O REGISTRO DE NOSSA ERA - Uma doce companhia?
Desde os primórdios de sua existência o Homem tem lançado mão de diversos
recursos para sobrepor-se às adversidades do meio em que vive. Do primeiro
pedaço de pau usado como arma, passando pela descoberta do fogo e da roda, ao
longo da História técnicas e tecnologias desenvolveram-se como ferramentas que,
se inicialmente surgiram como formas de auxílio para estabelecimento de bem
estar do indivíduo, não deixou por outro lado, de adotar um caráter de
dominação do Homem sobre o seu semelhante: neste caso, deter a
técnica/tecnologia iguala-se a deter o Poder.
Esta relação de poder com a tecnologia revela-se basicamente pela detenção
do Conhecimento. No filme "A Guerra do Fogo" (1981), de Jean-Jacques
Annaud, tem-se a história de um grupo de homens pré-históricos que, após terem
a fogueira de sua aldeia apagada num confronto com uma tribo rival, saem em
busca da única fonte para obtenção de fogo que conhecem (uma área de terras
vulcânicas). No percurso deste grupo temos os contrastes entre os
desenvolvimentos de vários "povos", alguns mais atrasados que os
protagonistas, outros mais adiantados (chegando mesmo um deles a ter a
capacidade de comunicação verbal já estabelecida) pelo modo como cada grupo
lida (inclusive "tecnologicamente") com a situação de confronto um
com outro. É do grupo mais desenvolvido (o de capacidade verbal já
estabelecida) que virá uma garota a integrar-se ao grupo dos protagonistas, aos
quais, no final, ensinará o segredo, já dominado pela sua tribo, de se produzir
o fogo por fricção. Ou seja, a Tecnologia é um elemento que vive sobre uma
tênue corda bamba, cujo equilíbrio depende do modo como o seu conhecimento é
partilhado, comprometendo mesmo até qual o verdadeiro significado de Progresso.
Se em "A Guerra do Fogo" consegue ilustrar na Pré-História uma
alegoria sobre a Evolução na partilha do Saber, a própria História parece nos
demonstrar uma tendência diametralmente oposta: da alienação que pode resultar
à uma grande parcela da sociedade, transformada em mera realizadora dos ideais
de uma outra parcela, pequena, detentora do Saber daquela realização:
- O senhor
Feudal, pelos direitos senhoriais, apropria-se da produção dos servos
através da corvéia (prestação de serviços gratuitos) ou a talha (entrega
de produtos gerados pelos trabalho servil), controlando inclusive as
ferramentas para tal realização (há relatos de que, para obrigar o uso de
seus moinhos, alguns senhores feudais confiscavam e destruíam moinhos
caseiros manuais porventura encontrados nas casas dos servos).
- A Revolução
Industrial, no século XVIII, surge da exigência do crescente capitalismo
para uma grande demanda de mercadorias, e por consequência, a concentração
de grande número de pessoas para a sua produção; o trabalho especializado,
de manufatura individual, é gradualmente eliminado, dando lugar a uma
forma de concentração de força de trabalho num único espaço: a Fábrica, na
qual a Máquina exercerá o papel de otimizadora daquela concentração.
- O Taylorismo
(método de treinamento para obtenção da eficiência do funcionário) e
Fordismo (adaptação do Taylorismo à "Linha de Montagem") surgem
como forma de reestruturar a produção frente ao novo padrão tecnológico
detonado na segunda metade do século XIX e continuado no século XX. É a
massificação de um processo iniciado na primeira Revolução Industrial,
agora sob uma roupagem "científica".
É interessante notar como estes exemplos remetem à questão do domínio do
Trabalho, e o que se pode verificar em todos esses casos é a divisão entre quem
produz e aquele que detém o meio/conhecimento para a produção. Cada um como
exemplo de uma fase da crescente expropriação da individualidade, inicialmente
no Trabalho mas com reflexos em todas as parcelas do ser Humano, como forma de
torná-lo escravo de um sistema de Mercado. Isto talvez não ficasse tão evidente
no Feudalismo (obviamente, já que não havia mercado, além do que o domínio
sobre a produção era uma atividade enclausurada em cada feudo); mas o
surgimento do Capitalismo faz do controle sobre a produção uma regra e sua
Revolução Industrial como expressão máxima deste controle e da concentração de
renda (ainda de forma velada, mas desmascarada por teóricos com Karl Marx); e
por fim, expressa de forma explícita no Taylorismo e Fordismo, nos quais a
exploração é disfarçada por uma suposta participação do empregado nos lucros da
empresa (mas que visa somente possibilitar o mesmo funcionário a sua capacidade
de consumo do mesmo produto que produz).
