solidificação individual:
Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman
Propondo como tema uma nova visão
sobre a modernidade, voltada à fluidez das relações, no individualismo
pregando
o dinamismo, Zygmunt Bauman norteia seu “Modernidade líquida”,
expressão
síntese desta nova idéia.
Inicia seu estudo discutindo a idéia de liquidez e fluidez. Por se tratar de um conceito voltado à mudança de formas para acomodação nos mais diversos encaixes, é inevitável a analogia à nossa atual e imediatista sociedade pois “assim, para eles [nossos conviventes], o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas ‘por um momento’ [grifo do autor]” (BAUMAN, 2001, p. 8). Desta forma, Bauman afirma que sólido é aquilo que para outros pensadores, como Weber e Marx, soa como algo retrógrado, ultrapassado, rígido, duradouro e previsível em suas formas e possibilidades, em muitos de seus aspectos (econômico, social, político etc.). | Zygmunt Bauman |
Frente a isso, um outro
termo usado pelo autor –
derretimento – será empregado para designar a desintegração desse
discurso
sólido e fixo já em vias de enferrujamento dos compostos
institucionalizados.
Agora, nessa nova modernidade maleável, para Bauman o que vigora é a
ascensão
de um objetivo individual, em declínio dessas instituições,
analogamente,
sólidas e tradicionalistas. Essa mudança de parâmetros teria provocado,
então,
uma quebra dos moldes, as molduras de classe, etnia, linhagem etc.,
alguns dos
já históricos pontos de orientação. Esses padrões já não estigmatizam o
indivíduo, pelo contrário, seria do indivíduo que partiria, se chocando
com os
multifacetados novos padrões, cada vez mais micros, de convívio social
e, por
isso, com sucinta fluidez, normas que vão e estão se maleando em
curtíssimo
espaço de tempo.
A voraz diminuição dos
espaços em locomoção física ou
sensorial é um dos mais claros exemplos do derretimento desses padrões
que eram
vigentes. Atualmente, computadores e telefonia, ambos móveis e
portáteis, levam
consigo a ordem e agenda de qualquer lugar, em ações que podem criar
reações
transformadoras (caóticas) de qualquer para diversas posições do globo.
Essa mutabilidade de
relações também promove o
desprendimento, no sentido afetivo e de posse eterna dos bens
lucrativos,
bastando dizer que hoje devem sim ser de favorável retorno financeiro,
mas já
tendo noção que são altamente perecíveis e, decorrente a isto, devem
ser
rapidamente rotacionados.
Nessa aparente e sedutora
emancipação, Bauman questiona a
liberdade como real objetivo almejado, cravando o leitor com uma
revelação
formulada como indagação: “A libertação é
uma bênção ou uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou uma
bênção
temida como maldição?” (BAUMAN, 2001, p. 26). Embasado por seu
estudo, ele
mesmo responde: “A verdade que torna os
homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem
não
ouvir” (BAUMAN, 2001, p. 26).
Desse modo, as idéias
tradicionais de revolução e mudança
nesta sociedade já estão póstumas porque os reacionários já não estão
mais
conosco, o mundo fluído não permite a “tradicionalidade ideológica” com
suas
táticas pré-determinadas e solidificadas. Mas esse não é um
comportamento
escancarado, na verdade, o maior problema da atual sociedade está
justamente
nesta ausência de se auto-questionar e se posicionar, ela prefere não
tentar se
reconhecer e sente-se absolvida a cada justificativa em seu senso comum
e/ou
acadêmico, o que causa certa intransigência a novas questões,
principalmente se
estas tiverem força suficiente para por em juízo o modelo vigente.
Importante
lembrar que não se trata de um embrutecimento, muito pelo contrário,
esta
sociedade é tão pitoresca quanto era a caracterização da sociedade do
início do
século XX, todavia, é evolutiva a seu modo, é de forma voraz e a passos
cada vez
mais largos, velozes, opressivos e normalmente destrutivos para a
desmontagem,
remodelagem e reconhecimento de crenças.
