segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Sexualidade a bordo dos navios durante os séculos XVI-XVII

Sexualidade a bordo dos navios durante os séculos XVI-XVII

Ausentes de terra durante várias semanas ou largos meses, os homens embarcados em navios com diferentes destinos recorriam ao onanismo, à sodomia e, em certos casos, até tinham relações sexuais com mulheres[1]. Contudo, as práticas nem sempre eram consentidas de livre vontade, podendo ser forçadas, até mesmo por corsários e piratas que apresavam navios ou que atacavam povoações costeiras e levavam os seus habitantes.
Mulheres a bordo dos navios
A presença de mulheres a bordo dos navios foi uma realidade durante a expansão marítima portuguesa, destacando-se, nas fontes históricas, o caso das que partiam para a Índia ou que de lá vinham. Todavia, exceptuando em alguns casos, sobretudo quando capitães ou fidalgos importantes recebiam autorização para levaram as suas esposas e filhas, era proibido o embarque de mulheres, pelo que muitas iam sendo embarcadas ilegalmente.
Se para alguns homens a existência de mulheres a bordo não levantava grandes problemas, para outros era muito inconveniente, sendo que a sua presença no seio de uma tripulação exclusivamente masculina poderia ser vista como a causa dos males e das adversidades que surgiam durante as viagens. Entre mulheres de fidalgos, órfãs, mancebas, aventureiras e prostitutas, as que viajavam solteiras estavam associadas, segundo a correspondência dos padres da época, à prostituição a bordo, à origem de distúrbios, à falta de segurança, à destruição de costumes e à indisciplina, pelo que eram sujeitas a castigos ou largadas nalgum local de escala da viagem. Face a essa presença feminina, considerava-se que os homens faziam mal as suas vigias, revelavam atitudes negligentes e descuidavam-se noutros aspectos de segurança, podendo levar a acidentes a bordo ou até a naufrágios.
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Mapa da carreira da Índia. Viagem anual entre Lisboa e os portos da Índia e vice-versa.
Romances, vida sexual e casamentos
Apesar da forte contestação e perseguição a bordo dos navios da carreira da Índia, movida pelos padres às mulheres, chegaram a ocorrer romances e casamentos em pleno mar. Em 1545, um caso vivido na nau Burgalesa terminou em casamento. A história ligou um cavaleiro que se apaixonou pela filha de um outro passageiro ilustre e que pediu a sua mão em casamento. Porém, a celebração teve lugar apenas em Goa. Contrariamente, em 1562 ocorreram dois casamentos numa nau. O primeiro deles teve o consentimento de todos, por não se registar qualquer impedimento, enquanto que o segundo ocorreu clandestinamente, em virtude de o capitão do navio ter proibido tal união, tendo alegado que havia suspeita de “cunhadio”.  É que inicialmente o homem e a mulher haviam dito que viajavam enquanto cunhados, pelo que num momento posterior não conseguiram provar o contrário.
Como se desenrolava a vida sexual a bordo dos navios que partiam para a Índia transportando, por norma, cerca de 500 homens, poucas mulheres e que, em média, demoravam perto de seis meses a finalizar a viagem? Sobre este tema, como seria de esperar, as fontes não são muito expressivas. Todavia, adivinha-se com facilidade, e comprova-se com alguns dados disponíveis, que os mais ousados tentavam toda a sorte de expedientes para se aproximarem das mulheres embarcadas, se bem que às vezes com consequências trágicas ou então simplesmente caricatas.
Vivendo num espaço marcado pela promiscuidade e em que praticamente não havia privacidade, exceptuando no caso daqueles que tinham compartimentos dos navios reservados, é muito provável que tenham sido frequentes as situações de flagrante sexual e consequente aplicação de castigos, podendo mesmo levar à morte, ainda que muitas também devam ter sido abafadas e nem sempre penalizadas. Em todo o caso, no tempo de Afonso de Albuquerque, Rui Dias, português de boa linhagem oriundo de Alenquer, foi apanhado na câmara da nau do governador com uma escrava. O caso ocorreu na Ásia, tendo Rui Dias, ao que parece, sido encontrado em flagrante sexual com essa mulher. Consequentemente, foi condenado ao enforcamento, sendo que nem o apelo de outros portugueses fez Albuquerque recuar.
