Os Holandeses No Nordeste
No
século 17 a Holanda vivia um surto de liberdade e progresso, livre das
âncoras de atraso que perduravam em outras regiões da Europa. A sua
sociedade, a sua economia e as artes (que incluiam uma pintura de grande
beleza e altíssimo nível artístico) experimentavam os benefícios de um
capitalismo moderno, comandado pela ambição de uma poderosa burguesia.
Uma expressão emblemática dessa nova economia era o ramo holandês da
Companhia das Índias Ocidentais - hoje a chamaríamos de empresa
transnacional - que estendia seus tentáculos pelo mundo e controlava
grande parcela do comércio entre Oriente e Ocidente. Um Conselho de
dezenove membros designou como Governador de Pernambuco o Príncipe João
Maurício, Conde de Nassau. Foi uma escolha auspiciosa para o Brasil,
porque se tratava de um amante das artes, um talento versátil e
competente, com profundo interesse pelo Novo Continente.
Em
1637 inaugurou seu governo com diretrizes bem diferentes daquelas dos
colonialistas portugueses, decretando “Liberdade de Religião e de
Comércio”.
De sua comitiva constavam comerciantes, artistas, urbanistas, cidadãos alemães e flamengos. Há notícias de que teria vindo acompanhado de seis pintores, porém não temos registros de todos.
De sua comitiva constavam comerciantes, artistas, urbanistas, cidadãos alemães e flamengos. Há notícias de que teria vindo acompanhado de seis pintores, porém não temos registros de todos.
Como
assinala Gilberto Freyre, “... O certo é que o primeiro gosto de
governo democrático e largamente representativo, experimentaram-no os
brasileiros durante o domínio holandês e sob a administração de um
príncipe alemão da casa de Nassau, João Maurício. Foi também Nassau quem
se esmerou em criar no Brasil holandês um ambiente de tolerância
religiosa escandalosamente novo para a América portuguesa e irritante
para os próprios calvinistas do seu séqüito. Nassau foi quem primeiro
cuidou sistematicamente de libertar a economia da área brasileira
produtora de açúcar, da monocultura, para desenvolver entre nós a
policultura”...(in J.A . Gonsalves de Mello, Tempo dos Flamengos, pág.
17). Foi também no Recife sob domínio holandês que se afirmou uma parte
importante da cultura israelita - muitos judeus ibéricos haviam antes
buscado refúgio na Holanda - e nesse solo brasileiro se implantou a
tradição dos judeus, especialmente dos sefarditas, que daqui seria
irradiada para o norte do Continente Americano. Existem registros de que
em 1636 uma sinagoga estava sendo erguida na cidade.
Muitos
judeus holandeses encontravam-se ligados às atividades comerciais da
Companhia das Índias, o que naturalmente os encaminhou para o Novo
Mundo. Um judeu erudito de Amsterdã, Aboab da Fonseca, chegou ao Recife
em 1642, tornando-se o primeiro rabino em solo nacional e no Continente.
Em 1643, três anos após os portugueses terem recuperado a Coroa na
metrópole, o Padre Antonio Vieira - mal visto, perseguido pela
Inquisição e admirador de Aboab - recomendava ao Rei de Portugal que
recorresse aos capitais dos cristãos-novos e dos judeus emigrados para
ajudar as combalidas finanças lusitanas.
Recife
e seus arredores eram então pouco mais que um aglomerado de ruas, com
um pequeno perímetro urbano. Entretanto, a administração de Nassau já em
1637 dispunha de um sistema de governabilidade com a Câmara de
Escabinos, ou seja, representantes públicos que corresponderiam hoje a
um ágil tribunal de primeira instância. Foram criados hospitais,
assessorias técnicas junto de cada aldeia de nativos e instituições de
assistência, como uma Curadoria de Órfãos. Os holandeses manifestavam
também preocupações urbanísticas, sendo o burgo limitado e apertado era,
porém, muito cosmopolita, ali se acotovelavam e conviviam negros,
índios, brasileiros de origem européia, portugueses, judeus, holandeses,
franceses e alemães.
