sábado, 5 de julho de 2014

Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira - JESSÉ SOUZA

Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira


JESSÉ SOUZA



RESUMO: O texto procura enfatizar o conteúdo macrossociológico da obra dos anos trinta de Gilberto Freyre. Ao invés dos temas classicamente vincula- dos à obra de Gilberto Freyre, como a mestiçagem e a história da vida privada, o ponto principal da argumentação é reconstruir o embate entre valores oci- dentais da Europa já burguesa, que tomam o país de assalto a partir de 1808, e os valores tradicionais que Freyre chama de “orientais” para se referir ao conjunto de valores africanos, portugueses e rurais da vida colonial brasileira. Gilberto Freyre desenvolve em Sobrados e mucambos uma historiografia da institucionalização desses novos valores ocidentalizantes que se contrapõe, com vantagens, à versão dominante do Brasil como ainda dominado por valo- res pessoais e semi-tradicionais.


Gilberto Freyre é, talvez, o mais complexo, difícil e contraditório entre nossos grandes pensadores. Sua obra tem permanecido um desafio constante aos comentadores, como iremos ver a seguir, e a vitalidade de seu pensamento se mostra no crescente interesse por sua obra. Ele é, talvez, o mais “moderno” entre os clássicos do pensamento social brasileiro e suas questões “ganham” ao invés de perderem em atualidade.A enorme dificuldade envolvida numa adequada compreensão de sua obra resulta de vários fatores combinados. Uma razão importante parece-me a extraordinária disparidade de sua obra. Enquanto, normalmente, na maioria dos grandes autores, a obra de maturidade representa uma com trajetória intelectual desses autores, Gilberto parece ser uma exceção a essa re- gra. Seus melhores livros são escritos ainda na década de trinta, quando o autor ainda era muito jovem, e dentre eles, além de Casa-grande e senzala, especial- mente Sobrados e mucambos, a sua obra prima no nosso ponto de vista.ndensação intelectual que propicia maior grau de coerência e elaboração dos temas que marcaram a
UNITERMOS:
cultura brasileira, cultura ocidental, iberismo, macrossociologia, Gilberto Freyre.

Professor do Departa- mento de Sociologia do ICS - UnB
Sua obra de juventude é marcada pelo tom aberto, propositivo, hi- potético, o que levou a alguns comentadores a interpretá-lo pelo paradigma da ambigüidade e da contradição constitutivas. Foi precisamente esse aspecto aberto, inquisitivo, de sua obra de juventude, que foi substituído na maturidade por um espírito de sistema fechado, uma compilação de certezas e de su- gestões de intervenção prática e política.
No prefácio de 1969 para a edição brasileira de Novo mundo nos trópicos, livro originalmente publicado em inglês em 1963, percebe-se essa torção peculiar da atitude de Freyre em relação aos estudos realizados na década de 30. Aqui, Freyre pretende “responder” aos seus primeiros críticos que reclamavam que ele “não concluía”, não possuía uma tese central clara, nem muito menos tinha uma proposição concreta e clara “sobre o que fazer”.
Essa é certamente uma crítica e uma demanda ao pesquisador bem brasileira. A pequena distância objetiva e subjetiva entre o domínio da reflexão, a ciência, e a esfera da ação prática, a política, torna entre nós quase impossível uma clara divisão de trabalho entre essas duas esferas complementares. Pede-se, constantemente, o apagamento das fronteiras, confundindo-se as condições de validade de cada domínio, exigindo-se de uma esfera o que só é razoável demandar-se de outra.
Gilberto Freyre, seja por oportunismo político, seja por vaidade pessoal, cede ao apelo. Aqui, talvez, tenham-se encontrado expectativas obje- tivas e inclinações pessoais. O certo é que a obra madura de Freyre é uma espécie de caricatura de sua obra de juventude. O que nesta abre-se à indagação do leitor, um constante descortinar de aspectos e variantes que se ofere- cem à curiosidade e ao escrutínio deste, naquela tende sempre ao enrijecimento, um fechamento de horizontes e perspectivas.
Efetivamente Gilberto Freyre conclui na sua obra madura. Conclui transformando algumas de suas brilhantes intuições de juventude acerca da especificidade e singularidade da formação social brasileira em uma ideologia nacionalista e luso-imperialista de duvidoso potencial democrático. O que antes adquiria a forma do questionar-se acerca das peculiaridades e transformações de uma cultura européia nos trópicos, transforma-se em “tropicologia”, um conjunto de asserções de cientificidade duvidosa, carregadas de impres- sionismo, mas facilmente utilizáveis como uma ideologia unitária do “tropi- cal e mestiço”. Uma ideologia do “apagamento das diferenças”.
A “tropicologia” transforma-se, inclusive, em ciência específica, a qual, “já referendada pelos sábios da Sorbonne” (Freyre, 1969, p. 20), se dedicaria ao estudo do homem nas condições tropicais. O fato do elemento mesológico aqui ser o dado essencial não é de forma alguma acidental. Ao contrário, ele representa o fundamento mesmo daquilo que já foi chamado “concepção neolamarckiana” (Araújo, 1993, p. 39) de ciência em Gilberto
Freyre. Essa concepção parte da possibilidade de consideração simultânea de elementos tão heterogêneos como as influências biológicas, mesológicas e culturais na determinação da especificidade de uma formação social singular.
Se nos escritos da juventude os outros elementos estão subordina- dos à dimensão cultural, como teremos oportunidade de discutir mais adiante, nas obras de maturidade a dimensão mesológica assume o lugar de maior preeminência como o nome da nova ciência já sugere. Os motivos para esse deslocamento são políticos, ou melhor, “geopolíticos”, pela facilidade mesma de se apontar a necessidade de defender-se de “imperialismos de potências não-tropicais com relação a espaços, recursos, população e culturas tropi- cais” (Freyre, 1969, p. XIX).
A transformação da ciência em geopolítica tem pelo menos duas
limitações decisivas. A primeira refere-se ao fato de supor uma comunidade indistinta, mesologicamente unificada, em relação ao que lhe é externo. A segunda limitação, irmã e complementar em relação à anterior, é a proposição implícita de comunidade indistinta “para dentro”, onde a dimensão conflitiva e o componente do poder é secundarizado.
A separação entre trabalhos da “juventude” e da “maturidade” não
é feita no sentido de demonstrar qualquer “corte epistemológico” no autor. Freyre é o mesmo pensador holista, que pensa a sociedade como um todo orgânico a partir de partes que se completam. Nesse tipo de concepção de sociedade, a hierarquia é o dado central e cada pessoa, grupo ou classe, tem o “seu lugar”. Igualdade política e econômica jamais foi o princípio mais im- portante do sociólogo Gilberto Freyre. Ao inverso, sua atenção esteve sempre voltada a perceber formas de integração harmônica de contrários, interdependência e comunicação recíproca entre diferentes, sejam essas dife- renças entre culturas, grupos, gêneros ou classes.
No entanto, para o esforço hermenêutico e interpretativo, faz muita diferença se estamos falando de potencialidades inscritas em uma sociedade do séc. XVI e XVII, como o Brasil de Casa-grande e senzala, ou de supostas características de uma nação em plena segunda metade do século XX, como no caso dos textos que tratam da luso-tropicologia. Esse dado temporal fundamen- tal nem sempre é levado em consideração por comentadores que teimam em perceber o quadro histórico desenvolvido por Freyre para o Brasil colônia pelas lentes de categorias e noções surgidas séculos mais tarde. A refração operada por esse tipo de interpretação é a melhor maneira de deixar-se de perceber algu- mas intuições de um pensador de talento e saber empírico excepcional.
Estou convencido de que algumas idéias fundamentais de Freyre
não precisam ser tratadas, necessariamente, dentro do mesmo horizonte categorial e normativo usado pelo autor. Por conta disso, gostaria de propor uma análise em separado dos dois livros mais importantes de sua “juventu- de”, Casa-grande e senzala (Freyre, 1957) e Sobrados e mucambos (Freyre, 1990). Cada um desses livros refere-se a períodos históricos distintos e apon- tam para questões díspares.
Em Casa-grande e senzala a questão central é efetivamente o en-
contro intercultural nos trópicos. Esse texto parece-me concentrar os temas que associamos comumente com o debate ligado a Gilberto Freyre, como a miscigenação e a comparação, às vezes explícita, o mais das vezes implícita mas sempre presente, com o desenvolvimento norte-americano.
Em Sobrados e mucambos, no entanto, a questão central parece-me um ponto, até onde pude perceber, secundarizado pela crítica pelo menos com relação ao desenvolvimento de todas as suas conseqüências: a “ambigüidade” cultural brasileira a partir do embate entre a tradição patriarcal e o processo de “ocidentalização” a partir da influência da Europa “burguesa”, e não mais por- tuguesa, que toma de assalto o país no séc. XIX. Esse processo tem sido perce- bido, geralmente, como “mudança de hábitos” de vestir, de leitura, de consumo em geral. O brasileiro se transveste de “civilizado”, conferindo sentido àquela frase ainda hoje utilizada por todo brasileiro, civilizando-se “para inglês ver”1.
Existe, na realidade, toda uma sociologia do “para inglês ver”, que se nutre na idéia de que o processo de absorção da modernidade européia no Brasil é um verniz, uma aparência, ou no melhor dos casos uma primeira epiderme. Acredito que uma leitura alternativa de Sobrados e mucambos pode nos trazer uma outra concepção desse processo.