Olhando para o caso da prostituição a bordo, algo que seria frequente, parece-nos que as mulheres que iam como prostitutas estavam apenas ao alcance de um pequeno grupo de homens onde se incluíam capitães, pilotos, mestres e armadores, a não ser que, por vezes, eles não tivessem conhecimento da sua presença ou permitissem o contacto com homens comuns. Contudo, muitas mulheres que ficaram conotadas com a prostituição poderiam vir apenas como mancebas. Numa carta de 1532, o bispo D. Fernando Vaqueiro queixou-se ao rei de que tinha viajado muito desgostoso para a Índia devido a Vicente Gil (armador da nau Graça) vir publicamente amancebado, consentindo que alguns oficiais viessem na mesma situação. O bispo repreendeu Vicente Gil por várias vezes, até porque o escrivão da nau requereu previamente ao armador que cessassem tais situações, mas o homem não ligou ao que era dito nem às penas que D. João III tinha decretado para quem trouxesse mulheres a bordo.
Embora a prostituição tenda a ser vista como uma actividade desenfreada, a verdade é que seria controlada e levada a cabo em certos locais que aqueles poucos homens tinham acesso. Porém, esta situação das prostitutas estarem apenas disponíveis para um pequeno grupo de homens acabaria por ser um enorme problema e podia gerar conflitos graves, visto que muitos dos que tinham conhecimento da sua presença ou que testemunhavam actos sexuais também sentiam necessidade de satisfazer os seus impulsos. Não conseguindo comprazer o desejo sexual com aquelas que iam embarcadas, os homens que viajavam para o ultramar tinham que esperar até que os navios fizessem escala nalgum local e pudesse haver contacto com alguma mulher, situação que levava meses. Todavia, é possível que devam ter havido momentos de maior liberdade em que as mulheres possam ter estado envolvidas com um número mais elevado de homens e em espaços à vista de muitos outros, se bem que esse fosse um factor para maior desordem a bordo e perigo quanto à navegação, daí também as sucessivas queixas dos missionários.
Seja como for, é preciso atenuar, de facto, um pouco o peso da prostituição, visto que nem todas as mulheres eram prostitutas. Por outro lado, e embora numa condição social diferente, sendo esposas de homens importantes, órfãs, etc., outras mulheres poderiam vir a ter problemas com homens durante o percurso. Viajando entre centenas de indivíduos, muitos deles criminosos de delito comum saídos das prisões, aquelas que não estivessem na protecção dos seus maridos ou de homens importantes poderiam ser alvo de um assédio desenfreado. Mesmo as que vinham na companhia dos maridos e que, com o decorrer da viagem, ficavam viúvas, poderiam a partir daí ser um alvo fácil.
Em 1608, na atribulada e trágica viagem da nau Nossa Senhora da Salvação, que naufragou na costa de Mombaça, iam embarcadas três órfãs do recolhimento do castelo de Lisboa, estando confiadas a uma passageira de consideração. O capitão da nau, D. Luís de Sousa, andou desinquietando as órfãs, tanto a bordo como em Mombaça, onde a tripulação se acolheu depois do naufrágio. Acabou por ser ordenada uma averiguação, a propósito do comportamento do impulsivo capitão e de este pretender devassar o recato das jovens passageiras, uma das quais acabou por morrer durante a viagem. A bordo da nau seguia igualmente um embaixador do rei da Pérsia, o qual foi assaltado pelos fidalgos, que tomaram o seu dinheiro à força. Por estes incidentes, pelo naufrágio da nau e possivelmente por outros que ficaram por conhecer, o capitão D. Luís de Sousa, posteriormente, andou homiziado.
Tentando procurar e entrar em contacto com mulheres clandestinas ou que vinham isoladas e sob protecção, alguns homens poderiam embocar em situações bastante caricatas e ser alvo do registo escrito dos missionários. Veja-se, por exemplo, o caso de um homem morto por ferimentos de um tubarão depois de se ter atirado ao rio para tentar ver melhor as mulheres que seguiam a bordo de uma nau da carreira da Índia:
“Morreram muitos [durante a viagem para a Índia] entre os quais foi um mancebo que, andando nadando no rio, e segundo alguns diziam era para ir ver umas mulheres que estavam em a varanda do leme [do navio], e andando assim nadando veio um tubarão que lhe levou uma coxa da perna que lhe não deixou mais que o osso e assim um pedaço de um braço. Acudiram-lhe logo e o trouxeram para a terra, onde o  enterraram e queira Nosso Senhor que estivesse confessado, ou ao menos com contrição dos seus pecados e esperança de misericórdiaa hora da sua morte. Aqui verão, caríssimos irmãos quanto bem é estar em graça com Nosso Senhor e aparelhados para todas as horas”[2].
