Manifesto Sururu é rememorado em edição de jornal local
O Manifesto Sururu, de autoria do professor da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL), Edson Bezerra, foi rememorado na edição do jornal Gazeta de Alagoas, do último sábado (7). O trabalho, publicado inicialmente no extinto Tribuna de Alagoas, em 2004, foi republicado ainda em blogs e colunas, repecurtindo até os dias de hoje entre intelectuais e estudiosos da cultura alagoana.
O Manifesto Sururu tem contribuído, ao longo dos anos, para a crescente visibilidade da atual emergência das culturas negras alagoanas e dos cultos religiosos de matriz africana.
"É um trabalho que precisa ser lido, estudado e servir como inspiração para aqueles que se preocupam com o desenvolvimento e a preservação da tão rica e bela cultura alagoana", avalia o reitor da UNEAL, Jairo Campos.
http://outrasimagensperifericas.blogspot.com.br/p/manifesto-sururu.html
http://outrasimagensperifericas.blogspot.com.br/p/manifesto-sururu.html


Manifesto Sururu
Por: Edson Bezerra*
O Manifesto Sururu quer muito pouco. Quem sabe um pouco mais do que exercitar um certo olhar: um olhar atento por sobre as coisas alagoanas. O Manifesto Sururu não quer apostar e nem pousar em outras imagens. O que ele procura é exercitar olhos e sentidos por sobre (e dentre) antigas e permanentes imagens das coisas alagoanas: olhar primeiramente os canais que interligam as lagoas e os rios.
Os canais sempre foram as nossas pontes4 e disto já o sabia Octavio Brandão5.
O Manifesto Sururu também fala da fome. Não da fome comum, mas da fome de devorar as Alagoas.
Contra as derrapagens de uma modernidade vazia6, uma outra assinalada de coisas alagoanas.
Novas rotas. Rotas alagoanas: de canais e lagoas, sobretudo.
O Manifesto Sururu não está sozinho. O sururu, ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares de vidas. O sururu é vida7.
O sururu, ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares de vidas. O sururu é vida.
O Manifesto sururu está atento aos batuques noturnos dos terreiros periféricos8 fora de rota e também dos milhares de capoeiras espalhados9.
O Manifesto Sururu se alegra com a folia dos meninos de rua, com os guerreiros e com as tradições alimentadas pelos povos periféricos.
Manifesto Sururu: mistura e associação de moluscos, peixes, águas, negros, cafusos, morenos e de todas as mestiçagens possíveis das gentes alagoanas. Manifesto Sururu: do vale do Mundaú10 para onde houver lagoas.
Suas heranças são imagens, suas comidas e seus pais ancestrais. Assim: Calabar é nosso e, sobretudo, Zumbi dos Palmares: migrantes deslocados da colônia central11.
Penso em imagens alagoanas: o olhar a cidade de nossos mirantes. Os mirantes são os nossos planetários12. Dos mirantes se avista a lagoa, o céu e o mar.
Dos mirantes: ali poderíamos comer além de tapioca e beiju, outras coisas das tribos ancestrais.
Penso em imagens alagoanas. Penso que uma delas é a Mestra Ilda do Coco tomando (no mínimo) caldinho de sururu na beira da Mundaú13.
Penso em uma outra: a do Major Bonifácio melado de lama e dançando carnaval na rota Bebedouro-Martírios. Ele, o major, bem que poderia ter também dançado capoeira14.
Uma outra seria pensar a Tia Marcelina15 como se ela fosse Nossa Senhora dos Prazeres16.
No fundo somos gente-sururu e por isso trazemos nos olhos as imagens de todas as águas.
Das águas do mar e do somatório das dezenas de lagoas, rios e olhos d’água espalhados nas periferias da cidade.
Octávio Brandão: Mundaú: rio dos negros. São Francisco: rio dos brancos. Que vivam as lagoas todas: as vivas e as mortas. Somos filhos do barro, nascemos entre os batuques dos negros e da mistura da lama.