Todavia,
as deficiências nos serviços que atualmente denominamos saneamento
básico, não conseguiam evitar as doenças que se propagavam como
epidemias, o escorbuto, o “mal do país” (gonorréia), havendo também
grande proliferação de bordeis, abominados pelas comunidades religiosas.
Mas existia a preocupação com serviços públicos, como os bombeiros para
a prevenção dos incêndios freqüentes e os encarregados da coleta de
lixo. O porto de Recife era objeto de cuidados especiais e sua limpeza
obrigatória; quanto aos animais domésticos, não podiam ser deixados
soltos, sob pena de pesadas multas. Era uma tentativa, inédita no
Brasil, de viver em ambiente urbano razoavelmente civilizado.
Entretanto,
os holandeses dependiam quase totalmente dos suprimentos da metrópole e
não coordenavam uma estratégia competente e eficaz, de longo prazo,
para a ocupação do território, ao contrário do que faziam os
portugueses. Sua dificuldade em se estabelecerem e dominarem as zonas
rurais também lhes seria fatal para o projeto de ocupação colonial.
Estas circunstâncias têm uma explicação principal: o que interessava aos
holandeses era o comércio do açúcar, não a sua produção. Esta estava
bem organizada e funcionava sob o comando dos lusos, que utilizavam a
mão-de-obra escrava e um complexo sistema de tarefas, no qual Nassau não
pensava se imiscuir, nem substituir, sendo seu intuito
predominantemente comercial.
Além
disso, os habitantes que não viviam no perímetro urbano organizavam
ataques de surpresa, utilizando táticas que em nosso tempo chamamos
guerrilhas, o que impedia a interiorização dos holandeses.
Parece
hoje impossível entender que Maurício de Nassau, que chegou ao Recife
em 1637, tenha ficado menos de oito anos no Brasil, porque sua passagem
deixou marcas indeléveis - e, no caso da pintura, uma herança sui
generis, que não tem comparação com qualquer outra situação daquele
Brasil Colônia.
Nassau
era um grande-senhor, de gosto requintado. Incomodado com suas
precárias instalações provisórias, mandou construir um palácio para
morar, Vrijburg (Friburgo) que ocupava dezenas de profissionais, à
maneira de seus congêneres europeus e outro, Boa Vista, para abrigar os
poderes públicos. Quando a Companhia das Índias não dispunha de verbas,
ele pagava do próprio bolso as despesas - e, para nossa felicidade,
sempre manifestou grande interesse pelas artes.
Para
a Colônia, era um homem além de seu tempo, preocupado com a ecologia.
Com uma tecnologia incomum para a época, conseguiu transportar e
transplantar com sucesso centenas de árvores frutíferas e palmeiras de
grande porte. Conhecia e correspondia-se com personalidades européias.
Os
motivos da partida de Nassau ainda suscitam dúvidas. A Companhia das
Índias considerava as despesas dele excessivas, e de sua parte o Conde
achava que os burocratas da Holanda careciam de uma visão histórica mais
ampla e profunda, já que agiam como limitados comerciantes, pensando
somente no curto prazo. Em 1641 verificou-se um breve período de calma
entre os holandeses do Recife e os luso-brasileiros que dominavam o
interior, especialmente ocupados com a produção nos engenhos de açúcar.
No ano anterior, em Lisboa, os portugueses haviam retomado as rédeas do
poder, que tinham permanecido durante sessenta anos sob a Coroa
Espanhola. A situação continuava muito duvidosa, mas os dirigentes da
Companhia, erroneamente, estavam tranqüilos e negociaram a volta de
Nassau para a Europa. Em maio de 1694 ele deixou o Recife e voltou à
Holanda, deixando em seu lugar uma junta de cidadãos holandeses. Mas a
situação não parou de se deteriorar; as desavenças continuaram e - o
pior - enquanto isso os preços do açúcar despencavam no mercado
internacional. Após muitas escaramuças e batalhas, entre as quais as
duas de Guararapes, em 1648 e 49, que foram amplamente favoráveis aos
luso-brasileiros, em 1654 os holandeses se renderam.
