segunda-feira, 10 de julho de 2017

Manifesto Regionalista Gilberto Freyre

Manifesto regionalista

Gilberto Freyre

FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista. 7.ed. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1996. p.47-75.

Comentário: Antônio Dimas (USP)

MANIFESTO REGIONALISTA

O Manifesto que se segue foi lido no Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo que se reuniu na cidade do Recife, durante o mês de fevereiro de 1926 e que foi o primeiro do gênero, não só no Brasil como na América, só depois do Congresso do Recife tendo se reunido nos Estados Unidos a Conferência Regionalista de Charlottesville (Virgínia), com o apoio de Franklin D. Roosevelt e de outros eminentes norte- americanos e do qual participou o autor do "Manifesto de 1926" do Recife, por iniciativa e convite do seu colega Ruediger Bilden. Divulgado em parte por jornais da época, este "Mani-festo" é, pela quinta vez, publicado na íntegra, agora por iniciativa do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Apareceu em primeira edição em 1952, lançado pela Editora Região. A presente edição - a 5a - aparece, como a 4a , revista e prefaciada pelo autor. Mas sem nenhu-ma alteração essencial ao texto lido em 1926 e publicado em 1952.

Há dois ou três anos que se esboça nesta velha metrópole regional que é o Recife um movimento de reabilitação de valores regionais e tradicionais desta parte do Brasil: movimento de que mestres autênticos como o humanista João Ribeiro e o poeta Manuel Bandeira vão tomando conhecimento e a que agora se juntam pela simpatia, quando não pela solidariedade ativa e até militante, não só norte-americanos como Francis Butler Simkins - que anuncia dever a um brasileiro do Recife seu critério regional de estudar a história do Sul dos Estados Unidos, - franceses como Regis de Beaulieu e alemães como Ruediger Bilden como alguns dos mais adiantados arquitetos, urbanistas e homens de letras do Rio. Concorrem eles ao Congresso de Regionalismo do Recife com trabalhos e teses acrescentando suas contribuições às de homens do próprio Nordeste ou aqui radicados: homens públicos ou de ciência, preocupados com problemas urbanos e rurais da região como Amaury de Medeiros, Gouveia de Barros e Ulysses Pernambucano; homens de letras empenhados na defesa dos nossos valores históricos como Carlos Lyra Filho, Luiz Cedro, Samuel Campêlo, Aníbal Fernandes, Joaquim Cardoso, Mário Melo, Mario Sette, Manuel Caetano de Albuquerque e seu filho José Maria - tão pichoso na arte da fotografia quanto na da tipografia; homens de saber interessados em dar sentido regional ao ensino, à organização universitária e à cultura intelectual entre nós, conto Odilon Nestor e Morais Coutinho, Alfredo Freyre e Antônio Inácio; velhos lavradores ou homens de campo voltados inteligentemente para os problemas de defesa e valorização da paisagem ou da vida nos seus aspectos rurais ou folclóricos, como Júlio Bello, Samuel Hardman, Gaspar Peres, Pedro Paranhos e Leite Oiticica. Homens, todos esses, com o sentido de regionalidade acima do de pernambucanidade - tão intenso ou absorvente num Mário Sette - do de paraibanidade - tão vivo em José Américo de Almeida - ou do de alagoanidade - tão intenso em Otávio Brandão - de cada um; e esse sentido por assim dizer eterno em sua forma - o modo regional e não apenas provincial de ser alguém de sua terra - manifestado numa realidade ou expresso numa substância talvez mais lírica que geográfica e certamente mais social do que política. Realidade que a expressão "Nordeste" define sem que a pesquisa científica a tenha explorado até hoje, sob o critério regional da paisagem, a não ser em raras obras como a de um Von Luetzelburg, admirável ecologista alemão ainda mais identificado conosco do que Konrad Guenther, o sábio fitopatogista, que há pouco visitou esta parte do Brasil a convite de um de nós - Samuel Hardman - enquanto, a meu convite, aqui já estiveram, tomando contato com tradições e problemas da região, meus antigos colegas na Universidade de Columbia, Ruediger Bilden e senhora Francis Butler Simkins, o mesmo prometendo fazer ainda este ano meu companheiro francês de aventuras intelectuais em Paris, Regis de Beaulieu: aquele que tendo me levado a conhecer seu mestre, Charles Maurras, não hesitou em mais de uma vez sentar-se comigo numa La Rotonde ainda quente da presença de Lenine.

Toda terça-feira, um grupo apolítico de "Regionalistas" vem se reunindo na casa do Professor Odilon Nestor, em volta da mesa de chá com sequilhos e doces tradicionais da região - inclusive sorvete de Coração da Índia - preparados por mãos de sinhás. Discutem-se então, em voz mais de conversa que de discurso, problemas do Nordeste. Assim tem sido o Movimento Regionalista que hoje se afirma neste Congresso: inacadêmico mas constante. Animado por homens práticos como Samuel Hardman e não apenas por poetas como Odilon Nestor; por homens politicamente da "esquerda" como Alfredo Morais Coutinho e da extrema "direita" como Carlos Lyra Filho.

Seu fim não é desenvolver a mística de que, no Brasil, só o Nordeste tenha valor, só os sequilhos feitos por mãos pernambucanas ou paraibanas de sinhás sejam gostosos, só as rendas e redes feitas por

cearense ou alagoano tenham graça, só os problemas da região da cana ou da área das secas ou da do algodão apresentem importância. Os animadores desta nova espécie de regionalismo desejam ver se desenvolverem no País outros regionalismos que se juntem ao do Nordeste, dando ao movimento o sentido organicamente brasileiro e, até, americano, quando não mais amplo, que ele deve ter.

A maior injustiça que se poderia fazer a um regionalismo como o nosso seria confundí-lo com separatismo ou com bairrismo. Com anti-internacionalismo, anti-universalimo ou anti-nacionalisuto. Ele é tão contrário a qualquer espécie de separatismo que, mais unionista que o atual e precário unionismo brasileiro, visa a superação do estadualismo, lamentavelmente desenvolvido aqui pela República - este sim, separatista - para substituí-lo por novo e flexível sistema em que as regiões, mais importantes que os Estados, se completem e se integrem ativa e criadoramente numa verdadeira organização nacional. Pois são modos de ser - os caracterizados no brasileiro por suas formas regionais de expressão - que pedem estudos ou indagações dentro de um critério de interrelação que ao mesmo tempo que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano, norte-riograndense, piauiense e até maranhense, ou alagoano ou cearense em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano.

Dizendo sistema não sei se emprego a expressão exata. Nosso movimento não pretende senão inspirar uma nova organização do Brasil. Uma nova organização em que as vestes em que anda metida a República - roupas feitas, roupagens exóticas, veludos para frios, peles para gelos que não existem por aqui
- sejam substituídas não por outras roupas feitas por modista estrangeira mas por vestido ou simplesmente
túnica costurada pachorrentamente em casa: aos poucos e toda sob medida.

Daí ser perigoso falar-se precipitadamente num novo "sistema" quando o caminho indicado pelo bom senso para a reorganização nacional parece ser o de dar-se, antes de tudo, atenção ao corpo do Brasil, vítima, desde que é nação, das estrangeirices que lhe têm sido impostas, sem nenhum respeito pelas peculiaridades e desigualdades da sua configuração física e social; e com uma outra pena de índio ou um ou outro papo de tucano a disfarçar o exotismo norte-europeu do trajo. Primeiro, sacrificaram-se as Províncias ao imperialismo da Corte: uma Corte afrancesada ou anglicizada. Com a República - esta ianquizada - as Províncias foram substituídas por Estados grandes e ricos, nem policiar as turbulências balcânicas de alguns dos pequenos em população e que deviam ser ainda Territórios e não, prematuramente, Estados.

Essa desorganização constante parece resultar principalmente do fato de que as regiões vêm sendo esquecidas pelos estadistas e legisladores brasileiros, uns preocupados com os "direitos dos Estados", outros, com as "necessidades de união nacional", quando a preocupação máxima de todos deveria ser a de articulação inter-regional. Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais.

