Muito além das bombas da Marinha - Em todo o litoral norte do Estado, o passado é redescoberto em escavações e nos mergulhos dos banhista
Garrafas de vidro e de cerâmica e resto de garrucha (pistola antiga) achados por banhistas no rio Manguaba
Em
maio deste ano, quando uma bomba da época da 2ª Guerra foi encontrada
em Maragogi por operários que trabalhavam em uma obra de saneamento na
área urbana do município, a cidade inteira acreditou estar diante de um
tesouro de um passado muito mais remoto. Os dois trabalhadores que
acharam ó artefato bélico, mesmo desconfiando tratar-se de algo
perigoso, pegaram o martelo e chegaram mesmo a abrir um buraco na mina
flutuante da Marinha.
Felizmente
não explodiu - o que aconteceu depois, de forma induzida, detonada pelo
esquadrão antibomba do Batalhão de Operações Especiais da Polícia
Militar (Bope). Mas até o momento da explosão, uma multidão já havia se
reunido em torno do artefato e exigia que a polícia devolvesse à
população a sua "botija de ouro". O operário Jadson José da Silva disse
que, depois de passado o tumulto, sentiu um frio na barriga pensando que
a tal bola de ferro de mais de um metro de diâmetro podia ter explodido
na mão dele.
Toda
essa confusão tem uma justificativa: há sete anos, em outra obra de
saneamento da prefeitura, trabalhadores realmente encontraram uma
botija, cheia de moedas de prata e bronze do século 19. Ninguém ficou
rico com isso. E parte dessa preciosidade histórica se perdeu, de mãos
em mãos, restando algumas moedas hoje sob a guarda do atual secretário
de Cultura do município, Jadson Jacó. "Posso dizer que 10% ou 15% do que
foi achado ficou conosco", afirmou o secretário.
Arqueologia pode resolver antigos enigmas
A
bomba e a botija tornaram-se o começo e o fim de um mesmo novelo: o
passado histórico do litoral Norte de Alagoas, que é pólo de colonização
de nosso Estado e do próprio país. O arqueólogo Scott Allen, do Núcleo
de Ensino e Pesquisa Arqueológica da Universidade Federal de Alagoas
(Ufal), realizou com sua equipe diversas escavações de Maragogi até
União dos Palmares, passando por Japaratinga, Porto de Pedras e Porto
Calvo. Ele receia falar do assunto para não criar sensacionalismo e não
provocar uma corrida do ouro, afinal, arqueólogos trabalham com objetos
encontrados em diversas camadas que vão sendo formadas no solo ao longo
dos anos. Se começam a mexer e a remexer a terra, a história perde o
contexto e a leitura arqueológica torna-se, praticamente, impossível.
"Não
há material valioso, nunca encontrei botija nem qualquer coisa de valor
monetário. Precisamos proteger esses sítios arqueológicos", disse o
professor Allen, que mapeou 19 sítios arqueológicos para traçar a rota
dos escravos nos engenhos de cana de açúcar na colonial Porto Calvo (que
incluía Maragogi e Porto de Pedras) rumo à liberdade na Serra da
Barriga, em União dos Palmares.
Acharam-se
pedaços de faiança da Ironstone China (a antiga louça inglesa que
imitava a ancestral louçaria chinesa) e troncos de senzala. Fora as
casas-grandes que resistiram ao apelo industrial das grandes usinas de
açúcar. E coisas que a rapaziada que gosta de mergulhar no Rio Manguaba,
no antigo Porto das Barcaças, em Porto Calvo, costuma encontrar: vidros
de perfume parisiense, garrafas de champanhe e garrafas de cerâmica com
o timbre de Cambridge (Inglaterra), moedas, correntes, cadeados e uma
infinidade de objetos de vidro, de ferro e de bronze que são,
provavelmente, destroços de antigos navios portugueses, espanhóis e
holandeses.
Como
a enferrujada garrucha (espécie de pistola barata, com um tiro por
cano, muito utilizada nos anos de 1730 a 1960) exibida pelo açougueiro
Edmilson da Silva, de 27 anos. "Quando baixa a maré, encontramos muita
coisa sob a areia no leito do rio. Mas como não tem museu em Porto
Calvo, já deixei vários objetos no Museu de Padre Cícero, em Juazeiro do
Norte (CE). Estão todos lá catalogados", contou Silva, dizendo que fez
um anel para a namorada de urna moeda que encontrou no rio.
Um
anel de bronze de cerca de 350 anos foi achado no mar de Maragogi, mas
seu dono, que não quis se identificar, receia entrar em conflito com o
Estado. "Eu e mais dois amigos temos vários objetos, coisas de navios
antigos que achamos em nossos mergulhos, mas, por enquanto, está tudo
guardado”, afirmou.
Outro
aficcionado por objetos históricos encontrados no Rio Manguaba e em
escavações por toda Porto Calvo, é o comerciante Adelmo Monteiro. "Eu
tinha um restaurante e, vez por outra, um turista me perguntava sobre
lugares históricos da cidade e como não havia, e nem há, nada em Porto
Calvo que registre o apogeu da Colônia, a não ser a igreja de 1610,
comecei a correr atrás dessas coisas", contou o dono da Lotérica
Domingos Fernandes Calabar.
Adelmo
colecionou 19 balas de canhão e mais uma porção de garrafas Ironstone
China. Além de pequenos tijolos encontrados em escavações feitas para a
construção do anexo do Hospital Municipal, localizado no Alto da Força,
onde, segundo a História, havia um forte português. "Infelizmente, não
há recursos para a criação de um museu", lamentou.
Ossadas e artefato indígena são achados em igreja
O
arquiteto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), Sandro Gama, é o responsável pela recente recuperação e
restauração da Igreja Matriz de Porto Calvo, cuja conclusão de
edificação data de 1610 (ano que aparece no frontispício do templo).
Para esse trabalho, realizado no ano passado, ele diz que de imediato
pensou na contratação de arqueólogos.
"O
projeto da igreja precisava resolver problemas do edifício e isso
implicava em mexer nas suas fundações. A igreja corria o risco de
desabamento. Sabíamos que pessoas eram enterradas ali. Nos anos 1980, já
havia sido feito um trabalho de recuperação e muitos ossos foram
encontrados e colocados em uma única sala. Então, previ a presença do
arqueólogo nesse trabalho, acompanhando todo o processo de recuperação
do edifício", contou Gama.
O
Iphan contratou os serviços do arqueólogo Scott Allen, que realmente
encontrou várias ossadas e uma série de material lítico (feito de pedra
antiga). A arqueóloga Karina Miranda, da equipe de Allen, explica que
cada camada do solo tem uma cor específica, identificando períodos
diferentes da História. "Quando o solo é muito remexido, isso se perde.
Mas encontramos ossadas primárias, que não foram mexidas. O cadáver
estava ali do jeito que foi enterrado."
Uma
dessas ossadas primárias foi encontrada em frente à torre sineira da
igreja. De acordo com a arqueóloga, a análise não foi confirmada, mas
uma identificação prévia remete a ossada ao século 19. "Ela foi
encontrada da forma como foi sepultada, sem desarticulação dos ossos."
Parte do material lítico tem origem provável entre os indígenas que
habitaram Porto Calvo, antes mesmo da Colônia. "É um material muito
antigo, o que nos leva a crer que a igreja foi construída sobre um local
onde houvera uma tribo indígena", afirma Karina. Segundo ela, como não
havia ferro nessa época, os índios construíam artefatos cortantes com a
pedra.
* Matéria veiculada em O Jornal, no dia 5 de setembro
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