O
biógrafo do Conde, Caspar van Baerle (que assinava em latim Caspar
Barlaeus) escreveu : ... Quem disse que Nassau não administrou e
governou com prudência o Brasil, compare o que se fez antes dele e o que
aconteceu depois...”
Outro viajante que esteve no Nordeste entre 1641 e 49 foi o alemão Johan Nieuhof, que escreveu o livro A Memorável Viagem, publicado somente após sua morte, onde nos dá testemunho da vida em Recife após a partida de Nassau. Deixou trabalhos de pouco mérito artístico, mas de interesse histórico.
Outro viajante que esteve no Nordeste entre 1641 e 49 foi o alemão Johan Nieuhof, que escreveu o livro A Memorável Viagem, publicado somente após sua morte, onde nos dá testemunho da vida em Recife após a partida de Nassau. Deixou trabalhos de pouco mérito artístico, mas de interesse histórico.
OS PINTORES HOLANDESES EM PERNAMBUCO
Os
mais notáveis foram Frans Post, irmão do arquiteto Pieter Post
(provavelmente, este também fez parte da comitiva); e Albert Eckout, a
quem o Brasil ficou devendo obras de grande originalidade e importância
documental. Entre 1630 e 1654 foram produzidas no Nordeste brasileiro
pinturas de reconhecido mérito, inclusive no espaço internacional e que
constituem preciosa documentação do seu patrimônio histórico natural, de
sua gente, de suas pequenas cidades e conjuntos rurais, além do
registro da fauna e flora que apaixonaram os europeus.
FRANS POST (1612-80)
Frans
Post é o artista mais importante do grupo. Pintor oficial do Governo
Holandês das Índias Ocidentais, desenvolveu no Brasil uma obra gráfica e
pictórica filiada às tradições da pintura holandesa de paisagem. Para
entender este tipo de trabalho, precisamos nos debruçar sobre a sua
“construção”, que seguia alguns cânones estéticos: o pintor partia de
uma perspectiva tomada a partir de um ponto abaixo do horizonte; no
primeiro plano, aberto, enquadrava-se uma ampla planície; o esquema do
desenho do quadro buscava uma diagonal, de preferência acentuada por
rios ou caminhos que ligavam o primeiro plano ao plano do fundo; o
horizonte situava-se aproximadamente a um terço da altura do quadro.
Para
um pintor europeu de paisagens, a natureza de Pernambuco daquela época
era um banquete visual, bem diferente das cenas holandesas. Frans Post
viveu em Recife entre 1637 e 1644, não lhe faltaram oportunidades para
se embevecer com as cores e a topografia dos campos, para se encantar
com os portos e as edificações militares, preocupações condizentes com
as responsabilidades do seu cargo oficial.
Não
conhecemos numerosas obras desta fase. Citaremos Vista de Itamaracá,
Vista de Antonio Vaz e as quatro pinturas que Maurício de Nassau
ofereceu ao poderoso Rei Luis XIV da França, que hoje constam do acervo
do Museu do Louvre, em Paris: Rio São Francisco e o Forte Mauritius;
Carro de Bois; Forte dos Reis Magos; Paisagem das Cercanias de Porto
Calvo.
Nossa
atenção volta-se para detalhes curiosos: Post utilizou a paleta de
cores holandesa para representar as nossas cenas tropicais, mostrando um
desenho sóbrio e simplificado, mantendo a luminosidade da atmosfera
local. Enfim, foi o primeiro pintor que no Brasil registrou
peculiaridades da nossa paisagem. Observando suas telas, constatamos uma
rigidez um tanto geométrica, mas suavizada pelas saliências e detalhes
que despertaram sua curiosidade. Os trabalhos aqui realizados até 1644
apresentam uma espontaneidade que depois se perdeu na sua pintura,
quando executou paisagens “brasileiras” já longe do local de origem. No
Brasil, Post foi um artista que soube transpor sabiamente as regras de
seus mestres europeus. Tinha diante dos olhos as vistas espetaculares e
originais do nosso país, uma natureza desconhecida que lhe oferecia
desafios diferentes dos modelos da sua terra. As pinturas que aqui
executou seguiram fiel e tecnicamente as surpresas de um olhar
artístico, sensível e preciso, impregnado de suave e equilibrado
lirismo.