De modo que sendo essa a sua configuração, o que se impõe aos estadistas e legisladores nacionais é pensarem e agirem inter-regionalmente. E lembrarem-se sempre de que governam regiões e de que legislam para regiões interdependentes, cuja realidade não deve ser esquecida nunca pelas ficções necessárias, dentro dos seus limites, de "União" e de "Estado". O conjunto de regiões é que forma verdadeiramente o Brasil. Somos um conjunto de regiões antes de sermos uma coleção arbitrária de "Estados", uns grandes, outros pequenos, a se guerrearem economicamente como outras tantas Bulgárias, Sérvias e Montenegros e a fazerem às vezes de partidos políticos - São Paulo contra Minas, Minas contra o Rio Grande do Sul - num jogo perigosíssimo para a unidade nacional.

Regionalmente é que deve o Brasil ser administrado. É claro que administrado sob uma só bandeira e um só governo, pois regionalismo não quer dizer separatismo, ao contrário do que disseram ao Presidente Artur Bernardes. Regionalmente deve ser estudada, sem sacrifício do sentido de sua unidade, a cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem da mesma forma que a paisagem. Regionalmente devem ser considerados os problemas de economia nacional e os de trabalho. Como me aventuro a dizer num arremedo de poema que acabo de entregar ao pintor Luís Jardim, para que ele o ilustre com seu traço admirável:

"O mapa do Brasil em vez das cores dos Estados terá as cores das produções e dos trabalhos."

Procurando reabilitar valores e tradições do Nordeste, repito que não julgamos estas terras, em grande parte áridas e heroicamente pobres, devastadas pelo cangaço, pela malária e até pela fome, as Terras Santas ou a Cocagne do Brasil. Procuramos defender esses valores e essas tradições, isto sim, do perigo de serem de todo abandonadas, tal o furor neófilo de dirigentes que, entre nós, passam por adiantados e "progressistas" pelo fato de imitarem cega e desbragadamente a novidade estrangeira. A novidade estrangeira de modo geral. De modo particular, nos Estados ou nas Províncias, o que o Rio ou São Paulo consagram como "elegante" e como "moderno": inclusive esse carnavalesco Papai Noel que, esmagando com suas botas de andar em trenó e pisar em neve, as velhas lapinhas brasileiras, verdes, cheirosas, de tempo de verão, está dando uma nota de ridículo aos nossos natais de família, também enfeitados agora com arvorezinhas estrangeiras mandadas vir da Europa ou dos Estados Unidos pelos burgueses mais cheios de requififes e de dinheiro.

Talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter. Vários dos seus valores regionais tornaram-se nacionais depois de impostos aos outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao Nordeste durante mais de um século do que pela sedução moral e pela fascinação estética dos mesmos valores. Alguns até ganharam renome internacional como o mascavo dos velhos engenhos, a Pau-Brasil das velhas matas, a faca de ponta de Pasmado ou de Olinda, a rede do Ceará, o vermelho conhecido entre pintores europeus antigos por "Pernambuco", a goiabada de Pesqueira, o fervor católico de Dom Vital, o algodão de Seridó, os cavalos de corrida de Paulista, os abacaxis de Goiana, o balão de Augusto Severo, as telas de Rosalvo Ribeiro, o talento diplomático do Barão de Penedo - doutor "honoris causa" de Oxford - e o literário de Joaquim Nabuco - doutor "honoris causa" de universidades anglo-americanas. Como se explicaria, então, que nós, filhos de região tão criadora, é que fôssemos agora abandonar as fontes ou as raízes de valores e tradições de que o Brasil inteiro se orgulha ou de que se vem beneficiando como de valores basicamente nacionais?

Sem se julgar estultamente o sal do Brasil, mas apenas o seu maior e melhor produtor de açúcar nos tempos coloniais - açúcar que está à base de uma doçaria rica como nenhuma, do lmpério, e à base, também, de uma doce aristocracia de maneiras de gostos, de modos de viver e de sentir, tornada possível pela produção e exportação de um mascavo tão internacionalmente famoso como, depois, o café de São Paulo - o Nordeste tem o direito de considerar-se uma região que já grandemente contribuiu para dar a cultura ou à civilização brasileira autenticidade e originalidade e não apenas doçura ou tempero. Com Duarte Coelho madrugaram na Nova Lusitânia valores europeus, asiáticos, africanos que só depois se estenderam a outras regiões da América Portuguesa. Durante a ocupação holandesa, outros valores aqui surgiram ou foram aqui recriados para benefício do Brasil inteiro. Apenas nos últimos decênios é que o Nordeste vem perdendo a tradição de criador ou recriador de valores para tornar-se uma população quase parasitária ou uma terra apenas de relíquias: o paraíso brasileiro de antiquários e de arqueólogos. Ou o refúgio daqueles patriotas meio necrófilos cujo patriotismo se comenta em poder evocar, nos dias de festas nacionais, glórias remotas e antecipações gloriosas, exagerando-as, nos discursos, dourando-as nos elogios históricos com brilhos falsos, revestindo-as nas composições genealógicas de azuis também excessivamente heráldicos.

Lembro-me - e recordei o fato num dos primeiros artigos que aqui publiquei ao regressar da Europa em 1923 - do interesse com que, há três ou quatro anos, em Versailles, entre fidalgos franceses e aristocratas russos que me deram o gosto ou a impressão de uma Europa já mais histórica do que atual, o velho Clement de Grandprey - ilustre tropicalista e talvez o único espírito moço naquele meio de condes arcaicos e viscondessas velhas - me interrogava: e os mucambos de Pernambuco? Não o maravilhara aqui, nos fins do século XIX, a Igreja da Penha ou o palácio da Estrada de Ferro Central: dois dos primeiros lamentáveis arremedos da civilização que Geddes chamaria paleotécnica com que foi mais ostensivamente perturbada, em sua autenticidade e em seu processo de adaptação ao meio, a arquitetura tradicionalmente portuguesa do Recife: honesta arquitetura cheia de boas reminiscências orientais e africanas, inclusive a da cor, a dos verdes, azuis, roxos, amarelos e vermelhos vivos dos sobrados altos, das casas de sítio, das próprias igrejas. A maior impressão de Clement de Grandprey, em Pernambuco, fora a do simples mucambo, a da "casa do caboclo", a da casa de palha dos pescadores das praias.

É que o mucambo se harmoniza com o clima, com as águas, com as cores, com a natureza, com os coqueiros e as mangueiras, com os verdes e os azuis da região como nenhuma outra construção. Percebeu-o o orientalista francês em sua rápida passagem por Pernambuco do mesmo tista alemão, também pintor, Ph.Von Luetzelburg. Percebem-no os que, sendo da terra, têm olhos para ver e admirar o que é característico da região e para saber separá-lo do simplesmente pitoresco ou curioso. Os que têm olhos para ver a sua Província ou a sua região como Lafcadio Hearn viu a Lousiana e as Índias Ocidentais Francesas.

Com toda a sua primitividade, o mucambo é um valor regional e por extensão, um valor brasileiro, e, mais do que isso, um valor dos trópicos: estes caluniados trópicos que só agora o europeu e o norte- americano vêm redescobrindo e encontrando neles valores e não apenas curiosidades etnográficas ou motivos patológicos para alarmes. O mucambo é um desses valores. Valor pelo que representa de harmonização estética: a da construção humana com a natureza. Valor pelo que representa de adaptação higiênica: a do abrigo humano adaptado à natureza tropical. Valor pelo que representa como solução econômica do problema da casa pobre: a máxima utilização, pelo homem, na natureza regional, representada pela madeira, pela palha, pelo cipó, pelo capim fácil e ao alcance dos pobres.

O mal dos mucambos no Recife, como noutras cidades brasileiras, não está propriamente nos mucambos mas na sua situação em áreas desprezíveis e hostis à saúde do homem: alagados, pântanos, mangues, lama podre. Bem situado, o mucambo - e a casa rural coberta de palha ou de vegetal seco não nos esqueçamos que se encontra também na Irlanda e na própria Inglaterra - é habitação superior a esses tristes sepulcros nem sempre bem caiados que são, entre nós, tantas das casas de pedra e cal, sem oitões livres e iluminadas apenas por tristonhas clarabóias que apenas disfarçam a falta de luz e a pobreza de ar, dentro das quais vive vida breve ou morre aos poucos - quando não às pressas, arrastada pela tísica galopante - a maior parte da gente média da região, nas cidades e até nos povoados.