Casa-grande e senzala e a peculiaridade do patriarcalismo tropical


1 A expressão “para in- glês ver”, no Brasil, refere-se a qualquer situação onde o intui- to é induzir alguém em erro acerca de uma verdade que não se quer mostrar. Pre- cisamente como, no séc. XIX, pretendia- se mostrar “aos ingle- ses” que o comércio escravocrata havia cessado, quando ela continuava na práti- ca, ou que, em geral, ter-se-ia atingido no Brasil um grau de “ci- vilização” maior do que era realidade.
Seria ingenuidade começar a tratar de um dos livros mais discuti- dos da historiografia brasileira sem, antes de tudo, “comentar” os comentadores e partir do patamar da discussão mais sofisticada. No caso de Gilberto Freyre, o trabalho de Ricardo Benzaquen de Araújo sobre sua obra na década de trin- ta (cf. Araújo, 1993) transformou-se rapidamente em referência obrigatória para os estudiosos do autor. E isto por boas razões. A abordagem de Araújo é original e cuidadosa, ajudando a situar o debate acerca das contribuições de Gilberto Freyre para uma moderna sociologia brasileira em novos termos.
É a partir de uma respeitosa polêmica com a interpretação proposta por Luiz Costa Lima no seu O aguarrás do tempo (Lima, 1989), que Araújo constrói seu argumento.Atese de Lima é clara: Freyre não teria, apesar de ter dito o contrá- rio no prefácio de Casa-grande e senzala, desvinculado raça e cultura e dado proeminência a esse último. Essa operação o teria diferenciado das teorias racistas anteriores, como a de Oliveira Vianna, por exemplo. Para Lima, Freyre não só não se liberta do paradigma anterior, como introduz a variável cultural como elemento ancilar em relação ao componente racial, servindo aquela apenas para conferir maior visibilidade a este último (cf. Lima, 1989, p. 205).
Para Lima, a ambigüidade constitutiva da metodologia freyriana se transmite também para seu conteúdo. No tema central da miscigenação por exemplo, pergunta-se o autor, que confraternização seria essa cuja “igualda- de” se restringiria ao encontro com vistas ao coito? (cf. Lima, 1989, p. 214). Nesse aspecto fundamental da argumentação Freyriana, a base mesma de sua tese da proximidade e comunicação entre as distintas tradições culturais que formavam o Brasil colônia, portanto, Lima veria, antes de tudo, um recalque
do conflito e a criação de uma “imagem idílica” (cf. Lima, 1989, p. 217) da herança que o colonizador nos legou.
A interpretação de Araújo se dirige precisamente a esses dois pon- tos fundamentais. De início, Araújo parece concordar com as críticas de Lima. Efetivamente, a “imprecisão” conceitual é vista como um dado constitutivo da argumentação Freyriana. No entanto, no desenvolvimento do raciocínio, Araújo desenvolve uma interessante hipótese explicativa para a presença es- púria do componente “raça” em Gilberto Freyre. Freyre teria assimilado uma noção “neolamarckiana” de raça, que exigiria a mediação do meio físico, en- quanto elemento adaptador capaz de incorporar, transmitir e herdar caracte- rísticas culturais. Assim, “raça” seria antes um “produto”, um “efeito”, do que causa da combinação entre meio e cultura. Raça seria uma transformação cultural modificada e adaptada ao meio (cf. Araújo, 1993, p. 39).
Assim, apesar de admitir a “imprecisão” localizada por Lima, Araújo ressalta antes o papel dominante do elemento cultural, sendo o componente racial subordinado no processo de determinação causal. Essa concepção, dado o “compromisso biológico” que implica, efetivamente se desviaria do puro legado de Franz Boas (a quem Freyre diz seguir nesse particular), mas não implicaria, por outro lado, qualquer adesão às formas de hierarquia racial típi- cas do “racismo científico” antes dominante nos nossos meios intelectuais. Teríamos a ver, aqui, quando muito, com um “resto”, um último elo entre teoria social e biológica (cf. Araújo, 1993, p. 40).
Com relação ao segundo argumento levantado por Lima, o da “ima- gem idílica”, Araújo é ainda mais cauteloso. Ele aceita parcialmente a crítica e a denomina de uma “meia-verdade” (cf. Araújo, 1993, p. 48). O autor percebe que, para construir seu argumento, é necessário qualificar a especificidade da escravidão brasileira. Esta é violenta como qualquer escravidão, mas ao contrá- rio da escravidão na Grécia antiga, por exemplo, ela admite proximidade e in- fluência recíproca entre as culturas dominante e dominadas.
Assim teríamos paralelamente à imensa violência e perversão ine- rente a toda sociedade escravocrata um componente de “proximidade”, expli- cando o caráter sincrético de nossa cultura por oposição à “pureza” da cultura grega antiga que pouco foi tocada pelas culturas dominadas. Esse componen- te de “proximidade” entre senhor e escravo vê o autor como influência cristã, o qual se contraporia polarmente com o elemento “despótico oriental” herda- do dos mouros, como dois aspectos da “bicontinentalidade” portuguesa.
A consideração da escravidão grega antiga ao invés da americana sulista se deve ao fato de Araújo não ter encontrado nenhuma alusão a disparidades entre as duas formas de escravidão em Casa-grande e senzala (cf. Araújo, 1993, p. 98). Esse ponto é fundamental, e está vinculado também à forma peculiar, e a meu ver invertida, de como Araújo percebe a influência moura. Voltaremos a discutir esses aspectos com mais vagar adiante.
Para Araújo, a ambigüidade entre os elementos oriental-despótico e cristão-aproximativo não é solucionável, ela seria constitutiva do argumen- to freyriano. Seria precisamente um exemplo conspícuo dessas “contradições
em equilíbrio” de que fala Freyre. Que essas contradições jamais cheguem ao ponto de rompimento ou colisão é explicado pela idéia de “trópico” para o autor. Como o “neolamarckianismo” de Freyre já predisporia, seria a idéia de trópico uma espécie de mediador entre geografia e cultura, que traria a idéia de “excesso”, de uma “hybris” grega, como elemento dominante de todo o sistema “casa-grande e senzala”, permitindo, assim, a convivência de “exces- sos” de despotismo com “excessos” de proximidade.
A interpretação metodológica de Gilberto Freyre levada a cabo por Araújo a partir da noção de “neolamarckianismo” é, sem dúvida, um divisor de águas no tema. Ela ajuda a esclarecer, inclusive, aspectos fora do âmbito do estudo de Araújo, como a reificação operada na obra de maturidade do autor sob a forma de uma “geo”política, como procurei explicitar no começo desse ensaio. Poder-se- ia dizer que, no lugar do maior peso da variável cultural que Araújo corretamente detecta nas obras de juventude, temos a ver, crescentemente, com uma reificação mesológica e espacial ganhando foros de categoria explicativa.
Se a noção de “neolamarckismo” é fundamental para uma adequa- da compreensão da obra de Gilberto Freyre, o mesmo não se pode dizer da interpretação “conteudística” da obra como a formula Araújo. O argumento do autor nesse ponto particular, ao enfatizar o elemento da contradição, que sem dúvida se refere a um ponto real e importante da reflexão Freyriana, ter- mina por se congelar na proposição de uma “hybris”, que por ser mero “ex- cesso”, seja criativo ou destrutivo como afirma o autor, pode ser tudo e nada ao mesmo tempo, como a própria “anarquia” vista por Araújo como a forma social da “hybris” (cf. Araújo, 1993, p. 90). A “hybris” é fetichizada e pro- posta como solução quando na realidade ela é um sintoma de um problema não resolvido. Ela acaba por se tornar uma “pseudo-explicação”.
Afinal um conceito serve para reduzir a complexidade da realidade e não para reproduzi-la na esfera conceitual. E aqui não cabe dizer que a “rea- lidade” descrita por Freyre é mais complexa que as outras realidades. “Toda” realidade é complexa na medida em que é perpassada por incontáveis cadeias significativas vertical e horizontalmente ilimitadas. Esse é um ponto conspí- cuo da construção conceitual de inspiração neokantiana em Max Weber, por exemplo. O tipo-ideal é, nesse sentido, uma hierarquia seletiva de aspectos de uma dada realidade. Um bom tipo-ideal é aquele que logra selecionar os as- pectos mais importantes da realidade a ser descrita. Na impossibilidade da reprodução da realidade em toda a sua complexidade, como quer o imanetismo hegeliano, o qual para Weber produz tipos-ideais “sem o saber”, a redução da complexidade, precisamente do “excesso” a partir da construção de conceitos unívocos, é o apanágio do bom trabalho conceitual.
Precisamente pela ausência de univocidade da noção de “hybris” ela repete e mantém aquilo que o comentador critica em Freyre: a imprecisão e a ambigüidade. A “hybris” transforma-se numa “enteléquia” tão totalizadora que todos os fatos passam a referir-se a ela seja por afinidade, seja por oposi- ção. Desse modo, a “hybris” é vista como a categoria explicativa central não somente de Casa-grande e senzala mas de toda a obra Freyriana do período,
inclusive de Sobrados e mucambos. Nesse sentido, apesar de Araújo perceber com perspicácia a redução da proximidade social a partir do processo civilizador europeizante, ele a vincula a uma transformação da “hybris” ante- rior, enfatizando antes a continuidade sob outras formas do que a descontinuidade representada pela entrada de elementos radicalmente novos em Sobrados e mucambos.
Esse ponto é essencial como iremos ver mais adiante. A ênfase na continuidade entre esses dois livros termina por não permitir a localização de uma outra “novidade radical” na sociologia Freyriana que não tem a ver com o tema da mestiçagem e, portanto, com a temática que o conceito de “hybris” pretende aludir.