Tendo voltado à Europa, Post continuou a pintar paisagens brasileiras, usando modelos aqui desenhados.
Os preços modestos que essas obras alcançaram na época, permitem-nos
afirmar que seus compradores não as consideravam obras primas, porém
manteve-se seu lugar de destaque entre os pintores do século 17. Os seus
quadros deste período conservam os aspectos típicos e exóticos das
obras anteriores, mas agora complementados com pormenores de fauna e
flora desproporcionalmente ampliadas - e colocados em primeiro plano, o
que evidencia uma preocupação comercial. A natureza aparece mais
frondosa, o sertão ficando dissociado, mais longe do olhar do
observador, e as construções ganham assim espaço para aparecer. Neste
exotismo abundante, o autor não hesitou em acumular aspectos nem sempre
coerentes. Para corresponder tecnicamente a esta fartura, a pintura
tornou-se cada vez mais nítida, exagerando o preciosismo dos traços e a
paisagem foi envolvida em uma atmosfera mais límpida.
São
usados recursos técnicos, como a luz nas fachadas, iluminando-se os
planos mais distantes e obscurecendo-se os mais próximos. Acentua-se o
contraste entre as roupas brancas e a cor da pele dos negros. Mas,
evidentemente, o frescor da emoção instantânea do quadro pintado ao vivo
é mais rico que os recursos e requintes artificiais e o exagero de
detalhamento que caracterizam esta fase de Post.
Entretanto
cabe reconhecer que, em sua passagem pelo Brasil, ele criou um espaço
novo e original na pintura brasileira, cabendo-lhe um grande mérito em
ter documentado a paisagem nordestina do seu tempo. Críticos assinalam a
sua estadia por aqui como responsável pela parte mais original de sua
produção. Fora das obras pintadas no Recife, sua criatividade e
originalidade anuviam-se, mas seja qual for a opinião das análises, o
fato é que, nas últimas décadas do século 20, o preço internacional das
obras de Frans Post alcançou valores expressivos nos leilões europeus e
norte-americanos.
Sua
produção foi muito reduzida - acredita-se que menos de 300 obras - e no
Brasil certamente se contam poucas dezenas e, em muito menor número,
aquelas pintadas em solo nacional.
O Príncipe
de Nassau encomendou a redação de uma obra que documentaria a sua
administração no período pernambucano. Assim, em 1647 foi publicado em
Amsterdã o livro de Caspar van Baerle: Casparis Barlaei Rerum per
Octennium in Brasília, importante obra documental, hoje raríssima.
Inclui cinqüenta e cinco gravuras de mapas e plantas, cenas da frota
holandesa, vistas do litoral e paisagens, a maioria assinada por Frans
Post. O British Museum de Londres conserva uma coleção de desenhos que
serviram de base a parte do conjunto das gravuras.
ALBERT ECKHOUT (1610-65 ?)
Outro
artista da comitiva e que para nós, afortunadamente, se apaixonou pelas
gentes, a fauna e a flora do país, foi Albert Eckhout. Em 1636
participou da viagem de Nassau e permaneceu em Pernambuco até 1644,
entretanto tendo visitado também a Bahia (1640) e o Chile (1642).
Sua
comoção perante a opulência da natureza é evidente, o que se revela
especialmente em seus tipos humanos e suas naturezas-mortas. Em 1654 o
Conde de Nassau enviou para o Rei da Dinamarca, Frederico III, uma
coleção de pinturas de Eckhout, da qual uma parte está no Museu de
Copenhague. Além disto, baseando-se em apontamentos feitos no Brasil, já
após ter regressado à Europa, o artista executou dezenas de painéis com
espécies de aves brasileiras, devidamente identificadas, obras que
permanecem no Castelo de Höfloessnitz, perto da cidade alemã Dresden.
Infelizmente
o resto de sua produção perdeu-se. Se lembrarmos quantos conflitos
armados eclodiram e se prolongaram naquelas regiões européias, poderemos
imaginar que grande parte da obra deste artista ficou enterrada nos
escombros dos bombardeios. Eckhout ficou esquecido e quase nem foi
citado nos antigos registros de pintores (o Dicionário Benezit lhe
concede apenas três vagas linhas...)
