Histórico crítico das manifestações no Brasil
É preciso que, para além de ler os
clássicos teóricos do Comunismo, se pense com eles e para além deles, no
sentido de conduzir uma força de reflexão política e não uma comunidade
hagiográfica do pensamento da tradição
19/07/2013
Ana Monique Moura*
É
algo muito ambíguo o que tem ocorrido e permanece ocorrendo nas ruas do
nosso país, tamanha é essa ambiguidade, que veio confundindo teóricos,
políticos, sociólogos de todo o mundo sobre como definir este panorama.
Não é gratuito que se revele ambíguo e, portanto, difícil, pois como
diria Maiakovski: “o mar da história é agitado”. Estamos acostumados a
definir a história e o nosso tempo ainda de maneira linear e definir os
períodos de protestos de maneira um tanto didática, mas é preciso que
nos penetremos nesta confusão para compreender o que está acontecendo.
Com rigores de observações unilaterais isso fica inviável. É preciso
aceitar a agitação do período e ver nisso a possibilidade de sua
compreensão e não a sua ausência. Nosso momento é um enredo truncado,
com definições sempre falíveis, caso tentem repetir abordagens.
Não
valeria dizer, por outro lado, que pareça uma revolução, mas também não
é, inteiramente ou apenas, uma festa. A manifestação que aconteceu para
impedir a fixação do aumento dos R$ 0,20 centavos a mais nas passagens
de ônibus não é inovadora. Há anos, desde a nossa desconfiável
insurgente democracia, movimentos estudantis vem enrijecendo lutas, cuja
minoria participativa é inegável. Dentro das próprias universidades em
que estudam são, com frequência, rechaçados pela infinita maioria
esmagadora de outros estudantes que se dizem apolíticos, ou afastados do
envolvimento, assim dizem, “sem retorno”, com a politização de ideias.
Em
triste contrapartida, os movimentos estudantis atuais, claro, preciso
ser ferrenha quanto a isso, de fato, carecem de uma envergadura mais
política e menos emotiva. A folia da indignação é o que se mostra muito
mais presente nas atividades dos grupos que saem às ruas há anos. Esta
ausência de envergadura, que significa, em outros termos, não apenas a
ausência de leitura e compreensão tanto do jovem quanto do velho Marx, e
de outros autores como Bakunin, Kropotkin, aliada à leitura de autores
atualíssimos sobre o tema, como o Badiou, Derrida (dentre tantos
outros), mas a própria produção intelectual dos grupos. Não há, e se há,
não é suficiente.
Porém o recuo da maioria infinita não se dá
pelo reconhecimento desta falta de envergadura política, e sim porque,
neles, a possibilidade de envergadura política nem mesmo alça algum
feixe de possível presença. Se parece claro a despolitização de muitos
jovens estudantes que se põem muitas vezes na luta, o que diríamos da
grande massa que se aparte desta minoria?
Embora este fato
triste, e ao mesmo tempo, até esperado, em se tratando de um país em que
a preguiça intelectual ainda é grande problema, é preciso que haja
sempre desconfiança na negação da luta por parte dos demais em relação
às lutas dos estudantes contemporâneos.
Ainda que haja
ingenuidade intelectual, há uma arma que eles sabem utilizar muito bem,
que é o discurso da indignação, coisa que já critiquei em outro texto
publicado aqui (Os índios e o Brasil: Da história às redes sociais). Uma
indignação que se revela, muitas vezes, como apelativa e acrítica. A
linguagem publicitária do sistema culminou por estar presente em muitos
dos discursos que deveriam se propor como um discurso mais politizado.
Hoje, por fim, usarmos os termos “propaganda de esquerda” ou “propaganda
de direita” é mais vigente do que o discurso político para ambos.
Mas
é preciso que a luta de uma esquerda crítica de si mesma permaneça, que
resista aos titubeios e disfarces das novíssimas esquerdas que não tem
nada de esquerda. O que ocorre é que a direita se apropria das
conquistas da esquerda e assume tais conquistas como próprias do
direitismo político. Aqui a propaganda tem um papel fundamental, ao
divulgar que sem a direita, as conquistas adquiridas não receberiam a
gestão devida.
I
Por
fim, a esquerda começa a ser objeto da direita e o perigo se mostra
tanto pior no momento em que a esquerda entra na ingenuidade de que está
promovendo alguma luta política inovadora, quando, em verdade, está
sendo aproveitada pelos direitistas. O mínimo de esclarecimento
intelectual aqui bastaria aos entusiastas de esquerda para evitar isso.
