quarta-feira, 26 de março de 2014

A ilha está com todos e não abre - João Ubaldo RibeiroJoão Ubaldo Ribeiro

A ilha está com todos e não abre

João Ubaldo Ribeiro
 
Hoje em dia, tem gente que, não sei qual a razão, não gosta de lembrar-se muito disto, mas quem está por dentro de nossa História sabe que, sem o empenho decisivo dos itaparicanos, o Brasil não teria conquistado sua independência política, não me canso de repetir aqui. Os tempos são muito outros e lá se foi a época em que imperadores e nobres nos visitavam. É fugaz a glória deste mundo e quem hoje cavalga, amanhã pode ser cavalgado, já advertiam os antigos. Não é sem certo amargor que essa situação é vista e receio que a posição majoritária tem sido de descrença e repúdio quanto aos governantes, pelo menos na voz de alguns itaparicanos de destaque.
— A merdiocridade continua a dominar este país! — exclama, indignado, Jacob Branco, em discurso no Bar de Espanha. — A gente procura, procura e só acha merdíocre! Eu, que já fui fanático pela nossa participação na guerra da Independência, hoje tenho minhas dúvidas. É bem possível que os portugueses já previssem que esta esculhambação nunca ia dar certo e, aí, para a gente não desconfiar, fingiram que estavam querendo continuar a encarar este abacaxi. Eles devem ter ficado muito aliviados, quando a jogada deu certo e conseguiram se livrar do pepino que eles mesmos criaram. Nossa posição só pode ser contra os merdíocres! Portanto, contra todos os políticos, sem exceção! Vocês viram agora a reforma do Ministério. Antigamente ministério era para governar, hoje é para ficar trocando um merdíocre por outro, conforme a necessidade do momento. Já temos 39 ministérios, mas sempre se pode botar água no feijão. Há muitas áreas ainda sem ministério, pode haver o Ministério da Mandioca, o Ministério do Ambulante e do Camelô, o Ministério das Festas Populares, e muito mais, basta precisar, a fim de comprar algum apoio.
O radicalismo de Jacob de fato parecia ter contaminado toda a coletividade. Pode ser que uma pesquisa feita antes de fatos que se desenrolaram recentemente revelasse que o grau de rejeição aos políticos era talvez o mais alto do país. Mas quem, entre seus cidadãos, conta com Zecamunista deve estar sempre preparado para uma surpresa. Durante vários dias, ele ficou trancado em casa e até se acreditava que estava viajando, na disputa de algum carteado.
— Eu não estava viajando — esclareceu ele. — Estava calculando um esquema de bolões para a Copa, pela internet. Vai movimentar um belo volume de dinheiro.
— E pode fazer aposta e bolão na internet?
— Claro que pode. Aqui tudo pode, onde é que você nasceu e foi criado?
— É verdade. E o pessoal parece meio desanimado, ninguém quer votar em ninguém, ninguém acredita em ninguém.
— Ah, isso não. Quer dizer, não acreditar em ninguém está certo, mas não apoiar ninguém está muito errado. Precisamos é justamente do contrário. No começo, eu pensei em fazer um seminário especial, mas teve quem achasse que era seminário com padre, batina e latim, ficou muito complicado. Aí eu estou criando a Agência Socialista de Distribuição de Renda Eleitoral. É um esquema simples, com base numa premissa indiscutível. É uma coisa de grande alcance socioeconômico.
— Qual é essa premissa?
— O candidato se elege e passa mais pelo menos quatro anos no bem-bom, quando não a vida toda. Já o eleitor só ganha desgosto. Não é justo, agora vamos de realpolitik, andei lendo sobre o assunto e cheguei a excelentes conclusões. Quer dizer, vamos ser realistas, não vamos querer desentortar a realidade, é dar murro em ponta de faca. Não, senhor, a Agência de Distribuição de Renda Eleitoral terá como obter proveito direto com o voto, beneficiar o eleitor. Já vimos que o voto em si não costuma mudar nada, porque o eleito nunca mais vai nem falar com o eleitor até a eleição seguinte, como de costume. O negócio é aproveitar e malhar na hora certa, que é a hora em que o candidato dá importância ao eleitor. Hoje isso só é praticado de forma muito desorganizada, a agência vai corrigir tudo, pelo menos aqui na ilha. Mas quem quiser adotar o modelo da agência pode ir em frente, eu considero uma ideia muito interessante para o eleitor.
— E como é que funciona a agência?
— É muito simples, como eu já disse. O candidato registra a candidatura na agência. Aí, quando ele pedir o voto a alguém, este alguém diz a ele que espera algum retorno, de forma que ele deve procurar a agência. Na agência, o pedido é analisado, cadastrado e cobrado na hora, para repasse ao eleitor. Sem cadastramento e pagamento, o eleitor não vota. A agência vai procurar a melhor oferta e conduzir todas as negociações com o candidato.
— Mas que oferta é essa?
— Imagino que, basicamente, vai ser dinheiro, acho que a maior parte vai querer dinheiro mesmo, mas isto não exclui outras vantagens mais tradicionais, como uma dentadura, por exemplo. Estaremos prontos para qualquer proposta, o eleitor é soberano. Uma coisa é certa: o voto vai ser valorizado. E, depois da eleição, não importa o resultado, outro passo essencial é declarar apoio integral aos eleitos. Quem quer que ganhe, a gente apoia, estamos com os vencedores, damos festa, puxamos o saco e aplaudimos em praça pública. Nunca mais a ilha estará afastada do poder. E, como sempre, será por um Brasil melhor. Através do voto comprado e pago decentemente, aliado ao adesismo construtivo, vamos aperfeiçoar a nossa democracia. Comigo agora é na realpolitik, estou em sintonia com a realidade e sigo os profissionais.

O Globo, 23/3/2014

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