Por isso: que estória é essa de Terra dos Marechais17?
Somos ainda a derradeira sobrevivência (e isso é fantástico) do extermínio do povo Caeté. Em nossa veia, além do povo caeté, pulsa sangue negro. Os brancos nos trouxeram a mistura e (também) a morte.
De todo modo, mestiços de índios, negros e brancos, estamos vivos.
Cúmplices da modernidade, temos o barro e a lama debaixo dos edifícios e dos asfaltos das ruas.
Somos filhos de uma cidade restinga18.
Os nossos edifícios (assim como a nossa modernidade) foram construídos sobre os terreiros dos negros e das moradas dos pobres. A nossa modernidade foi construída sobre os aterros dos manguezais e do massapé e é por isso que às vezes ainda sentimos cócegas nos pés: são eles, os caranguejos e as lamas19.
Sobre os aterros, se instalaram os movimentos dos negros, seus batuques e danças. Guardamos então muitas saudades.
Por uma nova cartografia: redesenhar roteiros visíveis, remarcar datas e re-escrever novas geografias20.
Manifesto Sururu: Simulações sem simulacros.
Que por dentre as cenas das antenas parabólicas, outras cenas de imagens periféricas.
Por uma reinvenção da cidade e celebração pública da memória dos nossos proscritos. E por falar nisso:
Viva Calabar!!!!
Além de toda ancestralidade, o erotismo do coco21 e dos fragmentos de nossas raízes periféricas.
Os nossos terreiros são nossas academias: sementes de ritos e lugares de celebrações e festas. Viva todas as alegrias. Viva o terreiro de Mestre Felix22 e de todos os mestres.
Saudades daqueles tempos. Antes do Quebra de 1912 o batuque era bem maior23.
Temos muitas dívidas: para com a morte de Tia Marcelina, por exemplo.
E temos muitas outras. Uma delas é a seguinte: a Praça 13 de Maio24 deveria ficar na praça dos Martírios e a estátua do negro Zumbi no lugar da Marechal. Faríamos assim muitas festas e celebraríamos com os batuques o sincretismo de nossas mestiçagens. Quem sabe então ele, Zumbi, não rezaria uma missa pra depois dançar xangô?
Nós repudiamos o etnocídio e proclamamos todos a uma grande alegria.
Viva a alegria de todas as festas. Quem antecedeu os marechais foi Zumbi e antes dele, Calabar25. Viva a subversão e a liberdade.
Entre os nossos pobres, os pobres específicos, aqueles que sobreviveram a maleita e a fome estiveram desde sempre os cantadores de coco, de toada, de forró, das rodas de samba, os repentistas, os criadores do martelo alagoano, os capoeiras, os macumbeiros e mandingueiros. Em suma: as nossas almas inspiradoras.
Das lagoas. Também elas invadiram e invadem o mundo das imagens: de Guilherme Roggato26 a Celso Brandão27.
As palavras-mundo de Jorge de Lima e Ledo Ivo28 são roteiros cinematográficos de um imaginário alagoano.
Do somatório de todas as águas: as águas do mar que invadiram a todos.
Dos olhos- d’água e do cheiro de maresia contra o cheiro agridoce das canas. Maresia alagoana: ela contaminou a todos: dos pisantes das terras alagoanas, dos índios e negros, brancos e holandeses e até mesmo aos piratas franceses.
...e sobretudo do cheiro do sururu tirado fresquinho da lama: alimento dos negros e pobres. Imagem segura e maternidade de nossas imagens mães.
Assim, Mestra Ilda também é Zumbi e Mestre Zumba29 também.
Além de sentimentais, somos anfíbios, quer se queira quer não.
Quem ainda não provou do sururu, tomou banho de lagoa, é aleijado dos olhos e cego no corpo30.
Viva Deodato, outro negro artista31.
Sururu: ao redor dele, os bairros e os povoados se amontoaram e se enredaram: Ponta Grossa, Levada, Pontal, Bebedouro e Rio Novo32. Todos filhos das águas.
