segunda-feira, 22 de julho de 2013

Zygmunt Bauman

A modernidade da fusão social pela
solidificação individual:

Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman

Propondo como tema uma nova visão sobre a modernidade, voltada à fluidez das relações, no individualismo pregando o dinamismo, Zygmunt Bauman norteia seu “Modernidade líquida”, expressão síntese desta nova idéia.

          Inicia seu estudo discutindo a idéia de liquidez e fluidez. Por se tratar de um conceito voltado à mudança de formas para acomodação nos mais diversos encaixes, é inevitável a analogia à nossa atual e imediatista sociedade pois “assim, para eles [nossos conviventes], o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas ‘por um momento [grifo do autor]” (BAUMAN, 2001, p. 8). Desta forma, Bauman afirma que sólido é aquilo que para outros pensadores, como Weber e Marx, soa como algo retrógrado, ultrapassado, rígido, duradouro e previsível em suas formas e possibilidades, em muitos de seus aspectos (econômico, social, político etc.).
Zygmunt Bauman

Frente a isso, um outro termo usado pelo autor – derretimento – será empregado para designar a desintegração desse discurso sólido e fixo já em vias de enferrujamento dos compostos institucionalizados. Agora, nessa nova modernidade maleável, para Bauman o que vigora é a ascensão de um objetivo individual, em declínio dessas instituições, analogamente, sólidas e tradicionalistas. Essa mudança de parâmetros teria provocado, então, uma quebra dos moldes, as molduras de classe, etnia, linhagem etc., alguns dos já históricos pontos de orientação. Esses padrões já não estigmatizam o indivíduo, pelo contrário, seria do indivíduo que partiria, se chocando com os multifacetados novos padrões, cada vez mais micros, de convívio social e, por isso, com sucinta fluidez, normas que vão e estão se maleando em curtíssimo espaço de tempo.

A voraz diminuição dos espaços em locomoção física ou sensorial é um dos mais claros exemplos do derretimento desses padrões que eram vigentes. Atualmente, computadores e telefonia, ambos móveis e portáteis, levam consigo a ordem e agenda de qualquer lugar, em ações que podem criar reações transformadoras (caóticas) de qualquer para diversas posições do globo.

Essa mutabilidade de relações também promove o desprendimento, no sentido afetivo e de posse eterna dos bens lucrativos, bastando dizer que hoje devem sim ser de favorável retorno financeiro, mas já tendo noção que são altamente perecíveis e, decorrente a isto, devem ser rapidamente rotacionados.

Nessa aparente e sedutora emancipação, Bauman questiona a liberdade como real objetivo almejado, cravando o leitor com uma revelação formulada como indagação: “A libertação é uma bênção ou uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou uma bênção temida como maldição?” (BAUMAN, 2001, p. 26). Embasado por seu estudo, ele mesmo responde: “A verdade que torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem não ouvir” (BAUMAN, 2001, p. 26).

Desse modo, as idéias tradicionais de revolução e mudança nesta sociedade já estão póstumas porque os reacionários já não estão mais conosco, o mundo fluído não permite a “tradicionalidade ideológica” com suas táticas pré-determinadas e solidificadas. Mas esse não é um comportamento escancarado, na verdade, o maior problema da atual sociedade está justamente nesta ausência de se auto-questionar e se posicionar, ela prefere não tentar se reconhecer e sente-se absolvida a cada justificativa em seu senso comum e/ou acadêmico, o que causa certa intransigência a novas questões, principalmente se estas tiverem força suficiente para por em juízo o modelo vigente. Importante lembrar que não se trata de um embrutecimento, muito pelo contrário, esta sociedade é tão pitoresca quanto era a caracterização da sociedade do início do século XX, todavia, é evolutiva a seu modo, é de forma voraz e a passos cada vez mais largos, velozes, opressivos e normalmente destrutivos para a desmontagem, remodelagem e reconhecimento de crenças.