A semente da formação social brasileira

Como Freyre afirma nas primeiras páginas de Casa-grande e senza- la, em 1532, data da organização “econômica e civil” do Brasil, os portugueses, que já possuíam cem anos de experiência colonizadora em regiões tropicais, assumiram o desafio de mudar a empreitada colonizadora comercial e extrativa no sentido mais permanente e estável da atividade agrícola. As bases dessa em- preitada seriam: no aspecto econômico, a agricultura da monocultura baseada no trabalho escravo, e no aspecto social, a família patriarcal fundada na união do português e da mulher índia. Na política e na cultura essa sociedade estaria fundamentada no particularismo da família patriarcal para Gilberto Freyre. O chefe da família e senhor de terras e escravos era autoridade absoluta nos seus domínios, obrigando até El Rei a compromissos, dispondo de altar dentro de casa e exército particular nos seus territórios (cf. Freyre, 1957, p. 17-18).
O patriarcalismo de que nos fala Freyre tem esse sentido de apontar para a extraordinária influência da família como alfa e ômega da organização social do Brasil colonial. Dado o caráter mais ritual e litúrgico do catolicismo português, acrescido no Brasil do elemento de dependência política e econô- mica em relação ao senhor de terras e escravos, o patriarcalismo familiar pode desenvolver-se sem limites ou resistências materiais ou simbólicas.
A família patriarcal como que reunia em si toda a sociedade. Não só o elemento dominante, formado pelo senhor e sua família nuclear, mas também os elementos “intermediários” constituídos pelo enorme número de bastardos e dependentes, além da base de escravos domésticos e, na última escala da hierarquia, os escravos da lavoura.
É precisamente nesse ambiente saturado de paixões violentas que
surge o tema da “ambigüidade” e da “imprecisão”. A questão é real e signifi- cativa referindo-se à forma peculiar em que uma sociedade singular vinculava umbilicalmente despotismo e proximidade, enorme distância social e íntima comunicação. Acompanhemos, antes de tudo, a forma como Gilberto Freyre monta o seu quebra-cabeças multicultural. Esqueçamos por um instante o ín- dio, cuja influência foi importante mas datada, tendo sido decisivo no período imediatamente inicial de colonização e desbravamento dos sertões (cf. Freyre,
1957, p. 160-161), e nos concentremos nos dois elementos principais e mais permanentes do patriarcalismo brasileiro: o português e o negro.
Toda a análise de Casa-grande e senzala é dependente e decorren- te da opinião singular de Freyre acerca do português. É o português o elemen- to principal, sob vários aspectos, do processo sincrético de colonização brasi- leiro. Antes de tudo, ele é o elemento dominante nos aspectos da cultura mate- rial e simbólica. É ele o motor e idealizador de todo o processo e é dele a supremacia militar. Se esse elemento a tal ponto dominante não carregasse em si próprio os germes da cultura que aqui iria se desenvolver, toda a argumen- tação de Freyre perderia em plausibilidade.
Mas o português é precisamente a figura do contemporizador por excelência e é, exatamente nesse traço da predisposição ao compromisso, que ele se diferencia do colonizador espanhol e, especialmente, do anglo-saxão nas Américas. É o português o portador da característica mais importante da vida colonial brasileira: o elemento da “plasticidade”, do homem “sem ideais absolutos nem preconceitos inflexíveis” (cf. Freyre, 1957, p. 191). É essa plasticidade que irá propiciar a extraordinária influência da cultura negra nos costumes, língua, religião e, especialmente, numa forma de sociabilidade en- tre desiguais que mistura “cordialidade”, sedução, afeto, inveja, ódio reprimi- do e praticamente todas as nuances da emoção humana.
É exatamente no ponto de encontro do português e do negro que Freyre cria o drama social do Brasil colônia. O ponto problemático é a afirma- ção simultânea de desigualdade despótica, que a relação escravo/senhor pro- picia, com intimidade e até, em alguns casos, afetividade e comunicação entre as raças e culturas. Nesse ponto, urge a discussão do que afinal constituiria a especificidade da escravidão brasileira. De onde ela vem, como e porque ela se distinguiria de outras sociedades escravocratas.
Acredito que a comparação privilegiada por Gilberto Freyre nesse aspecto seja por referência ao sul escravocrata norte-americano. Embora Benzaquen de Araújo aponte corretamente no seu estudo que todas as cita- ções no texto de Casa-grande e senzala tendem a apontar “a mais absoluta similaridade, nunca apontando para nenhuma diferenciação” (Araújo, 1993,
p. 98) entre os dois sistemas, acredito que ainda se possa fazer algumas qua-
lificações interessantes acerca desse tema. Sem dúvida, esse ponto é insisten- temente repetido em Casa-grande e senzala: fundamental é o sistema econô- mico de produção escravocrata e monocultor e a organização patriarcal da família (cf. Freyre, 1957, p. 360, 410 e 422). Esses são pontos que aproxi- mam todas as formas de sociedades escravocratas nas Américas, seja nos EUA, Brasil ou Cuba. No entanto, se os pontos essenciais são os mesmos, isso não significa que as diferenças “acessórias” não sejam importantes ou até decisi- vas no estudo comparado de sociedades de um mesmo tipo.
Acredito, portanto, que devamos examinar essa “essência” seme- lhante das grandes sociedades escravocratas das Américas cum grano salis. Afinal, isso equivaleria a dizer, em termos de hoje, que as sociedades industri- ais avançadas dos EUA e da Alemanha Federal são “essencialmente” seme-
lhantes, por exemplo, no modo de produção econômico e no tipo de família (para usar precisamente os mesmos termos de Gilberto Freyre quando aproxi- ma as sociedades escravocratas brasileira e norte-americana). Pouca gente sensata divergiria dessa afirmativa. Ao mesmo tempo, creio também que pou- ca gente deixaria de admitir que existem diferenças “acessórias” entre as so- ciedades americana e alemã as quais correspondem a distinções sociologica- mente significativas em relação a traços estruturais dessas duas sociedades de mesmo tipo. Existem aspectos de influência histórica que fazem com que es- sas duas sociedades, “essencialmente semelhantes”, tenham diferenças políti- cas e culturais em nada desprezíveis para o analista.
Acredito que eram diferenças desse tipo que estavam subjacente ao argumento Freyriano. Em uma conferência realizada na Universidade de Stanford, Califórnia, em 1931 (dois anos antes da publicação de Casa-grande e senzala), Freyre, ao falar da especificidade da escravidão brasileira em relação à “escravi- dão noutras áreas [da América ] dominadas, desde o século XVII, por outros povos europeus”; indaga-se:
“Por que essa diferença? A meu ver por ter sido [o brasileiro] um regime de escravidão (...) antes árabe que europeu em seu modo de ser escravocrata. E nin- guém ignora que há imensa distância entre as duas concepções- a européia, pós-industrial, e a oriental, pré-industrial- de considerar-se o escravo. Numa o escravo é simples máquina de trabalho. Na outra, é pessoa quase da família....” (Veja, 15/09/1999, p. 71).
Resguardados possíveis e prováveis exageros nessa contraposição, os termos da diferença estão postos com a maior clareza possível. Vale a pena demorar-se neste ponto já que ele é o fio condutor de toda argumentação Freyriana da especificidade da escravidão e, conseqüentemente, da formação social colo- nial brasileira. Um esclarecimento desse ponto talvez possa ajudar a dirimir, pelo menos em parte, algumas “imprecisões” e “ambigüidades” do argumento de Freyre. Benzaquen de Araújo, ao seguir a pista da indistinção entre a escravi- dão brasileira e norte-americana, termina, inclusive, por inverter o lugar da he- rança moura no raciocínio Freyriano. Ele a percebe como um dado do “despo- tismo oriental” (cf. Araújo, 1993, p. 47-57) quando na realidade, para Freyre, ele é a chave explicativa precisamente do elemento inverso, da “confraterniza- ção”, do componente “familiar”, distintivo da escravidão brasileira nas Améri- cas. Em Novo mundo nos trópicos esse ponto é referido com toda a clareza:
“Em toda parte, fiquei impressionado pelo fato de que o parentesco sociológico entre os sistemas por- tuguês e maometano de escravidão parece respon- sável por certas características do sistema brasilei- ro. Características que não são encontradas em ne- nhuma outra região da América onde existiu a es- cravidão. O fato de que a escravidão, no Brasil, foi, evidentemente, menos cruel do que na América in-
glesa, e mesmo do que nas Américas francesa e es- panhola, já me parece documentado de forma idô- nea” (Freyre, 1969, p. 179).
Essa característica nova, maometana, seria precisamente, portanto, o fator responsável pelo caráter mais “benigno” (voltaremos a esse ponto adi- ante) da escravidão brasileira nas Américas e especialmente em relação à do Sul dos EUA. Que fator teria sido esse?
“E por que foi assim? Não pelo fato de os portugue-
ses serem um povo mais cristão do que os ingleses, os holandeses, os franceses ou os espanhóis, a ex- pressão “mais cristãos” significando aqui, eticamen- te superiores na moral e no comportamento. A ver- dade seria outra: a forma menos cruel de escravi- dão desenvolvida pelos portugueses no Brasil pare- ce ter sido o resultado de seu contato com os escravocratas maometanos, conhecidos pela manei- ra familial como tratavam seus escravos, pelo moti- vo muito mais concretamente sociológico do que abs- tratamente étnico de sua concepção doméstica da escravidão ter sido diversa da industrial. Pré-indus- trial e até antiindustrial.
Sabemos que os portugueses, apesar de intensamen- te cristãos – mais do isso até, campeões da causa do cristianismo contra a causa do Islã – imitaram os árabes, os mouros, os maometanos em certas técni- cas e em certos costumes, assimilando deles inúme- ros valores culturais. A concepção maometana da escravidão, como sistema doméstico ligado à orga- nização da família, inclusive às atividades domésti- cas, sem ser decisivamente dominada por um propó- sito econômico-industrial, foi um dos valores mouros ou maometanos que os portugueses aplicaram à co- lonização predominantemente, mas não exclusiva- mente cristã, do Brasil” (Freyre, 1969, p. 180).
Portanto não foi o elemento cristão, como supôs Araújo (1993, p. 55), mas o mouro que explicaria para Gilberto Freyre o elemento de “proxi- midade”, a especificidade da escravidão brasileira como expressão social e cultural singular. Esse ponto é fundamental porque, apenas a partir dele, po- demos reconstruir o que Freyre sempre procurou: o elemento distintivo capaz de explicar, precisamente, a “diferença específica” da sociedade escravocrata brasileira em meio às experiências “essencialmente similares” das outras so- ciedades escravocratas do continente.
Resta ainda perguntar: o que significa exatamente a influência des-
se elemento familiar? O esclarecimento desse aspecto é absolutamente cen- tral, posto que ele pode ajudar a compreender não só a instituição da escravi-
dão brasileira enquanto tal para Gilberto Freyre, mas a peculiaridade da “for- mação social brasileira” como um todo. Sendo uma “instituição total” no Bra- sil, a forma peculiar da escravidão traria consigo a “semente” da forma social que se desenvolveria mais tarde. Qual seria essa “semente”? Ao se referir a uma conversa sobre o assunto com seu mestre Boas, Freyre nos dá pista inte- ressante para a questão:
“Quando, em 1938, falei ao meu velho professor da Universidade Columbia, o grande Franz Boas, sobre as idéias que tinha a esse respeito, ele me disse que as mesmas poderiam servir de base a nova compreensão e mesmo interpretação da situação brasileira; e que eu devia continuar minhas pesquisas relativas à co- nexão existente entre a cultura portuguesa e a moura
– ou maometana – particularmente entre seus siste- mas de escravidão. Argumentou ainda que os maometanos, árabes e mouros, durante muitos séculos haviam sido superiores aos europeus e cristãos em seus métodos de assimilação de culturas africanas à sua civi- lização” (Freyre, 1969, p. 180)2.
O contexto da reportagem dessa conversa com o antigo mestre re- mete à alegria de Freyre de ver suas intuições corroboradas por figuras para ele respeitáveis e acima de qualquer suspeita. A parte da citação em destaque mostra uma concordância de Boas no aspecto que sempre foi, para Freyre, o aspecto mais conspícuo da formação brasileira: o sincretismo cultural, uma combinação entre Europa e África que logrou produzir uma sociedade singu- lar, não redutível a nenhum dos termos que haviam participado originalmente da sua formação. Importante para nossos propósitos, no entanto, é a circuns- tância de que é precisamente a herança cultural moura na forma da escravi- dão, que parece ter sido o elemento decisivo da singularidade da sociedade escravocrata colonial e, portanto, da semente futura da sociedade brasileira.
Essa influência cultural, não obstante, parece não ter agido sozi- nha. Um outro fator, sociológico estrutural, teria agido combinadamente, qual seja, a necessidade de povoamento de tão grandes terras por um país pequeno e relativamente pouco populoso:
“Daí a forma de escravidão que os portugueses ado- taram no Oriente e no Brasil ter se desenvolvido mais à maneira árabe que à maneira européia; e haver incluído, a seu modo, a própria poligamia, a fim de aumentar-se, por esse meio maometano, a popula- ção...” (Freyre, 1969, p. 180).
O tema da família aumentada é aqui a chave da especificidade que Freyre pretende construir. Para Freyre, essa instituição não estava ligada primeira- mente à necessidade funcional e instrumental de aumentar o número de escravos. É que a família polígama maometana tinha uma característica muito peculiar:
“De acordo com os maometanos, bastava ao filho da 2 Grifo meu.
ligação de árabe com mulher escrava adotar a fé, os rituais e os costumes do seu pai, para se tornar igual ao mesmo pai, socialmente falando” (Freyre, 1969, p. 181).
E a seguir sobre a “versão portuguesa” da aplicação desse princí- pio cultural:
“Os portugueses... assim que se estabeleceram no
Brasil começaram a anexar ao seu sistema de orga- nização agrária de economia e de família uma dissi- mulada imitação de poligamia, permitida pela ado- ção legal, por pai cristão, quando este incluía, em seu testamento, os filhos naturais, ou ilegítimos, re- sultantes de mães índias e também de escravas ne- gras. Filhos que, nesses testamentos, eram social- mente iguais, ou quase iguais, aos filhos legítimos. Aliás, não raras vezes, os filhos naturais, de cor, fo- ram mesmo instruídos na Casa Grande pelos frades ou pelos mesmos capelães que educavam a prole le- gítima, explicando-se assim a ascensão social de al- guns desses mestiços” (Freyre, 1969, p. 181).
Acredito ser difícil minimizar a importância dessa influência cultu- ral no esquema interpretativo Freyriano. Acredito também que o próprio nú- cleo da singularidade da formação social brasileira para Gilberto Freyre advém desse fato fundamental de que o filho da escrava africana com o senhor euro- peu “poderia”, ou seja, existia a possibilidade real, quer ela fosse atualiza- da ou não, ser aceito como “europeizado”, no caso de aceitação da fé, dos rituais e dos costumes do pai.
Talvez esse fato não sirva para esclarecer a decantada “democracia racial”, na medida em que o “europeu” permanecia como o termo absoluta- mente positivo da relação. Mas talvez ajude a esclarecer a singularidade do tipo de sociedade, de cultura política e de comunicação cultural que aqui se processou. O tema da ascensão social do negro, ou melhor, sua “europeização” não é um tema de Casa-grande e senzala (cf. Freyre, 1957, p. 396). Vai ser, no entanto, um dos fios condutores da argumentação da verdadeira obra-pri- ma de Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, como veremos mais adiante. Mas em Casa-grande e senzala já podemos antever como se gerou a semente da sociedade brasileira moderna.
A família poligâmica e o sado-masoquismo social: como vincular
distância e proximidade?
Gostaria de tentar uma interpretação alternativa de nossa “semente societária”, do nosso específico “patriarcalismo” em Casa-grande e senzala a partir da noção de sado-masoquismo. Qualquer leitor com suficiente paciência poderia contar às dezenas as referências de Freyre a relações sado-masoquistas, seja em Casa-grande e senzala, seja em Sobrados e mucambos, seja ainda em livros como Nordeste. No entanto, esse esforço pode ser também seguido se- gundo um princípio antes sistemático do que tópico, tentando-se perceber, aci-
ma de tudo, o alcance analítico dessa noção para a empreitada hermenêutica que Freyre se propõe. Estou convencido de que a análise desse conceito pode ser de alguma ajuda para a compreensão da ambigüidade ou imprecisão talvez mais importante no conceito de patriarcalismo de Gilberto Freyre: a consideração simultânea de distância e segregação com proximidade e intimidade.
O final do primeiro capítulo de Casa-grande e senzala fornece uma
interessante chave explicativa, social-psicológica, do patriarcalismo. Este capí- tulo é um esforço de síntese, que abrange o período de formação e consolidação do patriarcalismo familiar brasileiro que constitui o período histórico analisado no livro. De certa forma, Gilberto retira todas as conseqüências do fato de que a família é a unidade básica, dada a distância do estado português, e de suas instituições, da formação brasileira, e interpreta o drama social da época sob a égide de um conceito psico-analítico: o de sado-masoquismo3.
Na construção desse conceito, Freyre se concentra em condiciona- mentos estritamente macro-sociológicos, semelhantes àqueles que guiariam a reflexão de Norbert Elias (apenas seis anos mais tarde) acerca do caso euro- peu na passagem da baixa à alta idade média. No contexto da teoria sociológi- ca desenvolvida por Norbert Elias a partir do seu estudo clássico sobre o pro- cesso civilizador do ocidente (cf. Elias, 1976), interessa a esse autor demons- trar a interdependência entre a forma peculiar de organização social e a forma correspondentemente específica de economia emocional e de relações intersubjetivas que se estabelecem em dada sociedade.
Apenas na passagem da baixa à alta idade média, ou melhor, na pas- sagem da sociedade de cavaleiros guerreiros para a sociedade incipientemente cortesã, temos a ver com uma primeira forma de regulação externa significativa4 da conduta, ainda que estejamos muito longe do tipo de regulação interna exigida por uma sociedade industrial democrática moderna. Aforma social anterior, no entanto, a sociedade guerreira medieval, como descrita por Elias, é em muitos aspectos semelhante à brasileira colonial como vista por Gilberto Freyre.
Antes de tudo, pelo caráter autárquico do domínio senhorial condici- onado pela ausência de instituições acima do senhor territorial imediato. Uma tal organização societária, especialmente quando o domínio da classe dominan- te é exercido pela via direta da violência armada (como era o caso nos dois tipos de sociedade), não propicia a constituição de freios sociais ou individuais aos desejos primários de sexo, agressividade, concupiscência ou avidez. As emo- ções são vividas em sua reações extremas, são expressas diretamente, e a convi- vência de emoções contrárias em curto intervalo de tempo é um fato natural.
Na dimensão social, as rivalidades entre vizinhos tomam por com- pleto também todos os seres que se identificam em linha vertical com os res- pectivos senhores. Elias relata, nesse sentido, a espessa rede de intrigas, inve- jas, ódios e afetos contraditórios que é congênito a esse tipo de organização social (cf. Elias, 1976, p. 278). O “excesso” de que nos fala Araújo é um atributo desse tipo de sociedade portanto e não só da brasileira colonial.
No caso da sociedade colonial brasileira, o isolamento social era ainda maior pela ausência das relações de vassalagem, as quais, ao menos em