É
preciso que, para além de ler os clássicos teóricos do Comunismo, se
pense com eles e para além deles, no sentido de conduzir uma força de
reflexão política e não uma comunidade hagiográfica do pensamento da
tradição. Como já pensou muito bem o Maurice Ravel, “a tradição é a
personalidade dos imbecis”. E o próprio Marx guarda como cerne de sua
crítica da economia política uma fundamental crítica à religião. Com
toda certeza, ele não esperaria dos comunistas uma genuflexão ao seu
pensamento como uma doutrina a ser honrada. É pensamento crítico, não
religiosidade. Isto é básico. Esta atitude ingênua acarreta na
ridicularização cada vez mais declarada da “atitude política” por parte
dos jovens que se dizem de esquerda.
Deve-se entender que, se o
nosso país ficou repleto de pessoas nas ruas isso não se deu de uma
maneira estritamente revolucionária. Houve uma propaganda de direita que
se aproveitou dessa conjuntura e ali, nas universidades, os estudantes
que sempre estiveram nos protestos ficaram ingenuamente felizes com a
repercussão, e os que sempre recuavam agora aderiam às manifestações.
Há
muitos que criticam as manifestações por uma ausência de direcionamento
de pautas, mas esta crítica é um tanto falha. Em um país cujas decisões
políticas são todas ao mesmo tempo muito falhas, as manifestações só
podem também revelar esse mosaico de decisões a serem corrigidas. O
problema não é o pluralismo das manifestações, mas o pluralismo
carnavalesco de decisões que se pretendem políticas para o país. As
manifestações são apenas uma decorrência natural de um palácio de
governo no qual a bacanal de leis irrisórias acontece com frequência e
vem se acumulando a cada ano, desde Fernando Collor.
O problema é
que a política do Brasil é feita por analfabetos políticos que
alimentam outros analfabetos políticos, no sentido Brechtiano. Se
engana quem acha que está à frente de modo crítico disso por levantar um
cartaz nas ruas. O neoliberalismo consiste em aderir a todas as tomadas
contrárias a ele para, ao invés de conservar e tornar-se estéril a
partir da coibição, ampliar e multiplicar seu mercado a partir da
aceitação. Isso explica porque, dentre tantas outras coisas, Marx é
emblema do Cartão Mastercard em Chemntiz na Alemanha, porque Che Guevara
é emblema de camisas de marca, e o personagem de V de vingança é
mercadoria querida dos manifestantes brasileiros que, ao comprarem o
produto, geram royalties para a Warner.
Estamos encurralados. E
não digo isso solitariamente. De uma maneira sofisticada e através da
literatura, George Orwell, na obra “1984”, retrata antecipadamente muito
bem isso. E sua crítica ao poder é tão ferrenha que deixa ser possível
para nós pensar até mesmo a esquerda sendo comparada ao que a direita
tem feito conosco. E nos colocamos a pensar: o que a direita e/ou o
fascismo fez é o que também a esquerda e/ou o comunismo faria se
chegasse ao investimento do delírio do poder, a saber,
controlaria a todos para evitar que outra forma de poder viesse à tona.
Há a descrição do controle de mídia, jornais, a comunicação do grande
irmão, o famoso Big Brother, com os seus governados que são, por isso
mesmo, manipulados.
Penso que a saída para a ampliação da
reflexão disso, se houvesse ou se houver, estaria, em alguma boa
porcentagem, na revisão de algumas propostas feitas por Bakunin, na sua
critica radical ao estado, uma vez que o problema reside, como vemos, na
estrutura desse poder que existe, ao menos teoricamente, para nos tonar
mais dignos de uma vida social, o que é uma douta mentira. A
erradicação do estado seria, de acordo com Bakunin, a erradicação das
possibilidades de uso excessivo de poder sobre os outros, para o bem ou
para o mal. Ah, mas isto, nos dizem, é anarquia! Sim, é anarquia contra
anarquias soberanas, anteriormente fundadas.
É necessário saber
que não estamos em Maio de 68, mas muito provavelmente estejamos em 1984
de George Orwell, mas no estilo bem abrasileirado.
II
Pergunto
a vocês, leitores comunistas ou anarquistas, seria essa juventude
brasileira, que está nas ruas, politizada? Em um recente artigo na
Revista Carta Capital (edição 754), Vladimir Safatle chega a ser muito
peremptório ao dizer que essa é a época de uma consciência política no
Brasil. Com exceção do brilhantismo de seus pensamentos, não vejo meios
para concordar com uma ideia tão deslumbrada.
Em primeiro lugar
uma manifestação política em forma de protesto não pode ser esperada.
Ela deve chegar de surpresa. Neste caso, a manifestação de fato que
protestou aconteceu uma única vez, a primeira manifestação em São Paulo.
Mas, em um lugar no qual os militares esperam, em sua maioria, de
maneira tranquila, em que boa parte das lojas da cidade fecha, como ter
voz de impacto a manifestação que ali chega? Em segundo lugar, como pode
haver uma consciência política se a juventude está despolitizada, mesmo
quando ousa falar muito mais por euforia, do que por compreensão, de
política? No meio desta juventude se metem os outros jovens direitistas
cantando e muitas vezes fazendo os outros de esquerda também cantar
“deitado eternamente em berço esplêndido”. Ora, como dizer que estamos
deitados eternamente em berço esplêndido? O Movimento Sem Terra esteve
presente nas manifestações e foi vaiado em muitas cidades. Seu grito foi
substituído pelo “deitado eternamente em berço esplêndido”. Que tipo de
consciência política é essa que está indo às ruas?
