domingo, 10 de outubro de 2021

Lêdo Ivo e a narrativa da visita de Dom Pedro II a Alagoas

Fonte: CULTURAEVIAGEM

Com o brilhantismo que sempre lhe caracterizou, Lêdo Ivo, em seu livro “Ninho de cobras” (págs. 148-150), narra a visita de Dom Pedro II a Alagoas, em 1859. A leitura é imperdível:



“Saibam quantos esta virem que, no ano de 1859, a província das Alagoas foi visitada por Sua Majestade o Senhor Dom Pedro II e a Sereníssima Senhora Dona Teresa Cristina. Primeiro, o imperador esteve na cidade de Penedo, dali seguindo para conhecera Cachoeira de Paulo Afonso. Embarcou, depois, para a Bahia, a fim de encontrar-se com a imperatriz. E, exatamente no último dia daquele Ano de Cristo, o imperador e sua prezadíssima consorte aportaram a Maceió.


Após o desembarque, foram à matriz de Nossa Senhora dos Prazeres, e ali assistiram ao soleníssimo Te Deum em ação de graças pela feliz viagem que haviam feito. Agradecido o Altíssimo, Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina rumaram para o paço imperial (que o tempo, a República e os morcegos e lacraias haveriam de transformar no apodrecido Palácio Velho).


Uma comissão ad hoc, nomeada pelo Dr. Manoel Pinto de Souza Dantas, presidente da província, havia ornamentado o palácio, para que os visitantes reais se sentissem como no paço de São Cristóvão. A cama destinada ao casal imperial era vasta, solene e nupcial, e conciliava, na madeira de lei trabalhada a capricho por artesãos experientes e na maciez de seu colchão de pena de pato, a grandeza do Império que se estendia, como um continente, do Amazonas ao Prata, e os sigilos da intimidade conjugal.


Durante os onze dias passados na província, o imperador visitou a cidade velha de Alagoas, as vilas do Pilar (já famosa pela excelência dos seus bagres) e Santa Luzia do Norte, a fábrica de tecidos que era um testemunho do vertiginoso desenvolvimento econômico da região, as vilas de Porto de Pedras e Porto Calvo e a ex-colônia militar Leopoldina. Um grande baile que, como uma jóia, ficou para sempre cravejado na memória de nossos avoengos, foi oferecido ao casal imperial.


Cavalheiros de casacas e fardas deslumbrantes e damas que se moviam, lépidas e encantadoras, em seus vestidos de seda e cetim, encheram o palacete da Assembléia Legislativa Provincial, na véspera da partida do imperador, o qual não escondia o seu entusiasmo pelo progresso de Alagoas e as belezas da paisagem, outrora canibalesca, e estava até mesmo pensando em fazer um soneto sobre as praias de Maceió ou as lagoas cercadas de coqueirais. E Suas Majestades gostaram tanto do baile e da acolhida fidalga, e da lhaneza e valimento do povo — e dos quitutes e bolos e doces nativos que mantinham a sua categoria mesmo diante dos vinhos preclaros de Portugal e de França — que, ao voltar para a Capital do Império, Dom Pedro II agraciou vários cavalheiros alagoanos.


O dono do edifício transformado em paço imperial recebeu, em troca da hospedagem magnificente, o título de barão de Jaraguá, enquanto, dos seus três cumpinchas, um saía comendador da Ordem de Cristo e os dois outros alcançavam o status de oficiais da Imperial Ordem da Rosa. Os responsáveis pelo êxito do baile — valsou-se até o amanhecer, e um diplomata da comitiva imperial comparou Maceió a Versalhes! — foram também distinguidos pela generosidade do monarca.


Os dois barões, o de Atalaia e o de Jequié, receberam o título de barão com grandeza. O juiz de Direito da Capital, o comandante superior e o capitão do porto (este um capitão-de-mar-e-guerra reformado) viraram comendadores da Imperial Ordem da Rosa, enquanto o inspetor da tesouraria geral, o inspetor da tesouraria provincial e o inspetor da saúde pública eram nomeados oficiais da mesma ordem. Ao juiz municipal da Capital e ao juiz de órfãos, conferiu Sua Majestade o hábito da Ordem Imperial da Rosa. E o inspetor da instrução pública e um cavalheiro chamado Raposo ganharam o hábito da Ordem de Cristo.


Após a partida de Suas Majestades, o barão de Jaraguá trancou a sete chaves os aposentos em que o régio casal se hospedara. Todos sabem que Dom Pedro II, no tocante a fidelidade conjugal, não era flor que se cheirasse, e tinha a quem puxar. Além do mais, ao tempo de sua afortunada viagem à província das Alagoas, já orçava pelos dezesseis anos que ele convolara núpcias com a sereníssima Teresa Cristina. Mas, frisando ele, então, pelos 34 anos, e encontrando-se em toda a sua força de homem (e tendo mesmo ingerido, naqueles dias ditosos, alguns alimentos de irrefutável teor afrodisíaco, tais como sururu, siri e camarão), não era de desprezar-se a hipótese de que, em sua permanência em Maceió, e dormindo em cama tão esponsalícia, tivesse cumprido os seus sacratíssimos deveres de esposo — tão descurados ou mal cumpridos na Capital do Império!


Não faleciam, pois, motivos para que aquela cama de jacarandá maciço —amorosamente feita por marceneiros que, sob a sábia orientação do barão de Jaraguá, procuraram imitar ou recriar o estilo Dom João IV — fosse posta a salvo de curiosidades inidôneas ou indecorosas, ou de frases de tenções dobradas, juntamente com a cômoda, o armário e o espelho que eram também verdadeira sobras d’arte e quintessências do rococó alagoano.”

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