  1. Para Freud, tanto o sa- dismo quanto o maso- quismo são compo- nentes de toda relação sexual “normal” des- de que permaneçam como componentes subsidiários. É apenas quando o infligir ou receber a dor transfor- ma-se em componen- te principal, ou seja, passa a ser o objetivo mesmo da relação, que temos o papel determinante do com- ponente patológico.
  2. Para Elias, um “ponto zero”, um início abso- luto, nesse tema, não existe (cf. Elias, 1976, Vol. I, p. 75).
    tempo de guerra, exigiam prestação de serviços e, portanto, a manutenção de um mínimo de disciplina necessário à empresa militar. Estamos lidando, no caso brasileiro, na verdade, com um conceito limite de sociedade, onde a au- sência de instituições intermediárias faz com que o elemento familístico seja seu componente principal. Daí que o drama específico dessa forma societária possa ser descrito a partir de categorias social-psicológicas cuja gênese apon- ta para as relações sociais ditas primárias.
    É precisamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente sado-masoquista, no sentido de uma patologia social específica, onde a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer transforma-se em objetivo máximo das relações interpessoais, que Gilberto Freyre interpreta a semente essencial da formação brasileira. Freyre percebe, claramente, que a di- reção dos impulsos agressivos e sexuais primários depende “em grande parte de oportunidade ou chance, isto é, de influências externas sociais. Mais do que predisposição ou de perversão inata” (Freyre, 1957, p. 59).
    “A verdade, porém, é que nós é que fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de família; e muleques e mulatas o elemento passivo. Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações de sexo e de classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas rela- ções o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um Deus todo poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva a exagerada tendência para o sadismo característica do brasileiro, nascido e criado em casa grande, principalmente em engenho; e a que insistente- mente temos aludido neste ensaio.
    Imagine-se um país com os meninos armados de faca de ponta! Pois foi assim o Brasil do tempo da escra- vidão” (Freyre, 1957, p. 361).
    Ou ainda, ao discorrer sobre a permanência dessa “semente” de
    sociabilidade nacional, mesmo depois de abolida a escravatura:
    “Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo depois de nascido e criado depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Braz Cubas na malvadez e no gosto de judiar com negros. Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo o menino brasileiro atingido pela influência do siste- ma escravocrata” (Freyre, 1957, p. 354).
    E ainda uma última citação, para não abusar da paciência do leitor, esta de Machado de Assis, usado aqui por Freyre de modo a esclarecer de que maneira os valores do sado-masoquismo social se transmitia (se transmite?) de pai para filho pelos mecanismos sutis da “educação”.
    “... um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que estava fa- zendo, e, não contente com o malefício, deitei um pu- nhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessu- ra, fui dizer a minha mãe que a escrava é que estraga- ra o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um muleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava- lhe mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – al- gumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer pala- vra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia – cala a boca, besta!”- esconder os cha- péus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas gra- ves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscão nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito ro- busto, porque meu pai tinha-me em grande admira- ção; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fa- zia-o por simples formalidade: em particular dava- me beijos” (Freyre, 1957, p. 354).
    A explicação sociológica para a origem desse “pecado original” da formação social brasileira, para Gilberto Freyre, exige a consideração da ne- cessidade objetiva de um pequeno país como Portugal solucionar o problema de como colonizar terras gigantescas: pela delegação da tarefa a particulares, antes estimulando do que coibindo o privatismo e a ânsia de posse. Para Gil- berto, é de fundamental importância para a compreensão da singularidade cultural brasileira a influência continuada e marcante dessa semente original.
    De forma distinta à dos teóricos da primeira fase da Escola de Frank- furt5, os quais, também na mesma década de trinta, procuravam, com a ajuda do mesmo conceito, explicar a ascensão do nazismo partindo de um quadro categorial que pressupunha uma rígida estrutura hierárquica pré-existente, onde a obedi- ência acrítica em relação aos estratos superiores possuía uma conexão estrutu- ral com o despotismo em relação aos grupos mais passíveis de estigmatização, Gilberto Freyre, ao contrário, enfatiza o elemento personalista.
    É que patriarcalismo para ele tem a ver com o fato de que não existem limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos. Não existe justiça superior a ele, como em Portugal era o caso da justiça da Igreja que decidia em última instância querelas seculares, não existia também poder policial indepen- dente que lhe pudesse exigir cumprimentos de contrato, como no caso das dívi- das impagáveis de que fala Freyre, não existia ainda, last but not least, poder moral independente posto que a capela era uma mera extensão da casa-grande.
    Sem dúvida a sociedade cultural e racialmente híbrida de que nos