É sob esta ótica do consumismo que pode ser vista a invasão da Tecnologia no
nosso século XX. Nunca em outro século ela apresentou-se como possibilitadora
de uma crescente disposição de produtos vendidos como indispensáveis às nossas
vidas, geradores de facilidades do cotidiano. Mas facilidades que, ao contrário
da visão utópica apresentada pelo filme de René Clair, "A nós, a
Liberdade" (1931), onde ter-se-ia tempo para o desfrute da vida, fazem com
que aquele mesmo tempo vago direcione-se apenas para o consumo e em alguns
casos , até para mais Trabalho (não por acaso, os maiores fatores de exclusão
social da atualidade). E isto ocorre num ritmo tão alterado, acelerado, numa
progressão geométrica que torna o homem escravo de um intricada rede de
engrenagens que parte da linha de montagem e chega até ao microondas que
sorrateiramente espera na cozinha.
O REGISTRO DE NOSSA ERA
O cinema parece ter captado perfeitamente as atribulações causadas pela
Tecnologia. Na verdade, o próprio Cinema é um exemplo desta atribulação, já que
veio mudar a forma do homem enxergar o mundo, ao qual estava acostumado e ver
retratado apenas em pinturas ou fotografias estáticas. Como toda invenção
desenvolvida na segunda metade do século XIX, causou o encanto de muita gente,
dentre elas George Meliès (que trocou de profissão deslocando sua habilidade de
mágico para o cinema); e dentre seus próprios filmes temos a provável primeira
apologia fílmica sobre as maravilhas das máquinas em "Viagem à Lua"
(1902), encanto que continuaria em "20000 Léguas Submarinas" (1906) e
"A Conquista do Pólo" (1912).
O advento da 1a. Guerra e a iminência de uma 2a. parecem contribuir para uma
visões mais cética sobre a tecnologia, já que a partir de então revela seu
grande potencial de destruição. Vale notar que é no período de guerra que
aquelas mesmas técnicas apregoadas pelo Taylorismo e Fordismo, originalmente
concebidas para aprimoramento/recuperação de indústrias, são mais arduamente
aplicadas, dado o "estado de emergência" que exigia a contribuição de
todos (por exemplo, a integração das mulheres às linhas de montagem) para a
estruturação de uma "produção de guerra". Era nesse período que a
indústria tornava-se um verdadeiro laboratório daquelas técnicas, aprimoradas
para mais tarde serem incorporadas como norma dentro da indústria comercial.
Contemporâneos
do auge da implantação daquelas técnicas de gerenciamento, dois filmes podem
ser considerados os mais representativos críticos à aparente insanidade que
parece tomar conta da industrialização: "Metrópolis" (1925), de Fritz
Lang e "Tempos Modernos" (1933), de Charles Chaplin. Talves por
aquela mesma contemporaneidade ambos façam referências diretas à fábricas.
"Metrópolis", que apresenta uma sociedade explicitamente dividida
em uma casta de operários e outra de empresários, embora tenha um final
aparentemente feliz, não é ingênuo: ao contrário, ele alerta para o perigo de o
homem perder a sua essência ao tornar-se apenas mais uma engrenagem da máquina
(possibilidade magistralmente representada na figura do operário trabalhando em
uma máquina cujos movimentos o faz confundir-se com os ponteiros de um
relógio); esta perda da essência tem referência inclusive no plano religioso
(espiritual), que pode ser apenas recuperada momentaneamente pelos operários
que clandestinamente reunem-se nas catacumbas para as preleções de Maria. Sua
frase "Entre o cérebro que pensa e a mão que executa, deve haver um
coração para mediar" é um indício da crença de Lang para a positiva
aplicação da Tecnologia, quando bem partilhada.