Somente
no século 20 sua obra seria realmente avaliada e apreciada, quando se
percebeu, finalmente, o valor artístico e original dos seus trabalhos,
graças a pesquisadores como Argeu Guimarães. Críticos encontraram nele a
influência de renascentistas italianos e de antigos mestres da pintura
holandesa de gênero.
O
realismo, o detalhamento naturalista e a precisão objetiva de suas
pinturas levaram alguns estudiosos a considerá-las antes como documentos
científicos. Foram levados a isso também porque Eckhout representou
suas figuras estáticas, em meio a cenários intencionalmente ricos em
detalhes de plantas, frutos e animais - sua obra seria apenas
informativa, mas sem emoção.
Análises
mais recentes passaram a perceber toda a sensibilidade contida em suas
naturezas-mortas que, além de mostrar um lindo visual, parecem
transmitir uma emoção tão viva que sugere o tato, e até mesmo o perfume e
o gosto das frutas tropicais. É um apelo ao prazer do alimento e à
fecundidade da terra, uma ode à vida, liberada de qualquer sentido
religioso, inserida nos cânones das naturezas-mortas holandesas do
século 17. São obras para deleite dos sentidos, que exibem um
virtuosismo renascentista, aliado a habilidosa concepção. Surge nelas o
jogo entre a aparência e a realidade, para despertar no observador os
prazeres da celebração da vida e da alegria de viver. Sente-se a
influência italianizante ligada à observação da natureza, que também
estava presente nos primeiros pintores de flores holandeses. Eckhout
dominou com requinte e maestria a arte da sugestão e da ilusão,
utilizando um amplo leque de recursos técnicos, divertindo-se com a luz,
a cor, a perspectiva e o plano, para levar-nos à satisfação com tanta
fartura. Imagine-se o fascínio que sentia um habitante da Europa faminta
daquele tempo perante uma natureza pródiga como a nossa, isto sem
esquecer que para os europeus do século 17 frutas eram iguarias de luxo.
Também
se interessou pelos indígenas, em especial os tapuias e os tupis, que
representou em cenas de guerra, de “domesticação” e de antropofagia (a
classificação “tapuia” foi empregada inicialmente em sentido amplo,
abrangendo todas as tribos que não pertenciam aos tupis).
A
colonização levou o índio a perder progressivamente sua identidade, que
foi sendo substituída pelos traços de um ser colonizado. Assim, o tupi
de Eckhout já apresenta elementos próprios à inserção colonial. Quanto
ao tapuia, este sim, conserva seus atributos de guerreiro e canibal. Não
esqueçamos que o interior nordestino, habitado pelas tribos tapuias,
ainda permanecia muito isolado da colonização e hostil.
O
artista mostra-nos um índio tupi domesticado, integrado ao sistema
econômico da colônia - e o seu oposto, o guerreiro tapuia. O mais
interessante destas pinturas são, provavelmente, as feições e os
atributos corporais. Os retratos são executados com realismo e
fidelidade, excluindo qualquer tipo de folclorização ou caricatura. O
imaginário europeu, que abordamos em capítulo anterior, era ávido de
belos corpos e rostos formosos. Eckhout, porém, retrata figuras comuns
que encontra em sua vida diária - nem as feições são sempre lindas, nem
os corpos sempre torneados - embora seja também verdade que por vezes se
rende ao artificialismo do décor, como quando mostra ferozes animais,
símbolos de um tropicalismo selvagem e agressivo, numa cena de natureza
primitiva “construída” para lá colocar seus indígenas.
Podemos
recordar que por vezes os não-tupis juntaram-se aos holandeses para
combater os portugueses e os brasileiros e que os laços entre estes
tapuias e os flamengos se haviam estreitado devido a interesses em
comum. Entretanto, a variedade das imagens vai muito além da dicotomia
entre selvagens e pacificados.