Não importa o
que façamos, se o fazemos numa apelação e firmação do poder do estado, o
resultado disso será reconfigurado pelo neoliberalismo atual e que se
imiscui nas decisões políticas do país. Aqui, a teoria do “menos estado”
no pensamento liberal cai por terra. O próprio estado detém princípios
liberais, não nos enganemos.
Um exemplo. Eugênio Gudin,
economista brasileiro na época do presidente Café Filho (década de 50)
defendeu a teoria de que recuar e diminuir os impostos não resolve
nenhum problema. O que precisa ser feito é procurar um meio do país ter
condições de conviver com o aumento dos impostos. Mas, talvez ele não
tenha pensado que, em geral, se há aumento de impostos, algo vai mal na
economia do país. É necessário que se reveja o número significativo que
um governo paradoxalmente tirânico e populista investe em subsídios
favorecedores de uma ideia de política da caridade, como o
programa Bolsa Família, que substitui uma política que deveria nascer,
sem esse tipo de estado, reinventada para uma emancipação da educação,
trabalho e liberdade intelectual, no meu ver, importantíssima para um
país doente pelo analfabetismo político. A medida dos subsídios não só
serve para investir na separação entre o que se toma como “o miserável
que recebe ajuda” daquele que não precisa de ajuda, como serve para
enrijecer o poder do estado a insuflar no povo a necessidade de ter um
estado que lhe seja, sempre e cada vez mais, superior, temível e, na
ajuda, divino, tal como Deus. Não foi a toa que Bakunin associou o
estado ao significado de Deus.
III
Acredito
que das ideias anárquicas, já que seu todo não consegue se manter, o
que deve ser mantido, e o mais importante, é a recusa permanente do
poder excessivo de Estado sobre decisões que comprometem a dignidade
social do povo. Quanto ao Socialismo, nós sabemos, não podemos
esbravejar tal nome com tanta alegria. Hitler já o fez suficientemente a
ponto de não ser preciso nenhuma referência ingênua a esse termo. Se
trata de um termo atualmente muito genérico, a ponto de perder o
sentido. Também não falemos, com raras exceções, em Comunismo, não
porque não tenha dado certo na União Soviética, como muitos argumentam
(o que me parece um argumento de certa forma vazio, já que o capitalismo
também não deu certo), mas porque sua proposta deve ser repensada.
Proponho que possamos não apenas falar, e sim por em prática algo
próprio do Comunismo, que é a crítica à alienação e, acrescente-se, que
essa crítica não seja feita à alienação da massa, mas também e com
urgência à própria alienação dos intelectuais e dos estudantes em
relação às suas posturas atualmente doutrinadas.
A crítica
contemporânea à alienação começa muito bem com uma crítica aos donos da
mídia, que favorecem um estado, para além de corrupto, mafioso. Mas é
preciso lembrar que esta crítica não deve ser feita com um elogio a uma
outra mídia alternativa, embora ela precise existir, mas não
isoladamente. O protesto deve estar seguido de uma negação a todo e
qualquer tipo de hegemonia midiática sobre nossas cabeças
frágeis e preguiçosas. Nada pior e mais deplorável do que repetir o
termo “revolução”, os nomes “Marx” e “Che Guevara” sem saber o que tudo
isso significa e fazê-lo tão só por uma atitude hagiográfica. Uma mídia
que viesse substituir a Globo, mas que para se manter manipulasse um
novo povo, provocaria um espírito tão fascista como o que a Globo
injetou em seu público. Ocorreria o que de fato Orwell mostrou muito bem
em seu romance “1984”, como falei acima.
Muitas pessoas
estiveram e estão segurando seus cartazes coloridos e sorrindo nas ruas.
Pareciam e parecem condizer com alguma mensagem subliminar que diz:
“Sorria, a manifestação está sendo manipulada”. E a pesar disso,
sorriem. E é perfeito para essas pessoas que esteja tudo odiável e que o
ódio seja festejado, até que as eleições cheguem com suas novas
promessas teatrais supostamente acolhedoras de um país de “risonhos
lindos campos”, que em verdade, está abandonado por leis que deplora seu
povo há muitos anos. Nada mudou, o que precisa mudar é tão somente a
recepção do que não é nada novo. No dizer mais poético de Maiakovski,
“... Não há nada de novo no rugir das tempestades”.
*Ana Monique Moura é doutoranda em Filosofia - UFPB. Autora do livro “Entre Kant, Filosofias e Arte”, 2012.
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