Não foi contra os mucambos que se voltou a maior indignação de sanitarista de Saturnino de Brito quando estudou o problema da casa no Recife: foi contra aquelas casas verdadeiramente sepulcrais. Elas,

sim, é que pecam contra a natureza regional: e não os mucambos. Não os caluniados mucambos. Não as casa que os "caboclos", os negros, os pardos, os pescadores, os pobres da região levantam eles próprios, às vezes por meio do esforço comum do mutirão, revestindo-as e cobrindo-as de palha, folhas e capins secos que franciscanamente defendem os moradores das chuvas e das ventanias fortes sem os privarem do sol, do ar e da luz tropicais.

O mesmo poderia alguém dizer das velhas ruas estreitas do Nordeste. Bem situadas, são entre nós, superiores não só em pitoresco como em higiene às largas. As ruas largas são necessárias - ninguém diz que não, desde que exigidas pelo tráfego moderno; mas não devem excluir as estreitas.

Ainda há pouco um estrangeiro viajadíssimo era com que se encantava no Rio de Janeiro: com as velhas ruas estreitas. E não com as largas. Não com avenidas incaracterísticas. Não com as nossas imitações às vezes ridículas de "boulevards" e de "broadways", por onde a gente que anda a pé só falta derreter-se sob o sol forte com que o bom Deus ora nos favorece, ora nos castiga. Entretanto, quando eu primeiro elogiei aqui as ruas estreitas e lamentei o desaparecimento dos velhos arcos que se harmonizavam com elas e das casas e sobrados pintados de vermelho, de verde, de azul ou revestidos de azulejos - azulejos que chegaram a ser condenados estupidamente, no Recife, por lei municipal - foi como se tivesse escrito heresia em porta de igreja ou obscenidade ou safadeza em muro de colégio de moça. O mesmo quando louvei na cidade do Recife o seu resto de recato mouro: outro absurdo para os modernistas da terra, pois as cidades deviam ser todas abertas ao sol e aos olhos dos turistas e nunca fechadas dentro de paredes, muros e rótulas, aqui mais protetoras do homem do que o vidro nos países de pouca luz e de sol parecido com lua.

Reconheçamos a necessidade das ruas largas numa cidade moderna, seja qual for sua situação geográfica ou o sol que a ilumine; mas não nos esqueçamos de que a uma cidade do trópico, por mais comercial ou industrial que se torne, convém certo número de ruas acolhedoramente estreitas nas quais se conserve a sabedoria dos árabes, antigos donos dos trópicos: a sabedoria de ruas como a Estreita do Rosário ou de becos como o do Cirigado que defendam os homens dos excessos de luz, de sol e de calor ou que os protejam com a doçura das suas sombras. A sabedoria das ruas com arcadas, de que o Recife devia estar cheio. A sabedoria das casas com rótulas ou janelas em xadrez, que ainda se surpreendem em ruas velhas daqui e de Olinda.

Ao velho Recife o gênio dos mouros, mestres, em tanta cousa, dos portugueses - aos quais, entretanto, deram o mau exemplo, tão seguido pelos brasileiros, do horror à árvore - transmitiu a lição preciosa das ruas estreitas; e, sempre que possível, devemos conservá-las ao lado das avenidas americanamente largas - ou como afluentes desses "boulevards" amazônicos - em vez de nos deixarmos desorientar por certo anti-lusismo que vê em tudo que é herança portuguesa um mal a ser desprezado; ou por certo modernismo ou ocidentalismo que vê em tudo o que é antigo ou oriental um arcaísmo a ser abandonado.

Modernismo responsável por outra inovação contra a qual se levanta nosso regionalismo: a horrível mania que hoje nos persegue de mudarmos os mais saborosamente regionais nomes de ruas e de lugares velhos - Rua do Sol, Beco do Peixe Frito, Rua da Saudade, Chora Menino. Sete Pecados Mortais, Encanta Moça - para nomes novos: quase sempre nomes inexpressivos de poderosos do dia. Ou datas insignificantemente políticas.

É outro ponto em que venho insistindo nos meus artigos desde que aqui cheguei; e, como no caso dos mucambos, tal atitude me tem valido não só o soberano desprezo dos engenheiros mais simplistas - místicos do cimento armado e mistagogos das avenidas largas, gente que há anos domina esta como outras cidades do Brasil e, ao contrário dos engenheiros mais esclarecidos, só sabe derrubar igrejas, sobrados de azulejos, arcos como o da Conceição, palmeiras antigas, gameleiras velhas, jardins ou hortos coloniais, contanto que os velhos burgos de fundação portuguesa se assemelhem às mais modernas cidades norte-americanas ou francesas - como a pecha de "blagueur". Ou de literato metido a superior que, farto de viagens pela América do Norte e pela Europa, desejas-se, como um novo e barato Fradique de subúrbio, divertir-se à custa da ingenuidade da gente mais simples de sua Província: daí louvar-lhe os atrasos em vez de glorificar-lhe os progressos. Querer museus com panelas de barro, facas de ponta, cachimbo de matutos, sandálias de sertanejos, miniaturas de almanjarras, figuras de cerâmica, bonecas de pano, carros de boi, e não apenas com relíquias de heróis de guerras e mártires de revoluções gloriosas. Exaltar bumbas-meu-boi, maracatus, mamulengos, pastoris e clubes populares de carnaval, em vez de trabalhar pelo desenvolvimento do "Rádio Clube" ou concorrer para o brilho dos bailes do "Clube Internacional". Levantar-se contra o loteamento de sítios velhos alegando que as cidades precisam de árvores, de hortas, de mato tanto quanto de casas e ruas. Querer os grandes edifícios públicos e as praças decoradas com figuras de homens de trabalho, mestiços, homens de cor em pleno movimento de trabalho, cambiteiros, negros de fornalha de engenho, cabras de trapiches e de almanjarras, pretos carregadores de açúcar, carros de boi cheios de cana, jangadeiros, vaqueiros, mulheres fazendo renda - e não com as imagens convencionais e cor-de-rosa de deusas européias da Fortuna e da Liberdade, de deuses romanos disto e daquilo, de figuras simbólicas das Quatro Estações. Desejar um museu regional cheio de recordações das produções e dos trabalhos da região e não apenas de antigüidades ociosamente burguesas como jóias de baronesas e bengalas de gamenhos do tempo do Império.

Ainda há pouco fui acusado de estar levando satanicamente ao ridículo alguns dos homens mais respeitáveis da região, já envolvidos por mim - dizem os críticos- no que chamam o "carnaval regionalista". Isto porque consegui do velho Leite Oiticica que, do seu engenho das Alagoas, escrevesse para o livro comemorativo do primeiro centenário do Diário de Pernambuco, não um ensaio retoricamente patriótico sobre Deodoro ou Floriano, mas um estudo minucioso e objetivo da arte da renda no Nordeste que, ilustrado, à base de amostras de rendas vindas de Alagoas, por desenhista digno da melhor admiração brasileira - Manoel Bandeira - enriquece aquele livro com páginas verdadeiramente originais de documentação e interpretação da vida regional; de Odilon Nestor, que recordasse a vida do estudante no Recife do Século XIX e não as doutrinas alemãs aqui divulgadas um tanto pedantescamente por Tobias; de Júlio Bello, que contribuísse para a mesma obra comemorativa, não evocando em tom de discurso de Instituto Histórico os heróis de Guararapes ou os Patriotas de 17, mas os bumbas-meu-boi, as cheganças, os pastoris, os mamulengos dos engenhos da região.

