sábado, 1 de agosto de 2020

Um esporte de combate - Eduardo Socha


O sociólogo Pierre Bourdieu (Martine Franck/ Magnum Photos)

Avaliar o impacto que a sociologia de Pierre Bourdieu (1930-2002) provocou no pensamento do século 20 certamente envolve uma espécie de constrangimento. Em primeiro lugar, porque Bourdieu construiu um enorme corpo teórico, incluindo estudos em quase todos campos de interação social; seja na economia, na religião, na arte, na política, na comunicação ou na educação, suas análises buscaram compreender os fenômenos sociais tanto sob uma perspectiva estrutural, na interposição entre agentes dominantes e dominados em um campo social determinado, quanto sob a perspectiva “concreta” desses mesmos fenômenos, a exemplo das análises empíricas sobre alta-costura, sobre as visitas aos museus na Europa, sobre o mercado imobiliário, sobre o agenda setting no jornalismo, ou até sobre os jogos olímpicos. Ao tentar resumir a multiplicidade de sua produção, em um dossiê de poucas páginas, corre-se o risco portanto das distorções que todo grande pensador pode eventualmente sofrer.

Mas a tarefa se torna ainda mais problemática quando sabemos que Bourdieu é um dos autores mais lidos nas ciências humanas. De fato, alguns dos conceitos operacionais criados pelo sociólogo, como “capital cultural”, habitus, “campo”hoje são colocados em circulação no meio acadêmico como instrumentos indispensáveis para as diversas práticas sociológicas que não se limitam ao diagnóstico das assimetrias econômicas de classes. Valem para o conhecimento transversal que perpassa desde a medicina social até o jornalismo.

Além disso, seu engajamento, suas intervenções como figura marcante no debate público francês e nos movimentos globais contra o neoliberalismo (basta recordar sua participação na greve de 1995 que paralisou o sistema de transportes na França), concederam-lhe uma popularidade controversa e bastante rara entre os intelectuais, sobretudo a partir da década de 70. Na melhor tradição de Zola, Bourdieu acreditava que o intelectual deveria servir aos interesses de uma verdadeira práxis de transformação social, apontando os mecanismos de reprodução de toda dominação simbólica. O papel da sociologia, subsidiária de uma ampla teoria reflexiva, seria o de fornecer então as armas teóricas necessárias para esse desvelamento da realidade e para sua conseqüente transformação. É nesse sentido que “a sociologia é um esporte de combate”, boutade que virou título de um documentário sobre o cotidiano do sociólogo.

A originalidade de metodologia de Bourdieu e sua relação com os saberes instituídos, por outro lado, não deixaram de ser alvo de ataques passionais. Afinal, se num primeiro momento soube assimilar o cânone formado por Marx, Durkheim e Weber, além de internalizar os aportes teóricos que o estruturalismo oferecia à compreensão das diferentes dinâmicas culturais, nem por isso imunizou as críticas ao aos rígidos estamentos universitários; fato que lhe rendeu severa antipatia entre alguns de seus pares.

Assim, apesar das dificuldades de dar conta em poucas páginas de uma obra tão polêmica e multifacetada como a de Bourdieu, o dossiê desta edição privilegiou aqueles aspectos que pelo menos asseguram um panorama consistente de suas idéias principais e de seu ativismo político. Como introdução, Maria das Graças Setton fala sobre a formação do “gosto”, sob a ótica de Bourdieu; José Sérgio Leite Lopes, sobre sua trajetória e participação política; Clóvis de Barros Filho, sobre sua sociologia da comunicação; Ilana Goldstein, sobre a sociologia da cultura; Ana Paula Hey e Afrânio Catani, sobre sua decisiva contribuição para a educação. Em entrevista, Bourdieu afirmou que “atualmente estamos engajados num combate, em defesa de uma civilização, e o Brasil, que sofreu a política neoliberal (…) mas que tem grandes recursos culturais, históricos, pode ser um dos lugares de resistência”. Compreender Bourdieu significaria, portanto, compreender também nosso imperativo de resistência.

EDUARDO SOCHA é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo


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