O caso remonta a 1562, altura em que se fazia escala em Moçambique. É muito provável que estas mulheres que o homem tentava ver fossem órfãs, moças que, geralmente, iam ao cuidado de senhoras da nobreza. Contudo, isso não impedia que a sua presença suscitasse grande curiosidade entre as tripulações e demais passageiros. De modo a evitar situações problemáticas, estas mulheres viajavam fechadas num camarote da nau, normalmente à popa, mas com acesso a uma varanda.
Numa deslocação entre Lisboa e os portos asiáticos e vice-versa, se houvessem mulheres grávidas a bordo ou que engravidassem já no mar, o nascimento poderia ocorrer durante a viagem. Note-se que normalmente este tipo de viagens duravam 6 meses, mas nalguns casos, se fosse necessário invernar, era possível que se atingisse um ano e meio. Em 1610, de acordo com o padre francês Francisco Pyrard de Laval, durante a torna-viagem e antes da chegada ao cabo da Boa Esperança, uma dama mestiça oriunda da Índia, mulher de um português, muito bela e com cerca de trinta anos, entrou em trabalho de parto em pleno mar. Acabou por ter a criança, mas ambas morreram, tendo sido lançadas ao mar.
Onanismo e  sodomia
No meio de centenas de homens embarcados, e face a restrições de contactos com as poucas mulheres presentes ou até mesmo à sua ausência, o onanismo e a sodomia acabavam por ser frequentes, havendo dados sobre esta última prática e execuções punitivas a bordo. Em 1548, numa carta dirigida ao rei, D. João Henriques, capitão-mor de uma armada da carreira da Índia, deu a conhecer que recebeu uma denúncia de sodomia, actividade que era severamente punida. O caso punha em acção Diogo Ramires, castelhano que cometera esse pecado com dois criados de D. Manuel Telo. Consequentemente, “por ser coisa tão abominável ante Deus”, e de modo a cumprir a lei e ordenação régia, D. João Henriques tomou parecer com os fidalgos, cavaleiros, padres e oficiais da nau, acabando por condenar o sodomita castelhano à morte. Diogo Ramires chegou a confessar a sua acção, sendo assim executado como “bom cristão”.
Por seu turno, os rapazes mais novos que viajavam nas naus também chegavam a ser um alvo sexual dos homens mais velhos. Numa carta régia de 1620, dirigida ao vice-rei da Índia, o monarca referia que fora informado de que nas naus que partiam de Lisboa iam embarcados muitos meninos que os soldados, à chegada à Índia, logo levavam para as suas casas, abusando deles. Como medida punitiva, o rei determinou que se deveria investigar o assunto e proceder contra os soldados conforme o que estava disposto nas leis e instruções régias.
A violência dos corsários
Entre as situações de violência de corsários franceses contra a navegação portuguesa, há um caso conhecido em que as mulheres que vinham embarcadas foram violadas. O acontecimento teve lugar no início de Junho de 1524, quando uma caravela portuguesa que se deslocava na costa de Lagos foi atacada por franceses. Ao que parece, a situação decorreu como represália por se terem prendido, em Lisboa e em Lagos, alguns franceses que haviam sido capturados por alegada associação a actos de corso. Nesse mesmo ano, provavelmente no seguimento das acções de represália e não muito longe da barra do Tejo, corsários franceses assaltaram outra caravela portuguesa, castrando os homens que vinham nela.
Marco Oliveira Borges | 2019
[1] Este artigo foi escrito para ser publicado na revista Visão História, mas, na versão que veio a ser publicada, sofreu modificações sem o nosso consentimento – inclusive no titulo, que foi completamente alterado –, sendo que a última frase não é de nossa autoria. Além disso, no final do texto surgem imprecisões sobre a nossa pertença institucional e percurso académico (cf. Marco Oliveira Borges, “Como era a bordo das naus?”, in Visão História, n.º 54, 2019, pp. 48-50). Face ao exposto, decidimos disponibilizar aqui a versão original do artigo. Importa ainda referir que neste texto retomamos muitas das informações já apresentadas num outro estudo, no qual são indicadas as fontes e a bibliografia usada: Marco Oliveira Borges, “Aspetos do quotidiano e vivência feminina nos navios da carreira da Índia durante o século XVI: primeiras mulheres, buscas e sexualidade a bordo”, in Revista Portuguesa de História, t. 47, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp. 195-214. Outros dados, fontes e estudos podem ser igualmente consultados em Marco Oliveira Borges, O trajecto final da carreira da Índia na torna-viagem (1500-1640). Problemas à navegação entre os Açores e Lisboa: acções e reacções. Tese de Doutoramento, 2 vols., Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (a aguardar defesa).
[2] Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Colig. e anot. por António da Silva Rego, vol. IX, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1953, p. 72.

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