Este próprio Congresso - o Primeiro Congresso de Regionalismo que se realiza no Brasil e, talvez, na América e, dentro do seu programa, diferente de quantos têm sido realizados noutros países onde já floresce, com outros aspectos, a idéia regionalista, animada na França pelo espírito poético de Mistral e pela inteligência realista de Maurras - está sendo criticado pelos mesmos aristarcos por se afastar rasgada e afoitamente dos estilos convencionais dos congressos; e juntar as vozes de sábios higienistas como a de Gouveia de Barros, às de poetas folcloristas como Ascenso Ferreira; a comemorações ou a cultos como o da palmeira, o de plantas humildemente provincianas ou regionais como o jasmim-de-banha ou a erva-cidreira ou mesmo o pega-pinto, de que a medicina caseira prepara chás tão úteis; à evocação de velhas modinhas dos salões do tempo de Pedro II a revivescência de divertimentos da gente mais plebeiamente do povo que os requintados desprezam como "cousas de negros": maracatus, bumba-meu-boi, mamulengo, coco, fandango, xangõ, nau-catarineta.

Mas o pecado maior contra a Civilização e o Progresso, contra o Bom Senso e o Bom Gosto e até os Bons Costumes que estaria sendo cometido pelo grupo de regionalistas a quem se deve a idéia ou a organização deste Congresso, estaria em procurar reanimar não só a arte arcaica dos quitutes finos e caros em que se esmeraram, nas velhas casas patriarcais, algumas senhoras das mais ilustres famílias da região e que está sendo esquecida pelos doces dos confeiteiros franceses e italianos, como a arte - popular como a do barro, a do cesto, a da palha de Ouricuri, a de piaçava, a dos cachimbos e dos santos de pau, a das esteiras, a dos exvotos, a das redes, a das rendas e bicos, a dos brinquedos de meninos feitos de sabugo de milho, de canudo de mamão, de lata de doce de goiaba, de quenga de coco, de cabaça - que é, no Nordeste, o preparado do doce, do bolo, do quitute de tabuleiro, feito por mãos negras e pardas com uma perícia que iguala, e às vezes excede, a das sinhás brancas.

Pois há comidas que não são as mesmas compradas nos tabuleiros que feitas em casa. Arroz doce, por exemplo, é quase sempre mais gostoso feito por mão de negra de tabuleiro que em casa. E o mesmo é certo de outros doces e de outros quitutes. Do peixe frito, por exemplo, que só tem graça feito por preta de tabuleiro. Da tapioca molhada, que "de rua" e servida em folha de bananeira é que é mais gostosa. Do sarapatel: outro prato que em mercado ou quitanda é mais saboroso do que em casa finamente burguesa - opinião que não é só minha, mas do meu amigo e companheiro de ceias nos mercados e no Dudu, o grande juiz e grande jornalista Manuel Caetano de Albuquerque e Melo.

As negras de tabuleiro e de quitanda como que guardam maçonicamente segredos que não transmitem às sinhás brancas do mesmo modo que entre as casa ilustres, umas famílias vêm escondendo das outras receitas de velhos bolos e doces que se conservam há anos especialidade ou segredo ou singularidade de família. Daí o fato de se sucederem gerações de quituteiras quase como gerações de artistas da Idade Média: donas de segredos que não transmitem aos estranhos.

Feitos estes reparos, estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por alguém neste Congresso: os valores culinários do Nordeste. A significação social e cultural desses valores. A importância deles: quer dos quitutes finos, quer dos populares. A necessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescente descaracterização da cozinha regional.

Só na falta de voz que versasse autorizadamente o assunto, de ponto de vista ao mesmo tempo regionalista e técnico, é que me animo a fazê-lo. Ousadia que os competentes hão de desculpar ao intruso.

A verdade é que não só de espírito vive o homem: vive também do pão - inclusive do pão-de-ló, do pão-doce, do bolo que é ainda pão. Não só com os problemas de belas artes, de urbanismo, de arquitetura, de higiene, de engenharia, de administração deve preocupar-se o regionalista: também com os problemas de culinária, de alimentação, de nutrição.

Três regiões culinárias destacam-se hoje no Brasil: a Baiana, a Nordestina e a Mineira. A Baiana é decerto a mais poderosamente imperial das três. Mas talvez não seja a mais importante do ponto de vista sociologicamente brasileiro.

Outras tradições culinárias menos importantes, poderiam ser acrescentadas, com suas cores próprias, ao mapa que se organizasse das variações de mesa. sobremesa e tabuleiro em nosso país: a região do

extremo Norte, com a predominância de influência indígena e dos complexos culinários da tartaruga - da qual se prepara ali uma rica variedade de quitutes - e da castanha, que se salienta não só na confeitaria como nas próprias sopas regionais - tudo refrescado com o açaí célebre: "chegou ao Pará, parou, tomou açaí, ficou"; a região fluminense e norte-paulista, irmã da nordestina em muita coisa pois se apresenta condicionada por idênticas tradições agrário-patriarcais a mais de uma sub-região fluminense, pelo mesmo uso farto do açúcar; a região gaúcha, em que a mesa é um tanto rústica, embora mais farta que as outras em boa carne, caracteristicamente comida como churrasco quase cru e a faca de ponta. O mais poderia ser descrito, do ponto de vista culinário, como sertão: áreas caracterizadas por uma cozinha ainda agreste; pelo uso da carne seca, de sol ou do Ceará com farinha: do leite, da umbuzada e do requeijão; pelo uso, também, do quibebe, franciscanamente simples, e da rapadura; e, nas florestas do centro do País, pela utilização da caça e do peixe de rio - tudo ascética e rusticamente preparado.

A influência portuguesa onde parece manifestar-se ainda hoje mais forte é no litoral, do Maranhão ao Rio de Janeiro. Ao Rio de Janeiro ou a Santos. No Rio os melhores restaurantes continuam os portugueses com suas peixadas e suas iscas à moda do Porto ou do Minho. A influência africana sobressai na Bahia. A influência ameríndia é - repita-se - particularmente notável no extremo Norte. E no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina encontram-se traços consideráveis de influência espanhola e de influência alemã, a darem novos sabores aos pratos e novas aparências aos velhos hábitos lusitanos, açorianos ou paulistas de alimentação; em São Paulo e no Paraná, sinais de influência italiana e alguma influência síria ou árabe, além da israelita, presente também no Rio de Janeiro, embora não revele o poder de expansão das outras. Mas como noutras artes, as três grandes influências de cultura que se encontram à base das principais cozinhas regionais brasileiras e de sua estética são a portuguesa, a africana e a ameríndia, com as predominâncias regionais já assinaladas.

Onde parece que essas três influências melhor se equilibraram ou harmonizaram foi na cozinha do Nordeste agrário onde não há nem excesso português como na capital do Brasil nem excesso africano como na Bahia nem quase exclusividade ameríndia como no extremo Norte, porém o equilíbrio. O equilíbrio que Joaquim Nabuco atribuía à própria natureza pernambucana.

É claro que a dívida da cozinha brasileira, em geral, e do Nordeste agrário, em particular, às tradições de forno e de fogão de Portugal, é uma dívida intensa. Sem esse lastro, de toucinho e de paio, de grão-de- bico e de couve, bem diversa seria a situação culinária do Brasil. Não haveria unidade nacional sob a variedade regional.

Não nos esqueçamos de que a colonização do Brasil se iniciou na época em que a mesa de Portugal se aprimorara na "primeira da Europa": opinião um tanto jornalística de Ramalho Ortigão que os estudos de história social parecem de certo modo confirmar. O português com seu gênio de assimilação trouxera para sua mesa alimentos, temperos, doces, aromas, cores, adornos de pratos, costumes e ritos de alimentação das mais requintadas civilizações do Oriente e do Norte da África. Esses valores e esses ritos se juntaram a combinações já antigas de pratos cristãos com quitutes mouros e israelitas, entre os quais, segundo parece, se deve situar o famoso cozido à portuguesa, parente do "puchero". O costume da feijoada "dormida" parece ter sido assimilado pelo luso-brasileiro, do israelita, amigo desses mistérios por gosto e pela necessidade de esconder certos quitutes como que de ritual ou liturgia, dos olhos de Cristãos Velhos e segundo seus dias de preceito.