"Tempos Modernos" possui uma visão mais melancólica. É na derradeira
aparição de Carlitos que Chaplin mostra um personagem "tradicional",
que tenta adaptar-se, resistir, à modernização do mundo. Mais do que a clássica
cena de homens saindo do metrô como ovelhas conduzidos em um matadouro, a
Tecnologia demonstra sua onipresença, quase divina, na própria confecção do
filme: as vozes das personagens são ouvidas somente quando pronunciadas por
alto-falantes, rádios ou monitores (estes últimos uma referência à
possibilidade de vigilância, já aludida também em "Metrópolis"); o
som preponderante, à exceção de algumas onomatopéias cômicas, é o das máquinas,
sejam elas engrenagens das fábricas ou dos automóveis etc. Ou seja, o filme
(lembrando que ele foi realizado na fase de transição do mudo para o sonoro)
vitimiza-se tanto quanto o próprio personagem: ambos têm de entregar-se às
consequências do Progresso, mas não sem um grito de resistência: Carlitos
apresenta-se em um restaurante, cantando uma música de letra incompreensível;
mas isto não tem importância, pois não é no que canta que está o significado da
história, e sim no gestual que executa enquanto canta. É aí que reside
superação da idéia sobre a técnica.
Retomada
É interessante notar o certo vácuo que esta temática toma nas décadas de 40
e 50. Se nas três primeiras décadas ela serviu, além dos exemplos citados
anteriormente, também de material para algumas comédias, o advento da Segunda
Guerra tornou-se o mote principal do cinema com a preocupação de uma propaganda
contra o Eixo. Após a beligerança, a década de 50 asssitiria a divisão do mundo
em dois blocos de influência de político-econômico-militar cujos pólos eram EUA
e URSS. Neste período a Tecnologia vê consolidada um novo artefato bélico - a
Arma Nuclar - já utilizada na 2a. Guerra. O tabu que se criou sobre sua manufatura
(Hitchcock foi investigado por três meses pelo FBI após, em 1944, ter
entrevistado um cientista sobre a possibilidade da construção da Bomba Atômica
com Urânio, este último que seria seu "Mackguffin" no filme a ser
realizado em 1946, "Interlúdio" ) foi o motor que alimentou o
deslocamento da tecnologiapara a forma de uma ameaça (arma) alienígena dos
filmes de ficção científica. Aquele elemento estranho, desconhecido, que
pairava invisível no ar servia como forma de atacar ideologicamente o inimigo, neutralizando
assim (com exceção de alguns casos, como o filme "O dia em que a Terra
parou") qualquer visão (auto)crítica sobre o Progresso Tecnológico.
Talvez, por outro lado, este mesmo vácuo no deslocamento momentâneo da
figuração da tecnologia tenha contribuído para a forma com que será retomada
aquela visão cética na década de 60 (um período fértil de movimentos
contestatórios), pois de uma crítica mais direta passar-se-á para a Ficção
Científica como uma forma de crítica mais alegórica, e o filme responsável por
este novo status dos filmes de FC foi "2001 - uma odisséia no espaço"
(1968) de Stanley Kubrick. Nele, encontramos o Homem em suas diversas fases de
existência, desde quando descobre o uso de um osso como possibilidade de arma,
passando pelo seu domínio do Espaço Sideral, até a construção de um computador
dotado de Inteligência Artificial. É no progressivo desenvolvimento do Homem
que o filme (baseado num livro de Arthur C. Clark) mostra sua aproximação rumo
à Essência (com o Monolito representando a convergência das circunstâncias para
o avanço daquela descoberta) que o leva quase ao ponto de igualar-se à Deus; e
é aí justamente que reside o perigo: o Homem, de criação, torna-se Criador, e
gerando um ser à sua semelhança (não tanto física, mas sobretudo intelectual)
passa a ser questionado pela Máquina, assim como ele mesmo questionara seu
Deus. O Homem procura uma desumanização supra-natural, com o uso da tecnologia como forma de deslocar sua posição no Universo, projetando em seres sintéticos a superação de fraquezas que ele mesmo não mais aceita ter. Uma espécie de Taylorismo/Fordismo onde busca-se uma Eficiência da própria Vida. Uma idéia nada nova, cujo modelo definitivamente parece ter estabelecido pelo romance "Frankeinstein" (1818) de Mary Shelley e deu vazão a mais diversas variantes. No cinema já poderia ser encontrada no filme "Metrópolis", na réplica de Maria, e terá sua retomada mais significativa em "Blade Runner" (1982), de Ridley Scott, no qual andróides (Replicantes) alimentam o desejo de uma experiência de vida como humanos, tentando a estes se misturarem.