E o individualismo é papel preponderante aqui, pois se trata da empregabilidade de funções mutáveis, fluídas no sentido de liberdade de roupagens, diferente do conceito libertário do início do século passado. Esses indivíduos, controversamente, não têm controle sobre seus destinos e decisões e, o que é pior, nem podem culpar um terceiro pelo seu grilhão imaginativo, pois a pseudo-liberdade é uma ilusão criada como possibilidade de fuga, da incapacidade deste, que não ousa extrapolar os paradigmas. Assim, até o espaço público têm-se tornado lugar de problemas privados, socialmente trata-se de uma involução ímpar pelo fato de que:

“O indivíduo de jure [falso] não pode se tornar indivíduo de facto sem antes tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a autonomia da sociedade requer uma auto-constituição deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros” (BAUMAN, 2001, p. 50).

Já que era (e assim deveria ser, segundo o autor) a sociedade como elo entre os dois lados deste abismo da individualidade (a real e a almejada), como na Antiga Atenas com suas ágoras, não acontece atualmente porque os ensejos mesmo que parecidos são almejados em um meio incongruente, trocando palavras, o que se passa atualmente é uma condição inédita: a esfera pública, outrora laica em espaço e impositiva em dogmas, hoje é a remota esperança contra a autonomia de jure. É através do tornar público que essa liberdade poderia ser de facto, ou seja, tal qual o sentido completo e genuíno do termo, o que é hoje, segundo Bauman, de pouca probabilidade. A dimensão pública atualmente tem tentado se livrar do poder que havia já há muito tempo gerenciado, enquanto o privado se apossa e o desfigura não para extinguí-lo, mas para dar forma a seus interesses momentâneos e ininterruptos.


        Essa desordem (no sentido de não se saber o que vem a seguir) vitalícia de seus viventes se difere muito da bula fordista, onde o roteiro funcional era, via de regra, por toda a vida e estático. Novamente entra em cena o novo sentido de ordem, o da fluidez das águas correntes do capital e de seus nadadores funcionais, entretanto isso não significa uma evolução, pois não é a maioria que rege ou não se afoga nesse deslocamento, ainda mais quando o curso deste rio não é calmo nem pré-determinado.

Conta-nos que essa (falta de) consciência sobre a ininterrupção faz do sujeito um ser inacabado, seja ele socialmente visto como um derrotado ou bem-aventurado. Isto fica claro nas extintas figuras autoritárias rígidas de um capitalismo pesado que deu lugar a um número maior e, por isso, uma disputa mais acirrada pelo poder, onde os vencedores governam por tempos e espaços muito mais reduzidos que outrora. Atuam como conselheiros pelo que por eles é almejado, prometido, pregado e feito. Pela resolução de problemas cada vez mais pessoais e não pelas atitudes tomadas pelo bem (ou mal) do grande grupo sem rosto que é a simbolização da coletividade.

E aí protagoniza o mais evidente e nocivo comportamento desta sociedade: o consumo. Propagou-se um comportamento geral de comprar, não apenas produtos e serviços, mas o ato de aquisição fica também evidenciado na busca e anexação de personas do indivíduo e as pessoas que com este se relacionam, seja o empregado, empregador ou até mesmo o par amoroso. Logo, esta sociedade é vista e se porta como consumidora, e não mais produtora, não existindo um limite para a busca da faustosidade momentânea, desde que fuja (sendo inexoravelmente capturada) da regra da padronização visual e comportamental, para que os itens que simbolizam a ostentação agora em pouco, pouquíssimo tempo, se tornem itens de necessidade as próprias pessoas que, cada vez mais, deixam de adquirir bens para se entregar, viver para eles.

As relações interpessoais, segundo Bauman, suspiram um saudosismo descaracterizado do pré-conceito do termo, ele não se dá pelas inter-relações, mas por uma busca da eficácia de mútua vigilância, de saber quem é você no limitado universo de sua vizinhança, ressalta-se, homogênea. Criando-se uma situação dúbia, pois ao mesmo tempo em que se investe em proteção, adicionando formas de expurgar esses novos vilões, há o enclaustramento, cada vez mais reducionista, de seus investidores em uma realidade-cela.