Eckhout
concebeu a índia como um membro ativo na antropofagia, que leva para a
aldeia partes do corpo dos guerreiros vencidos. Outras representações de
artistas da época, que também estiveram no Nordeste, como Georg
Marcgraf ou Zacharias Wagener, seguiram esta mesma temática da índia
canibal e do guerreiro recém-devorado. Outras índias de Eckhout são
representadas carregando cestas, cabaças, sugerindo o nomadismo dos
tapuias e mostrando o papel da mulher encarregada do transporte de
materiais.
Os
casais pintados pelo artista na verdade sintetizam comportamentos
indígenas variados. Além disto, com as freqüentes representações de
pessoas negras, ele ampliou seu repertório étnico. Não há aqui lugar
para as mistificações artificiosas dos grandes pintores europeus seus
contemporâneos, como Rembrandt ou Velásquez. Eckhout impõe o registro
objetivo do que viu, relegando para segundo plano fantasias decorativas.
A
presença do negro está intimamente ligada ao engenho de açúcar. Nestes
temas, o legado do pintor inclui oito pinturas de avantajadas dimensões,
onde figuram quatro casais de “tipos étnicos” das então chamadas Índias
Ocidentais. Ao lado de índios e negros há também mamelucos e mulatos
sendo, todavia, excluídos os portugueses e outros tipos europeus.
Esta
documentação representa um panorama antropológico inédito, a respeito
da mestiçagem das raças e da hibridização das culturas. Certamente,
entre os artistas da corte da Nassau, foi ele quem compôs o mais amplo
repertório de gêneros, combinando naturezas-mortas, retratos e
paisagens, que ilustram de maneira prática o quadro econômico e social
do território sob o domínio da Companhia Holandesa das Índias
Ocidentais.
Os retratos contêm diversas referências alegóricas aos Quatro Continentes - geralmente representados como quatro casais. Por outro lado, a paisagem de fundo destas oito pinturas revela a fauna e a flora. É atribuído um significado, digamos econômico ou político, concretizado em emblemas simbólicos localizados nos cantos dos quadros. Como exemplos poderíamos citar uma presa de marfim de elefante aos pés do negro africano, a mandioca no retrato do índio tupi ou a cana de açúcar ao lado do mulato.
Os retratos contêm diversas referências alegóricas aos Quatro Continentes - geralmente representados como quatro casais. Por outro lado, a paisagem de fundo destas oito pinturas revela a fauna e a flora. É atribuído um significado, digamos econômico ou político, concretizado em emblemas simbólicos localizados nos cantos dos quadros. Como exemplos poderíamos citar uma presa de marfim de elefante aos pés do negro africano, a mandioca no retrato do índio tupi ou a cana de açúcar ao lado do mulato.
Trata-se
de uma visão científica, motivada pela curiosidade etnográfica. As
figuras femininas são sempre representadas no desempenho de suas funções
domésticas. Em seu trabalho Negra com criança são exibidos frutos
variados, que reportam às idéias de colheita, transporte, comida. A
criança é um símbolo que bem representa a função reprodutora da fêmea. O
quadro, rico em alusões visuais, mostra também um cachimbo holandês de
cerâmica branca e um chapéu asiático, que traduz uma alegoria aos Quatro
Continentes.
Em
Guerreiro negro, o personagem é um belo combatente fortemente armado,
com sua vistosa espada e lança. Não é a figura de um escravo, mas de um
nobre - aliás, escravos nem podiam carregar armas.
Em
outro quadro, Mulato, o homem está armado com um arcabuz e uma adaga.
Os mulatos, homens libertos por causa da sua porção de “sangue cristão”
europeu, podiam portar armas se fosse para lutar ao lado dos holandeses.
Vale assinalar neste quadro a presença da cana de açúcar e um mamoeiro,
relações simbólicas com o mulato (no início do século 16 os portugueses
haviam trazido a cana de açúcar da Ilha da Madeira, para onde a tinham
levado no princípio do século anterior). Por outro lado, a complexa
divisão de sexualidade do mamoeiro faz alusão à mistura racial.
Nestes retratos africanos o mar ocupa o lugar do horizonte, sugerindo o caminho que liga o Brasil à África.
Por: Raul Mendes Silva
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