E o individualismo é papel
preponderante aqui, pois se trata da empregabilidade de funções
mutáveis,
fluídas no sentido de liberdade de roupagens, diferente do conceito
libertário
do início do século passado. Esses indivíduos, controversamente, não
têm
controle sobre seus destinos e decisões e, o que é pior, nem podem
culpar um
terceiro pelo seu grilhão imaginativo, pois a pseudo-liberdade é uma
ilusão
criada como possibilidade de fuga, da incapacidade deste, que não ousa
extrapolar os paradigmas. Assim, até o espaço público têm-se tornado
lugar de
problemas privados, socialmente trata-se de uma involução ímpar pelo
fato de
que:
“O indivíduo de jure
[falso] não
pode se tornar indivíduo de facto sem antes tornar-se cidadão. Não há
indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a autonomia da
sociedade
requer uma auto-constituição deliberada e perpétua, algo que só pode
ser uma
realização compartilhada de seus membros” (BAUMAN, 2001, p. 50).
Já que era (e assim
deveria ser, segundo o autor) a
sociedade como elo entre os dois lados deste abismo da individualidade
(a real
e a almejada), como na Antiga Atenas com suas ágoras, não acontece
atualmente
porque os ensejos mesmo que parecidos são almejados em um meio
incongruente,
trocando palavras, o que se passa atualmente é uma condição inédita: a
esfera
pública, outrora laica em espaço e impositiva em dogmas, hoje é a
remota
esperança contra a autonomia de jure.
É através do tornar público que essa liberdade poderia ser de
facto, ou seja, tal qual o sentido completo e genuíno do termo,
o que é hoje, segundo Bauman, de pouca probabilidade. A dimensão
pública
atualmente tem tentado se livrar do poder que havia já há muito tempo
gerenciado, enquanto o privado se apossa e o desfigura não para
extinguí-lo,
mas para dar forma a seus interesses momentâneos e ininterruptos.
Essa desordem (no sentido de não se saber o que vem a seguir) vitalícia de seus viventes se difere muito da bula fordista, onde o roteiro funcional era, via de regra, por toda a vida e estático. Novamente entra em cena o novo sentido de ordem, o da fluidez das águas correntes do capital e de seus nadadores funcionais, entretanto isso não significa uma evolução, pois não é a maioria que rege ou não se afoga nesse deslocamento, ainda mais quando o curso deste rio não é calmo nem pré-determinado. |
Conta-nos que essa (falta de)
consciência sobre a ininterrupção faz do sujeito um ser inacabado, seja
ele
socialmente visto como um derrotado ou bem-aventurado. Isto fica claro
nas
extintas figuras autoritárias rígidas de um capitalismo pesado que deu
lugar a
um número maior e, por isso, uma disputa mais acirrada pelo poder, onde
os
vencedores governam por tempos e espaços muito mais reduzidos que
outrora.
Atuam como conselheiros pelo que por eles é almejado, prometido,
pregado e
feito. Pela resolução de problemas cada vez mais pessoais e não pelas
atitudes
tomadas pelo bem (ou mal) do grande grupo sem rosto que é a
simbolização da
coletividade.
E aí protagoniza o mais evidente
e nocivo comportamento desta sociedade: o consumo. Propagou-se um
comportamento
geral de comprar, não apenas produtos e serviços, mas o ato de
aquisição fica
também evidenciado na busca e anexação de personas do indivíduo e as
pessoas
que com este se relacionam, seja o empregado, empregador ou até mesmo o
par
amoroso. Logo, esta sociedade é vista e se porta como consumidora, e
não mais
produtora, não existindo um limite para a busca da faustosidade
momentânea,
desde que fuja (sendo inexoravelmente capturada) da regra da
padronização
visual e comportamental, para que os itens que simbolizam a ostentação
agora em
pouco, pouquíssimo tempo, se tornem itens de necessidade as próprias
pessoas
que, cada vez mais, deixam de adquirir bens para se entregar, viver
para eles.
As relações interpessoais,
segundo Bauman, suspiram um saudosismo descaracterizado do pré-conceito
do
termo, ele não se dá pelas inter-relações, mas por uma busca da
eficácia de
mútua vigilância, de saber quem é você no limitado universo de sua
vizinhança,
ressalta-se, homogênea. Criando-se uma situação dúbia, pois ao mesmo
tempo em
que se investe em proteção, adicionando formas de expurgar esses novos
vilões,
há o enclaustramento, cada vez mais reducionista, de seus investidores
em uma
realidade-cela.