  3. Ver especialmente a contribuição de Erich Fromm, no contexto dos estudos realiza- dos na década de 30 (Fromm, 1987).
    fala Gilberto não significa de modo algum igualdade entre as culturas e raças. Houve domínio e subordinação sistemática, melhor, ou pior no caso, houve perversão do domínio no conceito limite do sadismo. Nada mais longe de um conceito idílico ou róseo de sociedade. Foi sádica a relação do homem portu- guês com as mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas próprias mulheres brancas, as bonecas para reprodução e sexo unilateral de que nos fala Gilberto (Freyre, 1957, p. 60, 326 e 332). Era sádica, final- mente, a relação do senhor com os próprios filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam depois dos escravos (cf. Freyre, 1990, p. 68 e 71).
    O senhor de terras e escravos era um hiperindivíduo, não o super- homem futurista nietzscheano que obedece aos próprios valores que cria, mas o super-homem do passado, o bárbaro sem qualquer noção internalizada de limites em relação aos seus impulsos primários.
    Se as condições socioeconômicas específicas ajudam a compreen-
    der o caráter despótico e segregador do patriarcalismo, o que dizer do elemen- to de “proximidade”? Em parte, o próprio conceito de sado-masoquismo im- plica “proximidade” e alguma forma de “intimidade”. Intimidade do corpo e distância do espírito, sem dúvida, mas de qualquer modo “proximidade”. E, efetivamente, grande parte da relação entre senhores brancos e escravos ne- gros, como vimos acima, se realizava sob essa forma de contato “íntimo”. No entanto, Freyre refere-se, simultaneamente, a uma proximidade “confrater- nizadora” entre portadores de culturas dominantes e dominadas.
    A extensão da família poligâmica, de origem moura, entra no raciocí- nio do autor, creio eu, precisamente para explicar esse outro tipo de “comunica- ção social” entre desiguais. É aqui que se forja a “pré-história” do mestiço, especialmente do mulato brasileiro, tema que será um dos fios condutores da narrativa Freyriana em Sobrados e mucambos. Para Freyre, o tema da ascensão social do mulato seria tema para ser guardado para ser discutido mais tarde: em outro livro (cf. Freyre, 1957, p. 396), que tratasse de outro período histórico de nossa formação, que viria a ser precisamente Sobrados e mucambos. Mas já em Casa-grande e senzala, encontramos a menção das enormes famílias polígamas formadas também por filhos naturais e ilegítimos, os quais, não sendo nem se- nhores nem escravos, seriam já uma proto-classe média naquela sociedade tão radicalmente dividida em pólos antagônicos.
    Como a participação no manto protetor paterno depende da discri- ção e arbítrio deste último, todas as modalidades de “protetorado pessoal” são possíveis. O leque de possibilidades vai desde o reconhecimento privile- giado de filhos ilegítimos ou naturais em desfavor dos filhos legítimos, como nos exemplifica Freyre em numerosos casos de divisão de herança, até a total negação da responsabilidade paterna nos casos dos pais que vendiam os fi- lhos ilegítimos. A proteção patriarcal é, portanto, pessoalíssima, sendo uma extensão da vontade e das inclinações emocionais do patriarca.
    Interessante é o passo logicamente imediatamente posterior, ou seja,
    a transformação da dependência pessoal em relação ao patriarca em “familismo”. Como sistema, o familismo tende a instaurar alguma forma de
    bilateralidade, ainda que incipiente e instável, entre favor e proteção, não só entre o pai e seus dependentes, mas também entre famílias diferentes entre si, criando um sistema complexo de alianças e rivalidades. No tipo de sociedade analisado em Casa-grande e senzala, o patriarcalismo familial se apresenta em forma praticamente pura, com o vértice da hierarquia social ocupado pela figura do patriarca. A especificidade do caso brasileiro sendo representada pela possibilidade (influência maometana para Freyre), sempre incerta mas real, de identificação do patriarca com seus filhos ilegítimos ou naturais com escravas ou nativas. A ênfase norte-americana na pureza da origem, por exem- plo, retirava de plano essa possibilidade.
    No entanto, o peso do elemento “tradicional”, ou seja, o conjunto de regras e costumes que com o decorrer do tempo vão se consolidando em uma espécie de direito consuetudinário regulando as relações de dependência, como nos lembra Max Weber no seu estudo acerca do patriarcalismo, e que serve de limitação ao arbítrio do patriarca, parece ter sido, no caso brasileiro, reduzido ao mínimo. Daí a ênfase no elemento sado-masoquista em Gilberto Freyre. O mai- or isolamento e conseqüente aumento do componente autárquico de cada siste- ma “casa-grande e senzala” pode aqui ter sido o elemento principal. A ausência de limitações externas de qualquer tipo engendra relações sociais onde as incli- nações emotivas da pessoa do patriarca jogam o papel principal.
    Este ponto não me parece um aspecto isolado ou pitoresco da refle- xão gilbertiana. Ao contrário, ele dá conta da dinâmica dos princípios estruturantes que dão compreensibilidade ao seu conceito de patriarcalismo e, portanto, a toda a empresa gilbertiana. Afinal é o sadismo transformado em mandonismo, como Freyre irá analisar em Sobrados e mucambos, que sai da esfera privada e invade a esfera pública inaugurando uma dialética profunda- mente brasileira de lidar com as noções de público e de privado.
    A conseqüência política e social dessas tiranias privadas, quando se transmitem da esfera da família e da atividade sexual para a esfera públi- ca das relações políticas e sociais, se torna evidente na dialética de mando- nismo e autoritarismo de um lado, no lado das elites mais precisamente, e no populismo e messianismo das massas por outro. Dialética essa que iria, mais tarde, assumir formas múltiplas e mais concretas nas oposições entre dou- tores e analfabetos, grupos e classes mais europeizadas e as massas ameríndia e africana e assim por diante.
    Do ponto de vista do patriarca existe, também, uma série de moti- vos “racionais” para aumentar na maior medida possível seu raio de influên- cia por meio da família poligâmica. Existe toda uma gama de funções de “con- fiança”, no controle do trabalho e caça de escravos fugidos, além de serviços “militares” em brigas por limites de terra, etc., que seriam melhor exercidas por membros da “família ampliada” do patriarca. E aqui já temos uma primei- ra versão da ambígua “confraternização” entre raças e culturas distintas, que a família ampliada patriarcal ensejava. Enquanto esse tipo de serviço de con- trole e guarda era exercido nos EUA exclusivamente por brancos, no Brasil havia predomínio de mestiços (cf. Degler, 1971). Nota-se, desde aí, a ambi-
    güidade entre possibilidade de ascensão social para os mestiços no familismo patriarcal em troca de identificação com os valores e interesses do opressor.
    Além dos motivos econômicos e políticos que favoreciam o familismo patriarcal rural brasileiro, tínhamos também uma interessante for- ma religiosa também familial. O componente mágico, da proximidade entre o sagrado e o profano, constitutivo de toda espécie de catolicismo, foi levado aqui a seu extremo. Havia impressionante familiaridade entre os santos e os homens, cumprindo àqueles, inclusive, funções práticas dentro da ordem do- méstica e familiar. Nesse contexto, mais importante ainda é que o culto aos santos se confundia também com o culto aos antepassados, conferindo ao “familismo” como sistema uma base simbólica própria.
    A família era o mundo e, até, em grande medida, portanto, o além-
    mundo. Além da base econômica e política “material”, o catolicismo “familial” (cf. Freyre, 1957, p. 34, 153, 222 e 223) lançava os fundamentos de uma base imaterial e simbólica referida às suas próprias necessidades de interpretar o mundo a partir de seu ponto de vista tópico e local. Acredito que o patriarcalismo familial rural e escravocrata para Freyre envolvia a definição de uma instituição total, no sentido de um conjunto articulado onde as diver- sas necessidades ou dimensões da vida social encontravam uma referência complementar e interdependente.
    O componente sado-masoquista era constitutivo na medida que in- clinações pessoais do patriarca (ou de seus representantes), com um mínimo de limitações externas materiais ou simbólicas, decidiam em última instância sobre a amplitude do núcleo familiar e como e a quem e em que proporção seria distribuído seu favor e proteção. O componente de “proximidade” social entre desiguais que Freyre enfatiza ao lado do componente violento e segregador é, nesse sentido, instável, imprevisível e particularista. Qualquer efeito dura- douro desse elemento integrativo exige a consideração de outras variáveis sociais inexistentes no sistema “casa-grande e senzala”.

    Sobrados e mucambos e a singularidade cultural brasileira

    Esse tema nos leva a consideração do argumento Freyriano em sua obra prima sociológica: Sobrados e mucambos. Toda a questão do familismo se complexifica enormemente emSobrados e mucambos, ou seja, na passa- gem do patriarcalismo rural para o urbano. A decadência do patriarcado rural brasileiro está ligado diretamente à ascendência da cultura citadina no Brasil. Esse processo, que a vinda da família real portuguesa ao Brasil veio consoli- dar, já estava prenunciado na descoberta das minas, na presença de algumas cidades coloniais de expressão, na necessidade de maior vigilância sobre a riqueza recém-descoberta e no maior controle, a partir de então, sobre o familismo e mandonismo privado. Exemplo típico e sintomático da mudança do poder do campo para as cidades é o caso das dívidas dos patriarcas rurais, antes incobráveis, e a partir de então sendo pagas sob força policial. Tão im- portante quanto a mudança do centro economicamente dinâmico foi a trans-
    formação social de largas proporções implicando novos hábitos, novos pa- péis sociais, novas profissões, nova hierarquia social.
    Fundamental para a constituição desse quadro de renovação é que as mudanças políticas, consubstanciadas na nova forma do Estado, e as mu- danças econômicas, materializadas na introdução da máquina e na constitui- ção de um incipiente mercado capitalista, foram acompanhadas também de mudanças ideológicas e morais importantes. Com a maior urbanização, a hie- rarquia social passa a ser marcada pela oposição entre valores europeus bur- gueses e os valores anti-europeus do interior, marcando uma antinomia valorativa no país com repercussões que nos atingem ainda hoje.
    O familismo do patriarcalismo rural debate-se, pela primeira, com va- lores universalizantes. Esses valores universais e idéias burguesas entram no Bra- sil do século XIX do mesmo modo como se haviam se propagado na Europa do século anterior: na esteira da troca de mercadorias6. Esse ponto é absolutamente fundamental para uma adequada compreensão de todas as conseqüências do argu- mento de Gilberto Freyre nesse livro original e importante. A crítica geralmente releva o aspecto da mudança comportamental da influência europeizante (não ibé- rica e até antiibérica) no sentido de apontar para as novas modas de vestir, de falar, de comportamento público, etc. É como se os brasileiros tivessem passado a con- sumir pão e cerveja como os ingleses, consumir a alta costura de Paris e “civilizar- se” em termos de maneiras e comportamento observável.
    Esse novo comportamento é visto, quase sempre, como possuindo alguma dose de afetação e superficialidade conferindo substância para a ex- pressão, ainda hoje muito corrente no Brasil para designar comportamentos exteriores, superficiais, para “causar impressão”, que é o dito popular “para inglês ver”. Essa leitura do processo de modernização brasileiro como um processo inautêntico, tendo algo de epidérmico e pouco profundo, é certamen- te uma das nossas “sociologias oficiais”. Ela está na base da teorização de um Roberto Schwartz, acerca da sociedade do “favor” e onde as “idéias estão fora de lugar”, argumento defendido no contexto da sua interpretação de Ma- chado de Assis. As idéias fora de lugar, no caso, são idéias liberais numa sociedade ainda escravocrata7.
    Em Sobrados e mucambos Gilberto Freyre percebe a “reeuro- peização” do Brasil do séc. XIX, como um processo que tinha certamente elementos meramente imitativos do tipo para “inglês ver”, elementos esses aliás típicos em qualquer sociedade em processo de transição. Fundamental, no entanto, é que existiam também elementos importantes de real assimilação e aprendizado cultural. Mais importante ainda é a construção, nesse período, de instituições fundamentais, como um estado e mercado incipientes, base sobre a qual poder-se-ia desenvolver-se, em bases autônomas, os novos valo- res universalistas e individualistas.
    O embate valorativo entre os dois sistemas é a marca do Brasil mo- derno, cuja genealogia Freyre traça em Sobrados e mucambos com uma maestria exemplar. Nesse novo contexto urbano o patriarca deixa de ser referência abso- luta. Ele próprio tem que se curvar a um sistema de valores com regras próprias