O sururu então, mais dos que os homens, inventou e recriou as nossas geografias: as cartografias de nossa primitividade. Ali naqueles espaços embrenhados dançava-se macumba, fumava-se liamba, cantava-se o coco e se recriava um mundo: o mundo alagoano33. Como isto foi possível?
Na busca do sururu, os homens pobres desenharam ruas.
Sururu: espaços coletivos, maternidade e memória. Nascedouro e rotas de outros espaços geográficos. Espaços de uma memória possível.
Viva Jorge de Lima e Celso Brandão que filmou o “Cata Sururu”.
Levada. Alguém lembra que ali havia um porto?
Alagoas não foi feita (somente) pra turista ver.
Pra turista ver e olhar o mar34.
No além-mar, pensar não outras terras. No além-mar pensar nossos interiores. Lagoas interiorizadas35. Pra turista ver também. E que ele venha, e já que comemos o bispo Sardinha, o comeremos também, mas antes disso ensinar ele a tomar banho de lagoa e comer caranguejo uça36 com as mãos. Aliás, com todo estrangeiro deveria ser assim37.
Turismo primitivo: a Bica da Pedra, o banho no Cardoso, o Catolé38. Lugares de luz com águas frescas e claras.
O bar das Ostras39.
Os portos de Bebedouro e de Santa Luzia do Norte, alguém lembra?
“Sururulândia40”: Esta é nossa riqueza e desde sempre memória.
Mas aconteceu que Maceió fugiu da Mundaú. Pensou que a lama e os caranguejos e os homens-caranguejos iam engolir ela41!!!!
A nossa aristocracia, com medo e nojo fugiu do barro, e fugiriam também da zoadas dos batuques, dos cocos e das macumbas e foram morar lá na banda das praias: Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca. E naquelas praias, há pouco desertas, no lugar dos casebres e casas de paus a pique, foram montados os edifícios e as luminárias elegantes da cidade.
E as águas do mar são diferentes das águas da lagoa.
A gente sururu então ficou sozinha.
Formou-se deste então duas gentes: a gente sururu e o povo rico da cana.
De um certo modo, ao gosto do sururu, se somou o cheiro da cana. Alagoas então é de todo um pouco de cada pedaço.
Mas, ao contrário da maternidade dos mariscos, os capins da cana se tornaram baionetas retocadas de sangue.
Na verdade, a cana nunca foi doce. Zumbi e os negros já desde sempre sabiam42.
O sururu também não é doce. Mas entre o doce e o salgado, e somado às mestiçagens das cantigas e do somatório das estórias todas, ele foi dando alma e corpo às gentes alagoanas43.
Por isso, é uma pena que o Farol não derrame sua luz na Mundaú.
O Farol nunca iluminou as lagoas. Nas lagoas não navegam os navios. Mas, afinal o que trazem os navios? Nas lagoas apenas navegam os peixes, os homens e os mariscos adormecidos e preguiçosos: o bagre, o mandim, o siri, o caranguejo e o sururu enfiado na lama44.
Mas, afinal, se toda festa tem um tempo, qual o tempo sururu?
Sururu, cultura oral sururu. Sinestesias: pureza aberta e sem perigo. Sinestesias: um dia um branco tomou caldo de sururu e ficou doido. Sururu: comida dos pobres:
“Nossa miséria é a nossa riqueza”45.
Que ressuscitemos todas
as histórias
E que no banquete
das mestiçagens periféricas
E na festa de todos os
povos ressurgentes
Morram colonizadores
e colonizados46.
E que por dentre o barro
e cheiro da lama
E no somatório de todas
as imagens, a Mundaú central,
E nela a gente sururu seja imensa
Feito um oceano sem margens47.
No somatório de todas as águas.
* É músico, compositor, poeta e articulador cultural, graduado em Sociologia, mestre em Antropologia e doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e, atualmente é professor da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal, Campus I) e da Seune (Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste).
Nenhum comentário:
Postar um comentário