Desenvolveram-se aquelas combinações nos palácios, nas casas nobres, nas casas burguesas, nas tavernas plebéias dos portos ou das cidades marítimas, mas, de modo todo particular, nos mosteiros. Nas vastas cozinhas dos mosteiros que, em Portugal, conservaram-se até a decadência das ordens monásticas e mesmo depois dela, verdadeiros laboratórios onde novos sabores ou gostos de carne, de peixe, de açúcar, de arroz, de canela, de verdura, foram descobertos ou inventados por monges voluptuosos e pacientes, peritos no preparo de molhos e temperos capazes de despertar os paladares mais lânguidos como outros afrodisíacos, do sexo, já quase moribundo, dos homens velhos ou gastos. Às freiras devem-se doces, bolos, pastéis, sobremesas, gulodices, também caracteristicamente luso-monásticos. Nos seus conventos, especializaram-se na arte de também adquirirem, com relação ao paladar, caráter um tanto afrodisíaco. Que o digam os nomes de alguns desses pastéis de freiras- já notados pelo erudito Afrânio Peixoto - e também - acrescentamos nós - os de vários doces da doçaria popular ou plebéia de Portugal. Até "testículos de São Gonçalo" se intitula um, mais pagã e grosseiramente plebeu.

Todas essas tradições de mesa e sobremesa de Portugal - a cristã, a pagã, a moura, a israelita, a palaciana, a burguesa, a camponesa, a monástica ou fradesca, a freirática - transmitiu-as de algum modo Portugal ao Brasil, onde as matronas portuguesas - é a informação de Gabriel Soares de Souza - não tardaram a aventurar-se a combinações novas com as carnes, os frutos, as ervas e os temperos da terra americana. Aventuras de experimentação continuadas pelas brasileiras, senho-ras de engenho, pelas sinhás das casas-grandes, umas, grandes quituteiras, outras, doceiras, quase todas peritas no fabrico do vinho de caju, do licor de maracujá, da garapa de tamarindo: símbolos da hospitalidade patriarcal, nesta parte do Brasil, antes de o "cafezinho" ter-se generalizado como sinal de cortesia ou boas vindas.

Por outro lado, onde se foi levantando um mosteiro ou um recolhimento de religiosos ou um convento de freiras é quase certo que foi também se erguendo no Brasil um novo reduto de valores culinários. Um

novo laboratório em que frades ou freiras se especializaram em inventar novas combinações culinárias, dentro das boas tradições portuguesas como "o eclesiástico paio" e o "gótico presunto fumeiro", a que se refere Ortigão.

A tais mestres se juntaram cunhãs e negras Minas com seu saber também considerável de ervas, de temperos, de raízes, de frutos, de animais dos trópicos: ervas, frutos e animais bons para o forno e para o fogão. E esse saber não seria o português, sempre amigo das aventuras e dos descobrimentos, sempre franciscanamente disposto a confraternizar com os irmãos pardos e negros, que o desprezasse. O que explica a crescente influência ameríndia e africana sobre a mesa e a sobremesa do colonizador, por intermédio não só de cunhãs e negras Minas como de cozinheiros ou mestres-cucas: em geral pretalhões efeminados ou amaricados.

E sempre muito lírico, o português foi dando aos seus doces e quitutes, no Brasil, nomes tão delicados como os de alguns de seus poemas ou de seus madrigais: Pudim de Iaiá, Arrufos de Sinhá, Bolo de Noiva, Pudim de Veludo. Nomes macios como os próprios doces. E não apenas nomes de um cru realismo, às vezes lúbrico, como "barriga de freira".

Enquanto isto, foi se mantendo a tradição, vinda de Portugal, de muito quitute mourisco ou africano: o alfenim, o alféloa, o cuscuz, por exemplo. Foram eles se conservando nos tabuleiros ao lado dos brasileirismos: as cocadas - talvez adaptação de doce indiano, as castanhas de caju confeitadas, as rapaduras, os doces secos de caju, o bolo de goma, o munguzá, a pamonha servida em palha de milho, a tapioca seca e molhada, vendida em folha de bananeira, a farinha de castanha em cartucho, o manuê. E o tabuleiro foi se tornando, nas principais cidades do Brasil, e não apenas do Nordeste, expressão de uma arte, uma ciência, uma especialidade das "baianas" ou das negras: mulheres, quase sempre imensas de gordas que, sentadas à esquina de uma rua ou à sombra de uma igreja, pareciam tornar-se, de tão corpulentas, o centro da rua ou do pátio da igreja. Sua majestade em às vezes a de monumentos. Estátuas gigantescas de carne. E não simples mulheres iguais às outras.

Muitas envelheceram como que eternas, como os monumentos - as fontes, os chafarizes, as árvores matriarcais - vendendo, no mesmo pátio ou na mesma esquina, doce ou bolo a três gerações de meninos e até homens gulosos. Algumas ficaram famosas pelo asseio dos seus trajos de cor e das mãos pretas ou pardas; pela alvura dos panos quase de altar de igreja dos seus tabuleiros; pelo primor dos enfeites de papel azul, vermelho, verde, amarelo, dentro dos quais arrumavam seus doces ou seus quitutes; papéis caprichosamente recortados. Outras, pelos seus pregões. Outras, ainda, pelos seus cabeções picados de rendas, pelos seus panos da Costa, pelas suas chinelas, pelos seus balagandãs, pelos seus turbantes, pelas suas tetéias, pelo seu ar de princesas ou de rainhas não de maracatus, mas de verdade; pelos angus que só elas sabiam fazer tão gostosos. Rara é a meninice, raro é o passado de brasileiro, hoje pessoa grande ou grave, a que falte a imagem de uma negra dessas, vendedora quase mística de angu, de tapioca ou de bolo ou alfenim recortado em forma de gente, de cachimbo, de bicho, de árvore, de estrela. Ou a figura de uma mãe, avó, tia, madrinha, senhora de engenho, que o tenha iniciado nos segredos da glutoneria das casas- grandes.

Dos velhos engenhos da região é raro o que não tenha tido sua especialidade culinária mesmo modesta: um quibebe ou um pirão ou uma farofa mais gostosa que as outras. Alguns foram famosos por seus senhores, grandes quituteiros ou simples regalões e até gulões. Que o diga o nome de Jundiá do Guloso. E de vários engenhos mais ricos se sabe que, para regalo dos papa-pirões, conservaram até há pouco tempo a tradição da mesa larga e sempre pronta a receber hóspedes, como se todo dia fosse neles dia santo ou dia de festa: sábado de aleluia alegrado pelas fritadas de siris; São João colorido pelo amarelo das canjicas salpicadas de canela e pelas pamonhas envolvidas em palha de milho verde; ou Carnaval adoçado pelos filhós com mel de engenho. Tradição, essa de casa de engenho de mesa farta, vinda de época remota. O Padre Cardim, que esteve no Brasil no século XVI, refere-se aos jantares festivos com que os senhores de engenhos mais opulentos - e às vezes endividados - de Pernambuco se regalavam com vinhos e comidas raras. E as crônicas do domínio holandês no Nordeste registram igualmente jantares e até banquetes suntuosos, alguns dados pelo próprio Conde Maurício de Nassau, a homens importantes da terra, naturalmente para amaciar neles o ódio à invasão nórdica que, aliás, deixou na língua do Nordeste um nome holandês de comida; brote.

Também alguns sobrados do Recife, para os quais, nos fins do século XVIII foram se transferindo das casas-grandes do interior e dos sobrados decadentes de Olinda, os requintes culinários da civilização regional, ficaram famosos pela fartura e pelo primor de suas mesas. Entre esses sobrados ou essas casas de sítios, a de Bento José da Costa e depois a da família Siqueira, em Ponte d'Uchoa; a do velho Maciel Monteiro; os sobrados da Madalena e, no centro da cidade, os do Cais do Colégio, os da Rua da Praia, os do Pátio do Carmo, os do Aterro da Boa Vista.