Acabam-se os contatos? Você deve estar se perguntando, Bauman afirma que estas relações foram removidas das situações de casualidade e desnutridas de qualquer interação afetiva, já que nunca foi tão fácil se relacionar com outrem sem ter o mínimo de contato com estes, com discursos preestabelecidos (de aquisição e não de interação) e em lugares já determinados, na verdade, denominados pelo autor de “não-lugares”. Os “não-lugares” são, normalmente, espaços que se presta a exercitar a sua indiferença com o ambiente que o cerca. A não sociabilidade e civilidade desses espaços não permitem estada por estendido limite de tempo e nem sensação de se estar ali. Transportes públicos, quartos de hotel, fast-foods, etc. se apresentam como lugares domiciliares, mas sem as liberdades do lar. Assim como lugares que não interessam, que não valem menção de memória, como a miserabilidade de favelas ou a morbidez de cemitérios, estes espaços não recebem atenção destas pessoas, mesmo que elas, algumas diariamente, façam tal trajeto, até porque:

“O vazio do lugar está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas de quem anda. Vazios são os lugares em que não se entra e onde se sentiria perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos” (BAUMAN, 2001, p. 122)

As regras são claras: conversa-se, negocia-se, cumprimenta-se cordialmente, mas sempre evitando maior contato, como dogmatiza essa modernidade leve e solta que assim desfigura a, então, relação congruente da idéia de espaço-tempo de outrora, como no tempo em que a velocidade dependia do esforço humano ou animal, hoje as extensões fisiológicas, que abocanham espaços cada vez maiores em cada vez menos tempo, estendem distâncias, encurtam o tempo, expandem a expectativa de vida, mas tornam todo ato desse tempo de locomoção e vivência numa ação instantânea, imediatista, onde a exaustão e desaparecimento do interesse também vem neste bojo a reboque.

Toda produção e trabalho, cada vez mais leves, se tornam atitudes presenteistas. Até a antiga e positivista fé no progresso é agora mais evidente pela crença e apego ao presente para a formação de um futuro promissor ou a ausência de um messias a ditar explicitamente seu conjunto de mandamentos. Essa instabilidade, onde o abismo de três vertes: entre o ideal e o real dos planos de cada um e do senso coletivo, nunca foi tão profundo, pois se o trabalho aqui surge como principal esperança do controle do presente para, conseguinte, tentativa de controle do futuro, da manutenção da ordem de controle deste por vir caótico, há aí a promoção, mesmo que involuntária, da exorcização da experiência e das decisões cometidas por outros sistemas, segundo seus indiferentes fantasmas antigos que devem ser sepultados. Mas estas pessoas líquidas ignoram os novos espectros e seus inéditos assombros (da instabilidade em curto prazo, do mal-estar social, da impessoalidade atual, etc.) que, não desses túmulos, mas surgem na escuridão das próprias sombras destes críticos-coveiros das experiências passadas.

E, diferente da visão em pedaços, peças desconexas, remendos provenientes da produção mecanicista de montagem, da política estatal do bem-estar como podador das anomalias e apostas de longo prazo, impera na modernidade líquida o recurso da subjetividade, das idéias ocupando o lugar das coisas materiais, afinal, não há nada mais leve e versátil que uma idéia a tiracolo. E neste contexto os canais de comunicação se intensificam e ganham músculos, o “noticiário” se apresenta como a transmissão da realidade fiel, sem partidarismo ou distorção, haja vista que o tempo, bem maior, é escasso e esse enxugue se torna supra-necessário além do fato de que uma vez figurado como prólogo da história a ser contada, o presente é a promessa de um futuro promissor, por isso é encarado como deficitário e incompleto.