  4. Esse processo, no caso europeu, é analisado admiravelmente por Habermas (1975).
  5. A teoria das “idéias fora do lugar” guarda
    sua plausibilidade,
    certamente, apenas
    num registro sincrô- nico. A partir de uma ótica diacrônica, perce- bemos que essas idéias seriam melhor desig- nadas como “à procu- ra de um lugar”, o qual, aliás, logo encontraram sendo o individualis- mo, e por conseqüência o liberalismo, um com- ponente constitutivo da realidade brasileira desde então.
    e aplicável a todos inclusive a antiga elite social. O sistema social passa a ser regido por um código valorativo crescentemente impessoal e abstrato. A opres- são tende a ser exercida agora cada vez menos por senhores contra escravos, e cada vez mais por portadores de valores europeus – sejam esses efetivamente assimilados ou simplesmente imitados – contra pobres, africanos e índios.
    A época de transição do poder político, econômico e cultural do cam-
    po para a cidade foi também, em vários sentidos, a época do campo na cidade. De início, o privatismo e o personalismo rural foi transposto tal qual era exerci- do no campo para a cidade. A metáfora da Casa e da Rua em Gilberto assim o atesta. O sobrado, a casa do senhor rural na cidade, é uma espécie de prolonga- mento material da personalidade do senhor. Sua relação com a rua, essa espécie arquetípica e primitiva de espaço público, é de desprezo, a rua é o lixo da casa, representa o perigo, o escuro, era simplesmente a não-casa, uma ausência. O sado-masoquismo social muda de “habitação”. Seu conteúdo, no entanto, aqui- lo que o determina como conceito para Gilberto Freyre, ou seja, o seu visceral não reconhecimento da alteridade, permanece.
    A passagem do sistema “casa-grande e senzala” para o sistema “so- brado e mocambo”, fragmenta, estilhaça em mil pedaços uma unidade antes orgânica, antagonismos em equilíbrio, como prefere Gilberto. Esses fragmen- tos espalham-se agora por toda a parte, completando-se mal e acentuando conflitos e oposições. Da Casa-grande e senzala, depois Sobrados e mucambos, e, talvez, hoje em dia, bairros burgueses e favelas, as acomoda- ções e complementaridades ficam cada vez mais raras. De início, a cidade não representou mais do que o prolongamento da desbragada incúria dos interes- ses públicos em favor dos particulares. O abastecimento de víveres, por exem- plo, foi um problema especialmente delicado, sendo permitido, inclusive, o controle abusivo dos proprietários até sobre as praias e os viveiros de peixes que nelas se encontravam, sendo estes vendidos depois a preços oligopolísticos (cf. Freyre, 1990, p. 171-177).
    Desse modo, a urbanização representou uma piora nas condições de vida dos negros livres e de muitos mestiços pobres das cidades. O nível de vida baixou, a comida ficou pior e a casa também. Seu abandono os fez, então perigosos, criminosos, “capoeiras”, etc. Os sobrados senhoris, também ne- nhuma obra-prima em termos de condições de moradia, por serem escuras e anti-higiênicas, tornaram-se com o tempo prisões defensivas do perigo da rua, dos moleques, dos capoeiras, etc.
    No entanto, a urbanização também representou uma mudança lenta mas fundamental na forma do exercício do poder patriarcal: ele deixa de ser familiar e abstrai-se da figura do patriarca passando a assumir formas impes- soais. Uma dessas formas impessoais é a estatal que passa, por meio da figura do imperador, a representar uma espécie de pai de todos, especialmente dos mais ricos e dos enriquecidos na cidade, como os comerciantes e financistas. O estado, ao mesmo tempo, mina o poder pessoal pelo alto, penetrando na própria casa do senhor e lhe roubando os filhos e tranformando-os em seus rivais. É que as novas necessidades estatais por burocratas, juízes, fiscais,
    juristas, etc., todas indispensáveis para as novas funções do estado, podem ser melhor exercidas pelo conhecimento que os jovens adquirem na escola, especialmente se essa fosse européia, o que lhes conferia ainda mais prestígio.
    Com isso, o velho conhecimento baseado na experiência, típico das gerações mais velhas, foi rapidamente desvalorizado, num processo que, pelo seu exagero, é típico de épocas de transição como aquela. D. Pedro II é uma figura emblemática nesse processo. Sendo ele próprio um imperador jovem, cercou-se de seus iguais, ajudando a criar o que Nabuco chamaria de “neocracia” (cf. Freyre, 1990, p. 88).
    Também a relação entre os sexos mudou. A urbanização mitiga o excesso de arbítrio do patriarca ao retirar as pré-condições sob a influência das quais ele exercia seu poder ilimitado. O médico de família, por exemplo, insere no lar doméstico uma influência incontrolável pelo patriarca. É ele que irá substituir o confessor. O teatro, o baile de máscaras, as novas modas de vestir e os romances se tornam mais importantes que a Igreja. Um novo mun- do se abre para as mulheres, apesar do sexismo ter sido, para Gilberto, o nosso preconceito mais persistente.
    De qualquer modo, as mudanças acima representam transforma-
    ções importantes porém limitadas da autoridade patriarcal. Ele é obrigado a limitar-se na sua própria casa, mas a real mudança estrutural e “democrática” ainda estava por vir. Em Sobrados e mucambos, essa mudança recebe, como vimos, o nome de reeuropeização, ou até, dado o caráter difusamente oriental da sociedade colonial brasileira, de europeização do Brasil.
    Impacto verdadeiramente democratizante parece ter sido o advento mais ou menos simultâneo do “mercado”, e da constituição de um “aparelho estatal autônomo”, com todas as suas conseqüências sociais e culturais. A reeuropeização teve um caráter de reconquista, no sentido da revalorização de elementos ocidentais e individualistas em nossa cultura através da influência de uma Europa, agora já francamente burguesa, nos exemplos da França, Ale- manha, Itália, e, especialmente, da grande potência imperial e industrial da época e terra natal do individualismo protestante, a Inglaterra.
    Tal processo realizou-se como uma grande revolução de cima para baixo envolvendo todos os estratos sociais, mudando a posição e o prestígio relativo de cada um desses grupos e acrescentando novos elementos de dife- renciação. São esses novos valores burgueses e individualistas que irão se tornar o núcleo da idéia de “modernidade” enquanto princípio ideologicamen- te hegemônico da sociedade brasileira a partir de então. No estilo de vida, e aí Gilberto chama atenção para a influência decisiva dos interesses comerciais e industriais do imperialismo inglês, mudou-se hábitos, a arquitetura das casas, o jeito de vestir, as cores da moda, algumas vezes com o exagero do uso de tecidos grossos e impróprios ao clima tropical. Bebia-se agora cerveja e co- mia-se pão como um inglês, e tudo que era português ou oriental transfor- mou-se em sinal de mau gosto (cf. Freyre, 1990, p. 336). O caráter absoluto dessas novas distinções tornou o brasileiro de então presa fácil da esperteza, especialmente francesa no relato de Gilberto, de vender gato por lebre.
    Para além das mudanças econômicas, houve as culturais e políticas, com o advento das novas idéias liberais e individualistas, que logo conquista- ram setores da imprensa e as tribunas parlamentares. No entanto, nenhuma des- sas mudanças importantes teve o impacto da entrada em cena no nosso país do elemento burguês democratizante por excelência: o conhecimento e, com ele, a valorização do talento individual, que tanto o novo mercado para artífices especializados, quanto as novas funções estatais exigiam.
    No âmbito do mercado, fundamental foi a introdução da máquina, a qual, como de resto sabia Karl Marx, não é mais do que conhecimento mate- rializado. Gilberto está perfeitamente consciente da enorme repercussão so- cial dessa inovação técnica (cf. Freyre, 1990, p. 489-508). É que a máquina veio desvalorizar a base mesma da sociedade patriarcal diminuindo tanto a importância relativa do senhor quanto do escravo, agindo como principal ele- mento dissolvente da sociedade e cultura patriarcal.
    Ao desvalorizar as duas posições sociais polares que marcam a so- ciedade escravocrata, ela vinha valorizar, por conta disso, precisamente aque- le elemento médio, que sempre havia composto uma espécie de estrato inter- mediário na antiga sociedade, onde, não sendo nem senhor nem exatamente um escravo, era um “deslocado”, um sem-lugar portanto.
    Apesar do elemento “democrático” ter sido “atualizado” e possibi-
    litado pelos novos valores advindos do processo de reeuropeização, ou seja, de “fora para dentro”, sua assimilação só é possível de forma rápida e eficaz, porque o próprio sistema já havia gestado, desde sempre, um elemento de “proximidade” ao lado do despótico e segregador, cujas origens estão tam- bém nas formas de convivência do patriarcalismo, baseado na escravidão de tipo árabe ou mouro, que é precisamente aquilo que Gilberto chamará um tanto vagamente de seu elemento “democrático”.
    A gênese social desse elemento remonta, portanto, àquela “intimi- dade sexual e cultural” entre as diversas raças e culturas, especialmente a portuguesa e a africana, que predominava no sistema “casa-grande e senza- la”. E aqui encontramos uma primeira forma de lugar social para aquele ele- mento gestado na família patriarcal ampliada e poligâmica. Será, precisamen- te, a partir dessas modificações sociais estruturais que teremos a construção da categoria social do “mulato”, ou da “válvula de escape do mulato”, como prefere Carl Degler (1971, p. 205-265).
    O enorme número de mestiços e filhos ilegítimos de senhores e pa- dres, indivíduos de status intermediários, quase sempre assumindo as funções de escravo doméstico ou agregado da família, de qualquer modo quase sempre mais ou menos deslocados no mundo de posições polares como são as de senhor e escravo, encontram, agora, uma possibilidade nova de ascensão e mobilidade social. A enorme mudança social implicada pela mudança do campo para a cidade abre, portanto, oportunidades antes imprevistas para esse estrato.
    Na nova sociedade nascente são as antigas posições polares que perdem peso relativo, e esses indivíduos, quase sempre mestiços, sem outra fonte de riqueza que não sua habilidade e disposição de aprender os novos
    ofícios mecânicos, quase sempre como aprendizes de mestres e artesãos euro- peus, passaram a formar o elemento mais tipicamente burguês daquela socie- dade em mudança: o elemento médio, sob a forma de uma meia-raça.
    Ao invés apenas dos apanágios exteriores de raça, dentro da com- plexa ritualística que, como conseqüência da maior proximidade social entre os diversos estratos sociais que a urbanização enseja, instaura-se no país nes- sa época, como a forma da vestimenta, a comida, o modo de transporte, o jeito de andar, o tipo de sapato, etc., temos, a partir de então, um elemento diferenciador novo. Esse elemento é revolucionário no melhor sentido burgu- ês do termo, posto que “interno” e não externo, sendo antes uma substância e um conteúdo do que uma aparência, mais ligados portanto a qualidades e talentos pessoais que a privilégios herdados.
    O conhecimento, a perícia, passa a ser o novo elemento que passa
    a contar de forma crescente na definição da nova hierarquia social. Nesse sentido, servindo de base para a introdução de um elemento efetivamente democratizante, pondo de ponta cabeça e redefinido revolucionariamente a ques- tão do status inicial para as oportunidades de mobilidade social na nova socie- dade. Uma “democratização” que tinha como suporte o mulato habilidoso. Do lado do mercado, essas transformações se operam segundo uma lógica de “bai- xo para cima”, ou seja, pela ascensão social de elementos novos em funções manuais, as quais, sendo o interdito social absoluto em todas as sociedades escravocratas, não eram percebidas pelos brancos como dignificantes. Com o enriquecimento paulatino, no entanto, de mulatos aprendizes e artífices e de imigrantes, nessa época especialmente portugueses, como caixeiros e comerci- antes as rivalidades e preconceitos tenderam a aumentar proporcionalmente.
    O outro caminho de ascensão social do mulato, do mulato bacharel para Gilberto, de cultura superior e portanto mais aristocrático do que o mula- to artesão, é o símbolo de uma modernização que se operou não apenas de “fora para dentro” e de “baixo para cima”, mas também de “cima para bai- xo”. O mestiço bacharel constitui uma nobreza associada às funções do esta- do e de um tipo de cultura mais retórico e humanista do que a cultura mais técnica e pragmática do mestiço artesão. O estado, portanto, e não apenas o mercado como semente de uma incipiente sociedade civil, foi também um locusimportante dessa nova modernidade híbrida, já burguesa, mais ainda patriarcal, se bem que de um patriarcalismo já sublimado e mais abstrato e impessoal na figura do imperador pai de todos, e já mais afastado portanto do patriarcalismo familístico todo dominante na colônia.
    O processo de incorporação do mestiço à nova sociedade foi paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro. Tanto o escravo quanto o pária dos mocambos nas cidades era o elemento em relação ao qual todos queriam se distinguir. A enorme importância da vestimenta nessa época servia agora para fins de diferenciação social que antes sequer necessitavam de externalização. O elemento capaz de ascensão, portanto, era o mulato ou o mes- tiço em geral, o semi-integrado, o agregado e todas as figuras intermediárias da sociedade. A própria ênfase na distinção do traje ou a violência das humilha-