Eram casas onde se comia principescamente bem, as dos príncipes recifenses do comércio, da magistratura, da política, das letras, das armas. Onde desde a meninice ioiôs e iaiás dengosas tomavam chá da Índia com sequilhos - como os que se saboreavam na casa da família Lopes Gama. E tudo isso, em porcelana da melhor, da mais fina, da mais bela. Comido com talher de prata, mexido com colher da melhor prata portuguesa. Gabo-me de possuir hoje, entre outras relíquias pernambucanas menos de guerra que de

paz, um prato do Oriente, há quase duzentos anos no Brasil, que foi do velho Morais, do Dicionário: presente do meu amigo Eduardo de Morais Gomes Ferreira, descendente daquele ilustre homem do Sul que o casamento com moça pernambucana transformou em senhor de engenho do Nordeste. Aliás, em seu sobrado do Pátio de São Pedro, em Olinda, Eduardo e Alfredo de Morais guardam outra relíquia preciosa: vasto prato do Oriente onde se servia outrora o arroz doce tradicional, hoje raro como sobremesa nas casas ou como gulodice nos tabuleiros de rua.

Não é só o arroz doce: todos os pratos tradicionais e regionais do Nordeste estão sob a ameaça de desaparecer, vencidos pelos estrangeiros e pelos do Rio. O próprio coco verde é aqui considerado tão vergonhoso como a gameleira, que os estetas municipais vêm substituindo pelo "ficus benjamim", quando a arborização que as nossas ruas, parques e jardins pedem é a das boas árvores matriarcais da terra ou aqui já inteiramente aclimadas: pau d'arco, mangueira, jambeiro, palmeira, gameleira, jaqueira, jacarandá.

Ao voltar da Europa há três anos, um dos meus primeiros desapontamentos foi o de saber que a água de coco verde era refresco que não se servia nos cafés elegantes do Recife onde ninguém se devia lembrar de pedir uma tigela de arroz doce ou um prato de munguzá ou uma tapioca molhada. Isto é para os "frejes" do Pátio do Mercado. Os cafés elegantes do Recife não servem senão doces e pastéis afrancesados e bebidas engarrafadas. E nas casas? Nas velhas casas do Recife? Nas casas-grandes dos engenhos? Quase a mesma vergonha de servirem as senhoras pratos regionais que nos cafés e hotéis elegantes da capital.

Nem ao menos por ocasião da Quaresma, voltam essas casas aos seus antigos dias de esplendor. Já quase não há casa, neste decadente Nordeste de usineiros e de novos-ricos, onde aos dias de jejum se sucedam, como antigamente, vastas ceias de peixe de coco, de fritada de guaiamum, de pitu ou de camarão, de cascos de caranguejo e empadas de siri preparadas com pimenta. Já quase não há casa em que dia de aniversário na família os doces e bolos sejam todos feitos em casa pelas sinhás e pelas negras: cada doce mais gostoso que o outro.

Quase não se vê conto ou romance em que apareçam doces e bolos tradicionais como em romances de Alencar. Os romancistas, contistas e escritores atuais têm medo de parecer regionais, esquecidos de que regional é o romance de Hardy, regional é a poesia de Mistral, regional o melhor ensaio espanhol: o de Gavinet, o de Unamuno, o de Azorin.

É claro que a época já não permite os bolos de outrora, com dúzias e dúzias de ovos. Mas a arte da mulher de hoje está na adaptação das tradições da doçaria ou da cozinha patriarcal às atuais condições de vida e de economia doméstica. Nunca repudiar tradições tão preciosas para substituí-las por comidas incaracterísticas de conserva e de lata, como as que já imperam nas casas das cidades e começam a dominar nas do interior.

Raras são hoje, as casas do Nordeste onde ainda se encontrem mesa e sobremesa ortodoxamente regionais: forno e fogão onde se cozinhem os quitutes tradicionais à boa moda antiga. O doce de lata domina. A conserva impera. O pastel afrancesado reina. Raro um Pedro Faranhos Ferreira, fiel; em sua velha casa de engenho - infelizmente remodelada sem nenhum sentido regional - aos pitus do Rio Una. Raro um Gerôncio Dias de Arruda Falcão que dirija ele próprio de sua cadeira de balanço de patriarca antigo o preparo dos quitutes mais finos para a mesa imensa da casa-grande - quase um convento - que herdou do Capitão Manuel Tomé de Jesus, lembrando à cozinheira um tempero a não ser esquecido no peixe, insistindo por um molho mais espesso no cozido ou por um arroz mais solto para acompanhar a galinha, recordando às senhoras da casa, as lições de ortodoxia culinária guardadas nos velhos livros de receitas da família. Rara uma Dona Magina Pontual que se esmere ela própria no fabrico de manteiga que aparece à mesa da sua casa-grande: a do Bosque. Rara urna Dona Rosalina de Melo que faça ela própria os alfenins de que não se esquecem nunca os meninos que já passaram algum fim de ano no Engenho de São Severino dos Ramos. E o professor Joaquim Amazonas me recorda o famoso mingau-pitinga do Engenho Trapiche: delicioso mingau do qual parece ter se perdido a receita.

Toda essa tradição está em declínio ou, pelo menos, em crise, no Nordeste. E uma cozinha em crise significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se.

As novas gerações de moças já não sabem, entre nós, a não ser entre a gente mais modesta, fazer um doce ou guisado tradicional e regional. Já não têm gosto nem tempo para ler os velhos livros de receitas de família. Quando a verdade é que, depois dos livros de missas, são os livros de receitas de doces e de guisados os que devem receber das mulheres leitura mais atenta. O senso de devoção e o de obrigação devem completar-se nas mulheres do Brasil, tornando-as boas cristãs, e, ao mesmo tempo, boas quituteiras, para assim criarem melhor os filhos e concorrerem para a felicidade nacional. Não há povo feliz quando às suas mulheres falta a arte culinária. É uma falta quase tão grave como a da fé religiosa.

Quando aos domingos saio de manhã pelo Recife - pelo velho Recife mais fiel ao seu passado - e em São José, na Torre, em Casa Amarela, no Poço sinto vir ainda de dentro de muita casa o cheiro de mungunzá e das igrejas o cheiro de incenso, vou almoçar tranqüilo o meu cozido ou o meu peixe de coco com pirão. Mais cheio de confiança no futuro do Brasil do que depois de ter ouvido o Hino Nacional

executado ruidosamente por banda de música ou o "Porque me ufano do meu país", evocado por orador convencionalmente patriótico.

Creio que não haveria exagero nenhum em que este Congresso, pondo no mesmo plano de importância da casa, a mesa ou a cozinha regional, fizesse seus os seguintes votos:

1o Que alguém tome a iniciativa de estabelecer no Recife um café ou restaurante a que não falte cor local - umas palmeiras, umas gaiolas de papagaios, um caritó de guaiamum à porta e uma preta de fogareiro, fazendo grude ou tapioca - café ou restaurante especializado nas boas tradições da cozinha nordestina;

2o Que os colégios de meninas estabeleçam cursos de cozinha em que sejam cultivadas as mesmas tradições;

3° Que todos quantos possuírem em casa cadernos ou Mss. antigos de receitas de doces, bolos, guisados, assados, etc., cooperem para a reunião dessa riqueza, hoje dispersa em manuscritos de família, esforço de que o Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste tomará a iniciativa, nomeando uma comissão para a colheita de material tão precioso é digno de publicação.

Aliás o ideal seria que o Recife tivesse o seu restaurante regional, onde se cultivassem a doçaria e a culinária antigas, no meio de um resto de mata também antiga e regional como a de Dois-Irmãos, onde a pessoa da terra ou de fora se regalasse comendo tranqüilamente sua paca assada ou sua fritada de guaiamum com pirão e molho de pimenta à sombra de paus d'arco, de visgueiros, de mangueiras; onde as crianças se deliciassem com castanha confeitada, garapa de tamarindo, bolo de goma, brincando, ao mesmo tempo, de empinar balde, gamelo, bizarrona ou tapioca, de jogar carrapeta ou castanha, de apostar carreira em quenga de coco, num parque atapetado de cheiroso capim da terra; onde meninos e pessoas grandes tivessem ao alcance dos olhos e dos ouvidos, tão naturalmente quanto possível - como se faz hoje nos jardins zoológicos da Alemanha - os bichos, os animais, as aves, as borboletas da região, animais que tantos de nós só conhecemos de nome ou das ilustrações de livros: em geral livros estrangeiros.