Mas esta infiltração do "perigo tecnológico" no cotidiano pode ter contornos bem mais realistas do que andróides, configurando-se em equipamentos presentes no dia a dia. É o caso de "Encurralado" (1971), de Steven Spielberg, no qual um caminhão investe numa perseguição impiedosa contra um pacato motorista. O que confere contornos de sobrenatural à história é o fato de nunca conseguir-se identificar o motorista do caminhão, fazendo com que este último pareça ter vida própria. O final faz uma apologia à superação do homem sobre a Máquina na simplicidade da arma que o herói utiliza (uma pasta de trabalho) como instrumento fundamental para deter seu perseguidor.
James Cameron, um diretor que notadamente tem sua filmografia permeada pela interferência da tecnologia no destino das personagens, foi quem trouxe o mais recente exemplar deste conflito no filme "Titanic" (1998). Já consagrado pelos filmes "Exterminador do Futuro I" e "II" (o primeiro, de 1984, uma clara referência ao medo da guerra nuclear, ainda reinante na época, figurado em um andróide assassino; o segundo, de 1991, uma reconciliação com a tecnologia: um dos exterminadores é o herói da história, que vem para salvar o futuro líder da resistência), em "Titanic" ele consegue (apesar de focado numa história de amor) também resgatar o caráter social renegado em outras versões da história. Tem-se então um navio que não difere em nada da cidade de "Metrópolis", onde relega-se às classes desfavorecidas as partes mais profundas da embarcação (novamente a distribuição desigual de um bem tecnológico), e é na situação limite (o afundamento de Titanic) que as desigualdades tomarão os contornos definitivos: os viajantes da terceira classe, como os operários de "Metrópolis", serão as principais vítimas da inundação (coincidência!?!).
São alguns exemplos de fragilização da Sociedade, de valores sociais ostentados por um Conhecimento mal administrado; fragilização que talvez só poderá ser um dia superada quando à Evolução Material do Homem equiparar-se a Evolução Espiritual.
Bibliografia
HELOANI, José Roberto. Organização do trabalho e Administração: Uma visão multidisciplinar. 2a. Edição. Cortez Editora. São Paulo, 1996.
GAMA, Ruy (org.). História da Técnica e da Tecnologia. T.A. Queiroz, Editor. EDUSP. São Paulo, 1985.
DECCA, Edgar Salvadori de. O Nascimento das Fábricas. Coleção Tudo é História no. 51. Editora Brasiliense,. São Paulo, 1982.
KOSHIBA, Luís. PEREIRA, Denise M. História do Brasil. 4a. Edição. Editora Atual. São Paulo, 1984.
GONÇALVES, Armando(org. Ed. Bras.). 1000 que fizeram 100 anos de Cinema. Editora Três Ltda. São Paulo, 1995.
KARNEY, Robyn (org.). Chronicle of the Cinema. Dorling Kindersley Publishing Inc. New York, 1995
Revista SET cinema e vídeo especial "Terror e Ficção" Números 36T, 44E, 50E. Editora Azul. São Paulo.
Filmografia:
"Viagem à lua", George Meliés (1902)
"20000 Léguas Submarinas", George meliès (1906)
"A Conquista do Pólo", George Meliès (1912)
"A Nós, a Liberdade", René Clair (1931)
"Metrólolis", Fritz Lang (1926)
"Tempos Modernos", Chales Chaplin (1933)
"2001 - Uma odisséia no espaço", Stanley Kubrick (1968)
"Encurralado", Steven Spielberg (1972)
"Blade Runner", Ridley Scott (1982)
"Exterminador do Futuro I", James Cameron (1984)
"Exterminador do Futuro II", James Cameron (1991)
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