Deficitário e, ao mesmo tempo, dinâmico e presente, precisa sê-lo para atingir a plenitude futura, esse ritmo não permite o exercício, por exemplo, de reflexão das ações individuais ou coletivas, não há tempo a ser “perdido”:

“Os mecânicos de automóveis de hoje não são treinados para consertar motores quebrados ou danificados, mas apenas para retirar e jogar fora as peças usadas ou defeituosas e substituí-las por outras novas e seladas, diretamente da prateleira. Eles não têm a menor idéia da estrutura interna das ‘peças sobressalentes’ (uma expressão que diz tudo), do modo misterioso como funcionam; não consideram esse entendimento e habilidade que o acompanha como sua responsabilidade ou como parte de seu campo de competência. Como na oficina mecânica, assim também na vida em geral: cada ‘peça’ é ‘sobressalente’ e substituível, e assim deve ser. Por que gastar tempo com consertos que consomem trabalho, se não é preciso mais que alguns momentos para jogar fora a peça danificada e colocar outra em seu lugar? (BAUMAN, 2001, p. 186)

Desse modo, a durabilidade é precária ou inexistente nessa realidade. Outra marca desse movimento (contínuo) é a extrema falta de confiança, o medo da perda brusca do que já se conseguiu e/ou do que se está galgando. Essa desconfiança não é pecado, pelo Evangelho comunitário (termo de Bauman) dessa sociedade o dogma de convivência enaltece um discurso/sentimento patriota e suas “virtudes”, de benevolência e tolerância para com o próximo (a bem da verdade, visto como competidor) e sua carga cultural multifacetada enquanto repudia o sentimento nacionalista e sua fama de agressão e ódio aos outros, os mesmo competidores vistos como responsáveis pelos infortúnios não só da nação, da coletividade, mas como tramitáveis obstáculos de objetivos pessoais.

É muito claro ao autor que esse discurso patriótico é tão cheio quanto um balão de ar já que, segundo sua interpretação, dada a necessidade dessas pessoas escolherem um posicionamento entre a liberdade (no sentido genuíno do termo) e a segurança, a sociedade líquida optou por unanimidade pela segurança. Unanimidade porque a uniformidade já a muito tempo não está mais nos produtos ou serviços, muito menos nos métodos de produção ou divulgação, essa padronização que Ford implantou nas peças, as colocando em linha de produção já se proliferou para o comportamento humano (?) dessa sociedade, como um chip implantado em cada um desses que completam, mas não formam essa sociedade fluida, em seus trejeitos vivenciais, onde todos miram num objetivo comum sem nenhum ineditismo, como em um espetáculo que infinitamente (o infinito do agora) se mantém em cartaz.

E nessa linha de raciocínio, meio que trágica Zygmunt Bauman conclui sua obra dando a essa sociedade simbiótica um tom circense, posta ao público e cheia de vaidades, onde esses “atores sem papel” precisam de circunstâncias momentâneas de encenação para que não corram o risco de uma possível união afetiva. Não criam nada mais que a excitação do desempenho ou que se prolongue mais do que a finitude do cheiro das coisas novas, dos produtos consumidos, relacionando-se de forma incipiente com suas aquisições de plástico, metal, high-tech ou mesmo as de carne, osso e sangue que trazem uma alma como acessório de fábrica para serem (apenas) degustados em situações carnavalescas, na festa presenteista da carnalidade:

“’Comunidades de carnaval’ parece ser outro nome adequado para as comunidades em discussão. Tais comunidades, afinal, dão um alívio temporário às agonias de solitárias lutas cotidianas, à cansativa condição de indivíduos de jure persuadidos ou forçados a puxar a si mesmos pelos próprios cabelos. Comunidades explosivas são eventos que quebram a monotonia da solidão, cotidiana, e como todos os eventos de carnaval liberam a pressão e permitem que os foliões suportem melhor a rotina que devem retornar no momento em que a brincadeira terminar. E, como a filosofia, nas melancólicas meditações de Wittgenstein, ‘deixam tudo como estava’ (sem contar os feridos e as cicatrizes morais dos que escaparam ao destino de ‘baixas marginais’)” (BAUMAN, 2001, p. 229)

 


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