E perto do restaurante não haveria mal nenhum em se instalar, além de uma botica onde só se vendesse remédio da flora regional ou brasileira - inclusive a tintura da Preciosa, melhor para corrigir qualquer indigestão que o sal de fruta dos ingleses -, uma loja de brinquedos e objetos de arte regional e popular: bonecas de pano, renda do Ceará, farinheiras e colheres de pau, chapéus de palha de Ouricuri, alpercatas sertanejas, cabaços de mel de engenho, cachimbos de barro, manés-gostosos, figuras de mamulengo, carrapetas, panos da Costa, balaios, cestos, bonecos de barro, potes, panelas, quartinhas, bilhas. Nem mal nenhum haveria em que funcionassem perto do restaurante um mamulengo e, nos dias de festa, um bumba-meu-boi ou um pastoril. Nem mesmo em que houvesse uma "casa de horrores", onde os horrores em vez de ser os europeus, como nos parques de diversão comum, fossem o Cabeleira, a Cabra Cabriola, o Bicho Carrapatu apresentados de tal modo que não perturbassem a digestão de ninguém, mas divertissem grandes e pequenos.

indigestão que o sal de fruta dos ingleses -, uma loja de brinquedos e objetos de arte regional e popular: bonecas de pano, renda do Ceará, farinheiras e colheres de pau, chapéus de palha de Ouricuri, alpercatas sertanejas, cabaços de mel de engenho, cachimbos de barro, manés-gostosos, figuras de mamulengo, carrapetas, panos da Costa, balaios, cestos, bonecos de barro, potes, panelas, quartinhas, bilhas. Nem mal nenhum haveria em que funcionassem perto do restaurante um mamulengo e, nos dias de festa, um bumba-meu-boi ou um pastoril. Nem mesmo em que houvesse uma "casa de horrores", onde os horrores em vez de ser os europeus, como nos parques de diversão comum, fossem o Cabeleira, a Cabra Cabriola, o Bicho Carrapatu apresentados de tal modo que não perturbassem a digestão de ninguém mas divertissem grandes e pequenos.

doce de goiaba ou experimentar o tempero de um aferventado de peru; ou ao mercado para comer um sarapatel da marca dos que fazem a fama do Bacurau; ou a Dudu para saborear uma peixada à moda da casa, com pirão e pimenta; ou ao fundo de um velho sítio cheio de mangueiras e jaqueiras para chupar manga e comer jaca com as mãos, lambuzando-se; ou a uma boa queda d'água de engenho, para um regalado banho, fazendo antes de entrar n'água o sinal da cruz e chupando um ou dois cajus entre goles de cachaça que guardem a alma e o corpo dos perigos que povoam todas as águas. Há quem não queira nem olhar para um mucambo quando o mucambo tem lições preciosas a ensinar aos arquitetos, aos higienistas, aos artistas. Há quem evite passar por toda rua estreita ou por todo beco antigo, quando a rua estreita ou o beco antigo é outro mestre de urbanismo e de higiene.

Mestras de higiene tropical são também as mulheres do povo que andam pelas ruas e estradas ao sol do meio dia protegidas contra esse sol excessivo por xales, mantilhas, panos da Costa atirados elegante e liturgicamente sobre a cabeça e os ombros de dez ou vinte formas diversas que merecem um estudo, tanto é o que podem revelar sobre as culturas orientais e africanas que se transferiram para o Brasil com esses xales, mantilhas e panos e os diferentes modos, maometanos ou não, das mulheres o usarem. Mestras de arte de decoração são as negras de tabuleiro que enfeitam seus doces com papel recortado: outro assunto popular, plebeu, rasteiro que está a merecer um bom estudo regional. Mestras da arte de promover o que o

sábio Branner chamou "o bem estar humano" são as muitas cozinheiras boas, pretas, pardas, morenas, brancas, que ainda existem por este Nordeste; que não se deixam corromper pela cozinha francesa nem pela indústria norte-americana das conservas. Mestres de música são alguns dos cantadores de modinha e dos tocadores de violão deste velho trecho do Brasil. Mestres de dança são alguns dos babalorixás e algumas das ialorixás dos xangõs. Mestres de medicina são alguns dos curandeiros da região, doutores em ervas e plantas regionais. Mestres de higiene regional do trajo são os sertanejos e os matutos que andam com camisas leves por fora das calças também leves, chapéus de palha, alpercatas. Mestras de adorno pessoal de acordo com o clima e a paisagem da região são as morenas, as mulatas e caboclas, cujo cabelo brilha à luz da lua amaciado pelo mais puro óleo de coco, perfumado pelos mais cheirosos jasmins. Mestras são, ainda, algumas delas, pelas lições que dão às brancas - escravas dos figurinos franceses - vestindo-se segundo sábias tradições árabes: turbante, cabeção picado de rendas, pano largo e de cores vistosas que as protege sábia e graciosamente do sol. Mestres da arte náutica são os jangadeiros das praias do Nordeste. Mestres de educação física são alguns sobreviventes de capoeiras entre simples trabalhadores, negros e pardos, de engenhos e trapiches, cujas formas de rijos homens de trabalho estão a pedir pintores que pintem também mulatas e caboclas meio-nuas e não apenas brancas finas; nossas senhoras morenas e não apenas louras.

De modo que, no Nordeste, quem se aproxima do povo desce a raízes e a fontes de vida, de cultura e de arte regionais. Quem se chega ao povo está entre mestres e se torna aprendiz, por mais bacharel em artes que seja ou por mais doutor em medicina. A força de Joaquim Nabuco, de Sílvio Romero, de José de Alencar, de Floriano, do Padre Ibiapina, de Telles Júnior, de Capistrano, de Augusto dos Anjos, de Rosalvo Ribeiro, de Augusto Severo, de Auta de Sousa, de outras grandes expressões nordestinas da cultura ou do espírito brasileiro, veio principalmente do contato que tiveram, quando meninos de engenho ou de cidade, ou já depois de homens feitos, com a gente do povo, com as tradições populares, com a plebe regional e não apenas com as águas, as árvores, os animais da região.

É um contato que não deve ser perdido em nenhuma atividade de cultura regional. E dessas atividades não deve ser excluída nunca a arte do quitute, do doce, do bolo que, no Nordeste, é um equilíbrio de tradições africanas e indígenas com européias; de sobrevivências portuguesas com a arte das negras de tabuleiro e das pretas e pardas do fogareiro. Por conseguinte, brasileiríssima.

Pois o Brasil é isto: combinação, fusão, mistura. E o Nordeste, talvez a principal bacia em que se vêm processando essas combinações, essa fusão, essa mistura de sangue e valores que ainda fervem: portugueses, indígenas, espanhóis, franceses, africanos, holandeses, judeus, ingleses, alemães, italianos. Daí a riqueza de sabores ainda contraditórios de sua cozinha no extremo Nordeste talvez mais complexa e mais compreensiva que a chamada "Baiana", isto é, a de Salvador, da Bahia, sua parenta em tanta coisa. Por isso mesmo, são as duas dignas - e também paraense ou amazônica - da melhor atenção brasileira.

Saliente-se em conclusão, que há no Nordeste - neste Nordeste em que vêm se transformando em valores brasileiros, valores por algum tempo apenas subnacionais ou mesmo exóticos - uma espécie de franciscanismo, herdado dos portugueses, que aproxima dos homens, árvores e animais. Não só os da região como os importados. Todos se tornam aqui irmãos, tios, compadres das pessoas. Conheci uma negra velha que toda tarde conversava com uma jaqueira como se conversasse com uma pessoa íntima: "minha nega". "meu bem", "meu benzinho". Por que os poetas não surpreendem esses idílios?

