Polít. Int. 44 (1): 5-12 [2001];
CASTRO, Rafael Fernández & LIMA, Maria Regina Soares. Las aspiraciones internacionales de Brasil y Méxicoempolítica exterior.In: L.N. Antonio Ortiz Mena et al. Brasil y México: Encuentros y Desencuentros. México: Instituto Matias Romero, 2005;
CERVO, Amado Luiz. “Política Exterior e Relações Internacionais do Brasil: enfoque paradigmático”, Revista Brasileira de Política Internacional, v. 46 (2), 2003, pp.5-25;
CODATO, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, n. 25, Nov. 2005;
FONSECA JR. G. A Legitimidade e outras questões internacionais: poder e ética entre as nações. São Paulo: Paz e Terra, 1998;
GOLDSTEIN, J; e KEOHANE, R. (eds.) Ideas and foreign policy: beliefs, institutions and political change.Cornell University Press, 1993;
HIRST, Mônica (org.) Brasil-Estados Unidos na transição democrática. (Coleção Estudos Ibero-americanos) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985;
HUNTINGTON, S.P. The clash of civilizations? Foreign Affairs, 72, 3, Summer 1993;
IKENBERRY, G. J. After Victory: Strategic restraint and the rebuilding of order after major wars.  New Jersey: Princeton University, 2005;
IKENBERRY, G.J. The Reestructuring of the International System after the Cold War. Trabalho apresentado na II Conferência da Regional Powers Network, abril de 2009, FGV;
JERVIS, R. Perception and Misperception in international politics. Princeton University Press, 1976;
KAARBO, Juliet. Power Politics in Foreign Policy: The Influence of Bureaucratic Minorities.European Journal of International Relations, 1998;
KEOHANE, R. O. e GOLDSTEIN, J., “Ideas and Foreign Policy: An Analytical Framework”, in: Keohane, R. O. e Goldstein, J. (eds.), Ideas and Foreign Policy. Beliefs, Institutions, and Political Change, NY: Cornell University Press, 1993, pp. 3-30;
LAFER, Celso & FONSECA, Gelson. A problemática integração num mundo de polaridades indefinidas. Integração Aberta - Documento de trabalho do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Portugal, 1995;
LAFER, Celso.  Reflexões sobre a Inserção Internacional do Brasil no Contexto Internacional. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, nº11, jan/jun 1990, pp.33-43;
LAFER, Celso. Entrevista concedida ao CPDOC. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 12, 1993, p. 271-284;
LIMA, M. R. S. The political economy of Brazilian Foreign policy: Nuclear energy, trade and Itaipu. Tese (Doutorado em Ciência Política), Department of Political Science - Vanderbilt University, 1986;
LIMA, Maria Regina S. de. “Ejes analíticos y conflicto de paradigmas en la política exterior brasileña. América Latina/Internacional, vol.1, n.2, otoño/inverno 1994;
LIMA, Paulo T. F. Caminhos diplomáticos. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1997;
MAIA, João Marcelo E; “The intellectual roots of Brazil’s national project”, mimeo (2009);
MOREIRA, Marcílio M. Diplomacia, Política e Finanças: de JK a Collor, 40 de história por um de seus protagonistas. Objetiva, 2001;
PINHEIRO, Letícia. "Traídos pelo Desejo: um ensaio sobre a teoria e a prática da política externa brasileira contemporânea", Contexto Internacional, vol.22, n.2, 2000, pp.305-344;
RICUPERO, Rubens. Os Estados Unidos da América e o Reordenamento do Sistema Internacional. In: Fonseca & Nabuco de Castro (orgs.), Temas de Política Externa Brasileira. Paz e Terra, 1997;
RICUPERO, Rubens. Visões do Brasil.Ed. Record, 1995;
SANTORO, M. Idéias, Diplomacia e Desenvolvimento: Política externa argentina de Menem a Kirchner. Tese de Doutorado, IUPERJ, 2008;
SPEKTOR, Matias. Ideias de ativismo regional: a transformação das leituras brasileiras da região. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 53, n. 1, July 2010.
SODRÉ, R. Abreu. No Espelho do Tempo: meio século de política. São Paulo: Best Seller, 1995;
URT, J.N. Construção de confiança na América do Sul: a política externa do governo Figueiredo (1979-1985). Dissertação de mestrado – IREL-UNB, 2009;
VIANNA, L.W. Caminhos e Descaminhos da Revolução Passiva à Brasileira. Dados [online]. 1996, vol.39, n.3 ISSN 0011-5258;
VIEIRA, Marco Antonio M. C. (2001). Idéias e instituições: a política externa brasileira no pós-Segunda Guerra Mundial e no pós-Guerra Fria. Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro, IRI PUC-Rio;
VIGEVANI, Tullo et al. The role of regional integration for Brazil: universalism, sovereignty, autonomy and elites' perception. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 51, n.1, 2008;  
VIZENTINI, P.F. Relações Internacionais e Desenvolvimento: o Nacionalismo e a Política Externa Independente, 1951-1964. Petrópolis: Vozes, 1995;
WESTAD, Odd Arne. The Global Cold War: Third World interventions and the making of our times. Cambridge University Press, 2006;
WILLIAMSON, J. What Washington Means By Policy Reform. In: Latin American Adjustment: How Much Has Happened? Edited by John Williamson, 1990;



* e-mai: aoribeiro@gmail.com
[i]  As taxas anuais de inflação para os anos de 1988 e 1989 foram 1.037,56% e 1782.9%, respectivamente (Bresser-Pereira, 1990).
[ii] Para mais informações acerca do debate interno sobre a política externa, ver SARAIVA, Miriam Gomes. As estratégias de cooperação Sul-Sul nos marcos da política externa brasileira de 1993 a 2007. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 50, n. 2, p. 42-59, 2007.
[iii]Esse texto tem uma versão publicada em 1994, disponível em http://pt.braudel.org.br/publicacoes/braudelpapers/06.php
[iv]Bradford Burns, E. The Unwritten Alliance: Rio-Branco and Brazilian-American Relations.New York:Columbia University Press, 1966, iii, http://www.questia.com/PM.qst?a=o&d=100700198
[v]A política externa do governo Collor. Política Externa, vol.1, n.4, março de 1993.

“Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e pelo bom senso”. Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano)

  Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano) “Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e p...