  6. Antônio Sérgio Gui- marães me chamou atenção para esse as- pecto fundamental do raciocínio Freyriano.
    ções públicas contra os mestiços que usavam casaca ou luva já demonstram, como uma conseqüência mesma do acirramento das contradições a partir da competição com indivíduos brancos antes seguros de sua posição (cf. Freyre, 1990, p. 399), a possibilidade real de ascensão e a contradição entre elementos constitutivos do sistema: um segregador e outro “democratizante”.
    Fundamental para a compreensão do argumento de Gilberto, no en-
    tanto, vale a pena repetir, é que o componente externo, burguês, da revalorização do trabalho manual e da habilidade pessoal, produto do processo de reeuropeização, é apenas parte do processo de constituição de uma sociedade mestiça e híbrida. Tão importante quanto a entrada desse novo elemento é o fato de que a tendência segregacionista do sistema teve desde sempre a compe- tição de um elemento de proximidade, acomodação e compromisso como um traço constitutivo complementar, também ele intrínseco ao sistema valorativo do patriarcalismo de inspiração polígama e árabe. Sendo portanto duas tendên- cias, uma segregadora e despótica e outra “democrática”, dentro do mesmo sis- tema, em complexa relação de complementaridade e oposição.
    As chances de ascensão social do mestiço já estavam assim prefiguradas pelo costume de dividir as heranças entre filhos ilegítimos, ou seja, mestiços de alguns senhores, problema que deve ter atingido proporções razoáveis para estimular escritos e reclamações contrárias à prática por ser supostamente fragmentadora da riqueza acumulada, como nos conta Gilberto em Casa-grande e senzala. Também pela proximidade e intimidade afetiva entre o senhor e suas concubinas, assim como pelos sentimentos filiais entre filhos de senhores e amas negras, em resumo, por todas as formas de extensão em linha vertical de vínculos afetivos e privilégios familiares e de classe a agregados, no sentido amplo do termo, da família patriarcal.
    É portanto apenas com a consideração dos efeitos da “escravidão moura” expostos em Casa-grande e senzala no contexto de modernização e europeização do século XIX que podemos compreender o significado social do elemento de “proximidade” da sociedade escravocrata brasileira. Freyre perce- bia que os lugares sociais do patriarcalismo sempre foram funcionais e não essencialistas. Isso permitia que a figura masculina do patriarca pudesse ser exercida por uma mulher, a qual obviamente continua biologicamente mulher, mas era sociologicamente ou funcionalmente homem/patriarca. Assim, do mes- mo modo, os afilhados ou sobrinhos, como eram chamados os filhos ilegítimos de senhores de terra e padres, os quais poderiam tornar-se sociologicamente filhos, herdando a riqueza paterna, ou mesmo o substituindo na atividade pro- dutiva. O mesmo traço sistêmico fazia o biologicamente mulato transformar-se em sociologicamente branco, ou seja, ocupar posições sociais que, num sistema escravocrata, são privilégio de brancos (cf. Freyre, 1990, p. 366).
    Esse traço sistêmico permitiu efetivamente considerável mestiçagem e ascensão social do mestiço no contexto da sociedade “reeuropeizada” do século XIX. A partir disso é que Freyre constrói sua oposição entre “demo- cracia racial” brasileira se contrapondo à democracia “meramente política” americana. Essa contraposição8 nem sempre explícita, mas sempre presente, é
    pensada em termos exclusivos, como se cada tradição cultural predispusesse a cada um desses respectivos caminhos alternativos.
    Se a maior parte da historiografia moderna, especialmente de origem americana, logrou pôr em cheque convincentemente a noção Freyriana, também defendida no clássico de Frank Tannembaum,Slave and citizen (Tannembaum, 1992), acerca de uma maior “benignidade” da escravidão do Brasil colônia com- parativamente à norte-americana, o próprio fato social da mestiçagem e da real ascensão social de mestiços no Brasil do séc. XIX mostra uma diferença insofismável entre as duas sociedades. No Brasil, havia a possibilidade de “nego- ciação” individual da superação da condição de negro ou mestiço, havia a possibi- lidade, inexistente nos EUA da época, do negro ou mestiço “embranquecer”.
    Esse fato se explica talvez, não como imaginava Freyre, a partir de
    uma histórica maior “benignidade” comparativa da escravidão brasileira. Existe uma possibilidade muito maior da possibilidade do “embranquecimento” ter a ver com a configuração valorativa específica do país que estava sendo “europeizado”. Podemos perceber a importância desse aspecto considerando a relação diversa dos Estados Unidos e do Brasil com a questão da modernidade.
    Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos são um dos países que
    nasceram e retiraram sua razão de ser a partir de idéias que vieram a ser co- nhecidas mais tarde como constitutivas para o ideário ocidental. No caso ame- ricano, especialmente as noções de liberdade religiosa, depois expandidas para as esferas da política e da economia, e a noção, de fundo sectário protestante, da responsabilidade individual.
    O caso brasileiro apresenta um desvio importante dessa lógica. A “modernidade” chega ao país de navio como vimos, e põe de ponta cabeça seja no seu aspecto material, seja no seu aspecto simbólico, toda a sociedade vigente. Com relação a esses novos valores que chegam, não havia diferença de fundo entre brancos, mestiços ou negros. Esses valores são estranhos a todos igual- mente e põem, portanto, a questão do status relativo sob novos padrões, como havia percebido Freyre. A própria “elite” do patriarcalismo rural teve que se curvar a mudanças que afetavam sua própria vida cotidiana e doméstica.
    Uma real compreensão da dimensão desse processo exige a crítica do “naturalismo” (cf. Taylor, 1998) da vida cotidiana e de certa ciência social. Va- lores não são “instrumentos” nas mãos da “elite” ou dos indivíduos que estão “à disposição” dos seus fins instrumentais. Valores são construções sociais que possibilitam o “pano de fundo” a partir do qual os indivíduos se compreendem e podem agir em conjunto segundo um quadro de referências comum.
    Quando a modernidade européia chega ao Brasil de “navio”, na esteira da troca de mercadorias, seus valores não são uma mera mercadoria de consumo. Afinal seriam esses valores que iriam presidir a institucionalização incipiente de formas extremamente eficazes de condução da vida cotidiana: o estado e o mercado capitalistas9. Estado e mercado pressupõem uma revolu- ção social, econômica, valorativa e moral de grandes proporções. Os papéis sociais se modificam radicalmente. O que antes era aceito como definindo os papéis sociais de mulher, homem, filho e pai se transformam, como Freyre

  7. “Todos” os grandes clássicos das ciências sociais souberam com- preender a tremenda revolução, em todos os aspectos da existência humana, que a influên- cia dessas instituições acarreta. Desde a abs- tração real do trabalho em Marx, à entroni- zação da razão instru- mental em Max Weber, ou a redefinição da subjetividade em to- das as suas dimensões a partir do impacto da economia monetária em George Simmel, ou ainda a mudança es- trutural nas formas de dominação, especial- mente a constituição do estado moderno com seu monopólio da violência física, e sua influência na “psique” moderna, em Norbert Elias.
    mostra com maestria. A noção de tempo, a condução da vida cotidiana, a economia afetiva necessária para o aprendizado dos novos ofícios e profis- sões é completamente diferente da que imperava anteriormente. O que é tido como bonito, como bom, como legítimo de ser perseguido na vida, a noção de sucesso e de “boa vida” muda radicalmente. Muda, enfim, a configuração valorativa da sociedade como um todo.
    É esse contexto revolucionário, no sentido mais profundo do termo por se referir a mudanças dos “corações e das mentes” das pessoas, mudanças essas amparadas por transformações institucionais que garantiam, através do mecanismo peculiar de prêmios e punições típicos da eficácia institucional, a reprodução e permanência desses mesmos valores novos, que Freyre nos ex- põe com talento singular em Sobrados e mucambos.
    E é também esse novo contexto valorativo que pode nos explicar a nova posição do mestiço nele. Foi nas necessidades abertas por um mercado incipiente, em funções manuais e mecânicas rejeitadas pelos brancos, assim como pelas necessidades de um aparelho estatal em desenvolvimento que mestiços puderam afirmar seu lugar social. Neste último caso, por se tratar de colocações de alta competitividade, disputando posições com os brancos, é que Gilberto fala da “cordialidade” e do sorriso fácil, típico do mulato em ascensão, como a “compensar” o dado negativo da cor. Essa “compensação”, ao mesmo tempo que reafirma o racismo mostra que o empecilho não era absoluto e sim relativo, superável pelo talento individual, ou seja, mostra que havia espaço para formas de reconhecimento social baseadas no desempenho diferencial e não apenas em categorias adscritivas de cor.
    Afinal fazia parte mesmo da flexibilidade do sistema o abandono de características segregadoras a partir da dimensão biológica, tão determinante em outros sistemas com características semelhantes, em favor de uma sobredeterminação sociológica ou funcional. De certo modo, o que era cons- trutivo e funcional para a reprodução do sistema como um todo, governado já agora pela palavra mágica da modernização, era passível de valorização. As- sim a realização diferencial de certos fins e valores considerados de utilidade social inquestionável era mais importante, por exemplo, do que a cor da pele do indivíduo em questão.
    O esforço de assimilação de valores e da tecnologia ocidental por brasileiros é precisamente o ponto em que diferenças de raça e classe sempre foram e são até hoje relativizadas (cf. Costa, no prelo). É o aspecto no qual o ideário de ordem e progresso encontra seu alfa e ômega. Quem quer que con- tribua para esse desiderato maior de modernização é premiado pelo sistema. Em todos os estratos tradicionais da sociedade patriarcal brasileira nenhum tinha relação privilegiada com a modernidade. Eram valores estranhos a todos os quais foram assimilados ou imitados avidamente por um país que antes da europeização mais lembrava um país asiático que americano ocidental.
    Precisamente o contrário ocorreu nos EUA. Como Anthony Marx
    escreve a propósito da rápida conciliação entre brancos após a “guerra civil americana” que selou a retirada dos negros sequer da possibilidade de compe-
    tição com os brancos na dinâmica da economia americana: “Já em Gettysburg, Edward Everett havia se referido à necessidade de ‘reconciliação’ entre nor- tistas e sulistas ‘os quais dividem uma comunidade substancial de origem’. Os negros eram claramente concebidos como não fazendo parte dessa unida- de ancestral” (Marx, 1997, p. 134).
    Essa “comunidade ancestral de origem” tem uma história rica e
    peculiar nos EUA. Ao contrário de outras matrizes do ideário ocidental como a Inglaterra, a França e a Alemanha, nos Estados Unidos a consciência de que se estava realizando uma experiência societária original e única foi absoluta- mente singular. Já o discurso de John Winthrop, o seu A modell of Christian charity (cf. Bellah, 1984, p. 13), tendo como público os primeiros pioneiros, já aponta para um grau de internalização reflexiva do projeto de sociedade que ali nascia que não deve ter tido comparação na história. É essa tradição que Robert Bellah chamou de “religião cívica” americana para se referir à constante reinterpretação do ato fundador da comunidade política como uma missão a ser cumprida coletivamente (cf. Bellah, 1991).
    Para um sociólogo consciente do papel dos valores na definição da especificidade de uma sociedade como Bellah, a ambigüidade que se instaura com o mito americano de “povo escolhido” ajuda tanto a compreender a notá- vel força da idéia associativista americana no sentido intra-comunitário, quanto o exclusivismo, especialmente cultural e étnico, para os “réprobos” extra- comunitários, dos que eram percebidos como não participando desse projeto social (cf. Bellah, 1984, p. 36-61).
    No Brasil do começo ao fim do século XIX, a proporção de mulatos cresceu de 10% para 41% da população total. Isso implica rápida miscigena- ção e casamentos inter-raciais e indica que a mobilidade social desse estrato era mais do que mera fantasia. A partir da segunda metade do séc. XIX a ascensão social de mestiços no Brasil fez, efetivamente, com que tivéssemos mulatos como figuras de proa na literatura, na política, no exército, e atuantes como ministros, embaixadores, e até presidentes da república. Seria certa- mente uma hipótese interessante estudar que tipo de modificações nesse pro- cesso foi causado pela entrada em número significativo, estima-se entre 3 a 5 milhões de pessoas, de europeus a partir do final do século XIX. A chegada dos portadores mesmos – reais ou fictícios – dos valores da modernidade deve ter certamente contribuído para uma modificação decisiva nesse padrão10.
    Para uma sociologia que não se deixe cegar por uma concepção ins- trumentalista dos valores esse tema é fundamental. Ele permite ver que “bran- co” ou “negro” não é uma categoria biológica mas cultural. Essa afirmação parece trivial mas não é. Segui-la às últimas conseqüências significa perceber a temática racial desse período por referência ao processo de “europeização” que tomava o país. Assim, ser considerado “branco” era ser considerado útil ao esforço de modernização do país, daí a possibilidade mesma de se “embranquecer”, fechada em outros sistemas com outras características.
    “Branco” era (e continua sendo) antes um indicador da existência de uma série de atributos morais e culturais do que a cor de uma pele.