Há no Nordeste de hoje árvores e plantas vindas da Europa, do Oriente, da África que crescem nos sítios ou nos quintais, não só como se fossem naturais da região, porém como se fossem gente: gente de casa. Que não só dão de comer às pessoas sãs como servem de remédio às doentes. Que não só cobrem as casas pobres como lhes refrescam e perfumam o ar. E tanto quanto as velhas árvores da terra como o cajueiro, ainda servem de brinquedo - carrossel, gangorra, cavalo - aos meninos, deixando-os trepar pelos seus galhos como se fossem pernas de avós ou de tios; e não restos brutos e insensíveis de mata ou de floresta. Sempre me pareceu que Dois-Irmãos devia ser no Recife um parque que reunisse todas essas árvores regionais, importadas ou nativas, mais camaradas dos homens; e não apenas as mais agrestes e raras. Também todos os animais mais ligados à vista regional e não apenas os mais ariscos e curiosos.

Augusto dos Anjos afeiçoou-se tanto, nos seus dias de menino de engenho, a um pé de tamarindo grande do quintal da casa dos seus pais, que dele guardou a lembrança que se guarda de uma pessoa particularmente amiga. A velha árvore foi para ele um confidente bom dos primeiros amores ou dos primeiros sonhos da meninice. Que menino do Nordeste não teve a sua mangueira ou o seu cajueiro de estimação, parecido ao pé de tamarindo dos versos de Augusto? Ou um visgueiro ou coqueiro dos que estão sempre repontando dos quadros de Telles Júnior como se fossem mais do que árvores ou mais do que paisagem? Uma árvore mais amiga que as outras. Uma árvore quase pessoa de casa. Quase pessoa da família. Quase irmã dos meninos ou desses meninos eternos que são os poetas, os pintores, os compositores que sabem ouvir não somente estrelas mas árvores, como souberam José de Alencar e Augusto dos Anjos.

E o mesmo é certo daqueles animais da região mais presos à vida dos homens e dos meninos. Mais próximos de suas alegrias. Mais camaradas deles nos dias difíceis ou de dor. Não digo que o cavalo seja na vida do homem ou do menino do Nordeste o mesmo personagem importante que é na vida ou no drama do

homem do Rio Grande do Sul. Mas em certos trechos do Nordeste o apreço do homem ao cavalo vai quase ao mesmo extremo:

". . . cavalo bom e mulher''.

E é raro o menino desta parte do Brasil que, mesmo sem ter sido rico, não chegou a ser dono de um carneirinho manso que fosse seu primeiro cavalo. Que fosse para ele não só o que é para os meninos de hoje o velocípede ou a bicicleta, porém mais alguma coisa: quase pessoa, quase gente, quase malungo. Uma quase pessoa digna de aparecer em romances, em poemas, em contos, em teatro, em que se dramatizasse a vida da região, em que se evocassem as aventuras da infância regional.

E a vaca? o boi? a comadre-cabra dos sertões? a comadre cabra cujo leite tem criado tanto sertanejo rijo? o cachorro? o gato? o papagaio? a arara? o canário? o pombo? o sagüim? São todos animais ligados de tal modo à vida, à economia, ao cotidiano da região que vários deles têm sido chorados depois de mortos tanto quanto os bois dos bumbas-meu-boi nos dramas populares da região. Chorados como se fossem gente: gente amiga, gente de casa. Túlio Bello, no seu Engenho de Queimadas, levantou no alto de um morro um quase monumento ao cachorro leal de que ainda hoje se lembra com saudade: seu amigo, seu companheiro, seu camarada. E no pátio do engenho do bom pernambucano que é Júlio de Queimadas, dá gosto ao visitante ver as árvores alegradas pelos vermelhos e azuis das penas das araras que ele cria: araras que dariam brilho a um bom jardim zoológico regional. Araras que como os papagaios de gaiola, os galos, os canários, os carneiros cheios de fitas, deveriam ser mais pintadas pelos pintores, mais retratadas pelos fotógrafos, mais cantadas pelos poetas, mais consideradas pelos ensaístas, romancistas, contistas capazes de associar o animal ao humano, o regional ao universal.

Pedro Paranhos, senhor de Japaranduba, este ainda se recorda do carneirinho gordo que recebeu de presente quando fez sete anos. Em sua companhia fui ver um dia os gatos de briga do Coronel Frederico Lundgren; e ouvi os dois coronéis conversarem sobre galos e cavalos, carneiros e aves regionais, como se conversassem sobre gente. Onde o O. Henry que encontre aí a matéria ideal - que há - para contos?

A boa Dona Maroquinha Tasso é outra que na sua casa de Dois -Irmãos dá de comer todos os dias a quanto bicho de rua ou do mato lhe aparece com olhos de fome no quintal que é vizinho do mato: acolhe-os numa constante prática dos melhores princípios franciscanos. Sua ternura se estende a tudo que é bicho pobre: a passarinho, a cabra e até a gavião. Ninguém mais capaz do que ela de reunir animais para um jardim regional em que os bichos vivessem quase todos à vontade e comendo na mão das pessoas como se todos fossem amigos. Noutro país uma figura como D. Maroquinha já estaria nos romances, nos contos, nos poemas.

Menino, ainda, conheci o velho João Ramos, vizinho de meu pai na rua chamada hoje de João Ramos. Depois de ter se batido, ao lado de Nabuco, na campanha da Abolição, tornou-se um dos paladinos brasileiros na luta pela proteção aos animais. E uma das minhas recordações de menino é a da figura do velho ardente, no meio da rua, a gritar para um carroceiro - talvez antigo escravo que se vingasse nos bichos das chibatadas sofridas dos brancos na própria carne - que se arrependeria - "veja bem: você se arrepende"! - se continuasse a maltratar o cavalo da carroça. Eu ia pela calçada, montado no meu carneiro - um carneiro branco, alvo lavado como se fosse gente, enfeitado de guizos de fitas como se fosse mulher; e puxado pela mão de um tio. Mas cheguei a ter medo do velho Ramos, cuja voz de indignação encheu naquela tarde a rua inteira, espalhando-se pela Rua Amélia e chegando até à esquina da Estrada dos Aflitos. Uma voz de Dia de Juízo contra os carroceiros que maltratavam cavalos e bois, os meninos que judiavam com carneiros, os moleques que matavam passarinhos, os italianos que exploravam macacas, os ingleses que estavam acabando com as borboletas, os caçadores que estavam dando fim aos marrecos, aos tatus, às pacas.

Que é dos poetas do Nordeste que não cantam figuras do vigor ao mesmo tempo regional e humano da de João Ramos, como meu amigo Vachel Lindsay, cantou a figura do General Booth: o general Booth, do Exércíto da Salvação, "entrando no Céu?" Que é dos romancistas que não descobrem tais figuras de Dons Quixotes regionais? Dos biógrafos que não as revelam? Dos ensaístas que não as interpretam?

Hoje precisamos de Joões Ramos, continuadores de Joaquins Nabucos e cujas vozes se ergam não só a favor dos homens ainda cativos de homens ou dos animais ainda maltratados e explorados pelos donos ou das matas roubadas de seus bichos mais preciosos por caçadores a serviço de comerciantes gulosos de dinheiro fácil, mas a favor das árvores, das plantas, dos frutos da região, dos seus doces e dos seus quitutes, que tanto quanto as artes populares e os estilos tradicionais de casa e de móvel, vêm sendo desprezados, abandonados e substituídos pelas conservas estrangeiras, por drogas suíças, remédios europeus e pelas novidades norte-americanas. Donde a necessidade deste Congresso de Regionalismo definir-se a favor de valores assim negligenciados e não apenas em prol das igrejas maltratadas e dos jacarandás e vinháticos, das pratas e ouros de família e de igreja vendidos aos estrangeiros, por brasileiros em quem a consciência regional e o sentido tradicional do Brasil vem desaparecendo sob uma onda de mau cosmopolitismo e de falso modernismo. É todo o conjunto da cultura regional que precisa ser defendido e desenvolvido.

“Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e pelo bom senso”. Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano)

  Dr. José Reginaldo de Melo Paes (medico, poeta, acadêmico alagoano) “Viver é uma arte. E seu roteiro deve ser escrito pela sabedoria e p...