Acabam-se os contatos? Você deve
estar se perguntando, Bauman afirma que estas relações foram removidas
das
situações de casualidade e desnutridas de qualquer interação afetiva,
já que
nunca foi tão fácil se relacionar com outrem sem ter o mínimo de
contato com
estes, com discursos preestabelecidos (de aquisição e não de interação)
e em
lugares já determinados, na verdade, denominados pelo autor de
“não-lugares”.
Os “não-lugares” são, normalmente, espaços que se presta a exercitar a
sua
indiferença com o ambiente que o cerca. A não sociabilidade e
civilidade desses
espaços não permitem estada por estendido limite de tempo e nem
sensação de se
estar ali. Transportes públicos, quartos de hotel, fast-foods,
etc. se apresentam como lugares domiciliares, mas sem
as liberdades do lar. Assim como lugares que não interessam, que não
valem
menção de memória, como a miserabilidade de favelas ou a morbidez de
cemitérios, estes espaços não recebem atenção destas pessoas, mesmo que
elas,
algumas diariamente, façam tal trajeto, até porque:
“O vazio do lugar está no
olho de quem vê e nas pernas ou
rodas de quem anda. Vazios são os lugares em que não se entra e onde se
sentiria perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela
presença de humanos” (BAUMAN, 2001, p. 122)
As regras são claras:
conversa-se, negocia-se, cumprimenta-se cordialmente, mas sempre
evitando maior
contato, como dogmatiza essa modernidade leve e solta que assim
desfigura a,
então, relação congruente da idéia de espaço-tempo de outrora, como no
tempo em
que a velocidade dependia do esforço humano ou animal, hoje as
extensões
fisiológicas, que abocanham espaços cada vez maiores em cada vez menos
tempo,
estendem distâncias, encurtam o tempo, expandem a expectativa de vida,
mas
tornam todo ato desse tempo de locomoção e vivência numa ação
instantânea,
imediatista, onde a exaustão e desaparecimento do interesse também vem
neste
bojo a reboque.
Toda produção e trabalho, cada
vez mais leves, se tornam atitudes presenteistas. Até a antiga e
positivista fé
no progresso é agora mais evidente pela crença e apego ao presente para
a
formação de um futuro promissor ou a ausência de um messias a ditar
explicitamente seu conjunto de mandamentos. Essa instabilidade, onde o
abismo
de três vertes: entre o ideal e o real dos planos de cada um e do senso
coletivo, nunca foi tão profundo, pois se o trabalho aqui surge como
principal
esperança do controle do presente para, conseguinte, tentativa de
controle do
futuro, da manutenção da ordem de controle deste por vir caótico, há aí
a
promoção, mesmo que involuntária, da exorcização da experiência e das
decisões
cometidas por outros sistemas, segundo seus indiferentes fantasmas
antigos que
devem ser sepultados. Mas estas pessoas líquidas ignoram os novos
espectros e
seus inéditos assombros (da instabilidade em curto prazo, do mal-estar
social,
da impessoalidade atual, etc.) que, não desses túmulos, mas surgem na
escuridão
das próprias sombras destes críticos-coveiros das experiências passadas.
E, diferente da visão em pedaços,
peças desconexas, remendos provenientes da produção mecanicista de
montagem, da
política estatal do bem-estar como podador das anomalias e apostas de
longo
prazo, impera na modernidade líquida o recurso da subjetividade, das
idéias
ocupando o lugar das coisas materiais, afinal, não há nada mais leve e
versátil
que uma idéia a tiracolo. E neste contexto os canais de comunicação se
intensificam e ganham músculos, o “noticiário” se apresenta como a
transmissão
da realidade fiel, sem partidarismo ou distorção, haja vista que o
tempo, bem
maior, é escasso e esse enxugue se torna supra-necessário além do fato
de que
uma vez figurado como prólogo da história a ser contada, o presente é a
promessa de um futuro promissor, por isso é encarado como deficitário e
incompleto.