  8. Esse tema é um dos fios condutores do livro de George Reid Andrews (cf. Andrews, 1991,
    p. 54-90).

  9. Esse é um ponto cons- pícuo de certa tendên- cia teórica da socio- logia e da filosofia contemporânea, que poderíamos denomi- nar de “teoria do re- conhecimento social”. Axel Honneth procu- rou estabelecer for- mas distintas embora complementares de reconhecimento so- cial. (Honneth, 1992). Outras figuras de des- taque nessa vertente seriam Charles Taylor e Nancy Fraser.
    “Embranquecer” significa, numa sociedade que se “europeizava”, compartilhar os valores dominantes dessa cultura, ser um “suporte” dela. Preconceito, nesse sentido, é a “presunção” de que alguém de origem africana é “primitivo”, “incivilizado”, incapaz de exercer as atividades que se esperava de um membro de uma sociedade que se “civilizava” segundo o padrão europeu e ocidental.
    Antônio Sérgio Guimarães percebe bem a relevância desse aspecto
    para a questão racial quando afirma:
    “No Brasil, o ‘branco’ não se formou pela exclusiva mistura étnica de povos europeus, como ocorreu nos estados Unidos com o ‘caldeirão étnico’; ao contrá- rio, como ‘branco’ contamos aqueles mestiços e mu- latos claros que podem exibir os símbolos dominan- tes da europeidade: formação cristã e domínio das letras” (Guimarães, 1999, p. 47).
    Freyre tem, portanto, razão em apontar uma especificidade brasi- leira na questão racial pelo menos nesse período. Menos pelos efeitos de uma maior “benignidade” da escravidão brasileira, concepção que ele comparti- lhava com Tannembaum, do que pelo contexto peculiar do processo de mo- dernização brasileiro. É precisamente essa certeza que vai fazê-lo pleitear uma opção peculiar na comparação entre os desenvolvimentos brasileiro e ameri- cano. O Brasil teria uma “democracia racial”, enquanto os EUA seriam os campeões da “democracia política”, como duas faces de desenvolvimento possível de sociedades escravocratas.
    Escapava a Gilberto Freyre, no entanto, a íntima vinculação entre “questão racial” e “questão democrática” num país como o Brasil do séc. XIX (e ainda hoje) onde os pobres e excluídos eram negros ou mestiços (livres ou não). Para o “holista” Freyre, para quem a questão principal é o “acolhimen- to” do diferente, dentro de uma hierarquia que provê a todos com um lugar, a possibilidade de ascensão individual de pessoas de cor terminaria por “resol- ver” no Brasil a questão racial como um “caminho alternativo” de resolução da questão democrática.
    Escapava também a Freyre que o princípio da igualdade política e jurídica não é meramente adscrito a uma esfera específica da sociedade e que, em certo sentido, qualquer caminho alternativo que o “contorne” está viciado de nascença. Igualdade não é um mero “direito” que pudesse ser compensado por valores e práticas “benignas” de assimilação e integração. Igualdade é o valor básico da modernidade ocidental, sendo a fonte de dignidade e reconhe- cimento individual em primeira instância. A possibilidade de premiar o de- sempenho diferencial e traçar hierarquias alternativas e independentes da igual- dade político-jurídica existe, e é um ponto importante do debate político con- temporâneo11. Mas este não um caminho “alternativo” à igualdade política mas, ao contrário, a pressupõe.
    O caminho do “embranquecimento” é um caminho viciado porque o branco já é, desde o começo “superior”, ou “mais igual” que o não-branco. Nenhuma possibilidade real de “embranquecimento” elimina essa realidade
    prévia e fundamental. Esse elemento de distinção e poder envolvido na noção de civilização e modernidade ocidental foi percebido por Norbert Elias me- lhor do que qualquer outro. Elias percebe que ser europeu, ser “civilizado” no sentido europeu, tem, antes de qualquer outra, a função de produzir distinção social e, ao “produzir” a distinção, legitimar a superioridade do “portador” dessa cultura seja quem seja, esteja onde estiver (cf. Elias, 1976, p. 1-2).
    No Brasil em vias de se tornar europeizado do séc. XIX, a “posse” real ou fictícia desses novos valores que tomam a nação de assalto vai ser o fundamento da identidade de grupos e classes sociais e a base do processo de separação e estigmatização dos grupos percebidos como não participantes dessa herança. A “ânsia de modernização”, de resto estampada na bandeira da nação nas palavras de ordem de “ordem e progresso”, passa a partir dessa época a dominar a sociedade brasileira como o princípio unificador das dife- renças sociais, o princípio em relação ao qual todas as outras divisões devem ser secundarizadas.
    É em nome dela também que passa a operar a distinção entre os estratos europeizados dos africanos e ameríndios, com toda a sua lista de dis- tinções derivadas tipo doutores/analfabetos, homens de boas maneiras/joão- ninguéns, competentes/incompetentes, etc. A “posse” de valores europeus in- dividualistas vai, dessa forma, legitimar a dominação social de um estrato sobre o outro, vai justificar os privilégios de um sobre o outro, vai calar a consciência da injustiça ao racionalizá-la, e vai permitir a “naturalização” da desigualdade como a percebemos e vivenciamos hoje.
    Esse ponto é fundamental posto que permite a tematização de um outro aspecto que permite ligar a questão da mestiçagem no Brasil à questão democrática enquanto tal. E a obra de Gilberto Freyre, especialmente Sobra- dos e mucambos, quando interpretado segundo a perspectiva que venho ten- tando desenvolver nesse ensaio, pode, talvez, nos ajudar nesse desiderato. Aqui podemos utilizar o conhecimento empírico de Freyre segundo uma perspecti- va normativa estranha a ele. De certo modo, podemos procurar usar Gilberto Freyre contra ele próprio.
    É que se percebermos, como acredito que devamos, a reuropeização do séc. XIX como o nascimento do Brasil moderno, quando a herança patriar- cal colonial é desafiada pelo individualismo burguês e suas instituições, então a estratégia do “embranquecimento” serve não apenas para designar uma for- ma desta sociedade lidar com o tema do racismo. Ela pode ser percebida tam- bém como uma “metáfora” da própria forma da sociedade brasileira lidar com o tema da inclusão política enquanto tal, com o tema da cidadania portanto.
    Assim, a forma “condicionada” implícita no processo de “embran- quecimento”, o desde que “europeizado”, o qual lembra não por acaso e sinto- maticamente o “desde que aceite os valores do pai” condição, como vimos, do sistema mouro de escravidão para a transmissão das características sociais do pai ao filho, que Freyre havia percebido como nossa semente social peculiar mais primordial, se repete até hoje. Do mesmo modo, poderíamos compreender, por exemplo, o tema da “cidadania regulada”, desenvolvida por Wanderley Gui-

  10. DaMatta desenvolve seu argumento com mais clareza no seu, sob vários aspectos genial, Você sabe com quem está falando? (DaMatta, 1981, es-
    pecialmente p. 162-
    169 e 183-189).
  11. A linguagem de sobre
- e sub - cidadãos é de Marcelo Neves (1994).
lherme dos Santos. A cidadania é “regulada” posto que definida nos termos do estado e ligada a um “sistema de estratificação ocupacional”, ou seja, o “desde que” cumprindo as funções tais e tais para a reprodução do sistema como um todo, e não pela validade intrínseca de certos valores políticos fundamentais.
Mais interessante ainda me parece a possibilidade de se poder criti- car a sociologia do “para inglês ver”. A ambigüidade valorativa brasileira não seria, nessa linha de raciocínio, marcada pela dominância de valores pessoais do patriarcalismo personalista que herdamos da colônia. Ao contrário, seria a forma específica de recepção e institucionalização do legado individualista ocidental, como uma variável dependente, condicionada, como nos exemplos tanto do “branqueamento” quanto da “cidadania regulada”, consubstanciados no “desde que” funcional ao sistema como um todo, que podemos apreender uma parcela significativa da nossa singularidade política e social e de nossa forma peculiar de sermos “ocidentais”.
Na visão de um Roberto DaMatta, por exemplo, teríamos a exis- tência de dois sistemas valorativos concorrentes, sendo o elemento individua- lista simultaneamente mais visível e mais superficial, e o elemento personalista simultaneamente menos perceptível (porquanto num contexto individualista ele é tido como ilegítimo) e mais eficaz, posto que na lógica do “você sabe com quem está falando?” seria o discurso personalista e hierarquizador que teria a última palavra, de modo a precisamente poder dirimir em última ins- tância o conflito entre desiguais e restaurar a paz hierárquica12.
É verdade que o discurso moderno do individualismo como moral- mente superior é o único aceito como legítimo. Mas não no sentido de que ele é meramente superficial e encobridor das “reais relações”, da gramática social mais profunda, a qual, efetivamente, regeria o contato social no mundo híbri- do brasileiro. Essa leitura da dualidade valorativa brasileira tem como pressu- posto a idéia de que o individualismo como sistema valorativo não foi efetiva- mente “assimilado”, mas possuiria, antes de tudo, uma dimensão “instrumen- tal”, “ad hoc”, “para inglês ver” no nosso país. Essa não nos parece ser a melhor maneira de perceber a articulação desses dois sistemas valorativos.
Ao contrário, parece ser a assimilação efetiva, conquanto incom-
pleta, pelo estrato dominante e pela sociedade como um todo do ideário oci- dental que permite compreender tanto a enorme força social e arregimentadora desses valores entre os brasileiros, como o fato de que a desigualdade social abismal entre nós seja, em tão grande medida, “justificada” e naturalizada. Teríamos assim uma cultura marcada por uma singularidade perversa: uma ocidentalização com desigualdade. A lógica das esferas jurídica e política ao se referirem a sobre - e sub - cidadãos13, e nunca apenas a “cidadãos” como pressupõe um sistema jurídico autônomo e eficaz, apenas confirma e repro- duz em escala ampliada esse dado valorativo entranhado na sociedade.
Já Gilberto Freyre percebia o processo de “reeuropeização” no Brasil do séc. XIX, processo esse que tinha elementos meramente imitativos do tipo para “inglês ver”, mas que tinha também elementos importantes de real assi- milação e aprendizado cultural, como um processo que marcaria uma oposi-
ção fundamental na sociedade brasileira a partir de então entre o segmento europeizado superior e o elemento não-ocidental, que ele designa vagamente como “oriental” para se referir ao conjunto de influências culturais africanas, árabes, ameríndias, etc., socialmente inferior.
Em Freyre, a lógica da assimilação/imitação dos valores individua- listas ocidentais vai, de certa forma, substituir na nascente sociedade urbana brasileira o princípio personalista hierarquizador operante na sociedade escravocrata colonial. Ao invés da oposição senhor/escravo, passa a ser determinante a filiação do indivíduo ou grupo aos novos valores ocidentalizantes, especialmente do individualismo, como fica claro na nova possibilidade de al- cançar projeção social por meio do conhecimento, como vimos, a forma burgue- sa e individualista por excelência, dada sua independência em relação a critérios adscritivos de estamento e raça e sua determinação interna, envolvendo neces- sariamente os elementos de vontade e responsabilidade individual.
A assimilação dos valores da modernidade individualista ocidental não é, portanto, dominado por valores personalistas como pressupõe a interpre- tação da sociologia de um Brasil meramente ocidentalizado, “para inglês ver”. Ela seria o próprio veículo que preside toda a hierarquia social e suas sub-divi- sões. Nesse novo contexto, a estratificação social vai ser determinada a partir da perspectiva de quem contribui para o progresso social segundo uma hierarquia valorativa cujo “suporte social” são as classes dominantes europeizadas. Estas são, por sua vez, meramente “suporte” de orientações valorativas que as privile- giam na competição social, mas que não são dirigidos por ela segundo um mo- delo intencional e instrumental de lidar com valores.

Recebido para publicação em março/2000

SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre and the singularity of the Brazilian culture. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12(1): 69-100, May 2000.

ABSTRACT: This article intends to emphasize the macro-sociological content of Gilberto Freyre’s work in the 30’s. Instead of the themes classically linked to his work, such as inter-racial mixing and the history of private life, the main point of this paper is different: it aims to reconstruct the clash between the already bourgeois European western values, which take over the country in 1808, and the traditional ones which Freire calls “oriental” to refer to the set of African, Portuguese and rural values of Brazilian Colonial life. In Sobrados e mucambos Gilberto Freyre develops a historiography of the institutionalization of these new westernizing values which go against the prevaling idea of Brazil as still being ruled by personal and semi-traditional values.
UNITERMS:
Brazilian culture, western culture, iberianism, macrosociology, Gilberto Freyre.
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