Deficitário e, ao mesmo tempo,
dinâmico e presente, precisa sê-lo para atingir a plenitude futura,
esse ritmo
não permite o exercício, por exemplo, de reflexão das ações individuais
ou
coletivas, não há tempo a ser “perdido”:
“Os mecânicos de
automóveis de hoje não são treinados para
consertar motores quebrados ou danificados, mas apenas para retirar e
jogar
fora as peças usadas ou defeituosas e substituí-las por outras novas e
seladas,
diretamente da prateleira. Eles não têm a menor idéia da estrutura
interna das
‘peças sobressalentes’ (uma expressão que diz tudo), do modo misterioso
como
funcionam; não consideram esse entendimento e habilidade que o
acompanha como
sua responsabilidade ou como parte de seu campo de competência. Como na
oficina
mecânica, assim também na vida em geral: cada ‘peça’ é ‘sobressalente’
e
substituível, e assim deve ser. Por que gastar tempo com consertos que
consomem
trabalho, se não é preciso mais que alguns momentos para jogar fora a
peça
danificada e colocar outra em seu lugar? (BAUMAN, 2001, p. 186)
Desse modo, a durabilidade é
precária ou inexistente nessa realidade. Outra marca desse movimento
(contínuo)
é a extrema falta de confiança, o medo da perda brusca do que já se
conseguiu
e/ou do que se está galgando. Essa desconfiança não é pecado, pelo
Evangelho
comunitário (termo de Bauman) dessa sociedade o dogma de convivência
enaltece
um discurso/sentimento patriota e suas “virtudes”, de benevolência e
tolerância
para com o próximo (a bem da verdade, visto como competidor) e sua
carga
cultural multifacetada enquanto repudia o sentimento nacionalista e sua
fama de
agressão e ódio aos outros, os mesmo competidores vistos como
responsáveis
pelos infortúnios não só da nação, da coletividade, mas como
tramitáveis
obstáculos de objetivos pessoais.
É muito claro ao autor que esse
discurso patriótico é tão cheio quanto um balão de ar já que, segundo
sua
interpretação, dada a necessidade dessas pessoas escolherem um
posicionamento
entre a liberdade (no sentido genuíno do termo) e a segurança, a
sociedade
líquida optou por unanimidade pela segurança. Unanimidade porque a
uniformidade
já a muito tempo não está mais nos produtos ou serviços, muito menos
nos
métodos de produção ou divulgação, essa padronização que Ford implantou
nas
peças, as colocando em linha de produção já se proliferou para o
comportamento
humano (?) dessa sociedade, como um chip implantado em cada um desses
que
completam, mas não formam essa sociedade fluida, em seus trejeitos
vivenciais,
onde todos miram num objetivo comum sem nenhum ineditismo, como em um
espetáculo que infinitamente (o infinito do agora) se mantém em cartaz.
E nessa linha de raciocínio, meio
que trágica Zygmunt Bauman conclui sua obra dando a essa sociedade
simbiótica
um tom circense, posta ao público e cheia de vaidades, onde esses
“atores sem
papel” precisam de circunstâncias momentâneas de encenação para que não
corram
o risco de uma possível união afetiva. Não criam nada mais que a
excitação do
desempenho ou que se prolongue mais do que a finitude do cheiro das
coisas
novas, dos produtos consumidos, relacionando-se de forma incipiente com
suas
aquisições de plástico, metal, high-tech
ou mesmo as de carne, osso e sangue que trazem uma alma como acessório
de
fábrica para serem (apenas) degustados em situações carnavalescas, na
festa
presenteista da carnalidade:
“’Comunidades de
carnaval’ parece ser outro nome adequado
para as comunidades em discussão. Tais comunidades, afinal, dão
um
alívio temporário às agonias de solitárias lutas cotidianas, à
cansativa
condição de indivíduos de jure persuadidos ou forçados a puxar a si
mesmos
pelos próprios cabelos. Comunidades explosivas são eventos que quebram
a monotonia
da solidão, cotidiana, e como todos os eventos de carnaval liberam a
pressão e
permitem que os foliões suportem melhor a rotina que devem retornar no
momento
em que a brincadeira terminar. E, como a filosofia, nas melancólicas
meditações
de Wittgenstein, ‘deixam tudo como estava’ (sem contar os feridos e as
cicatrizes morais dos que escaparam ao destino de ‘baixas marginais’)”
(BAUMAN,
2001, p. 229)
Saiba mais sobre as obras de Zygmunt Bauman.
Compre livros a partir destes links e ajude Klepsidra a permanecer no ar de graça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário