domingo, 21 de julho de 2013

Histórico crítico das manifestações no Brasil - Ana Monique Moura

Histórico crítico das manifestações no Brasil


É preciso que, para além de ler os clássicos teóricos do Comunismo, se pense com eles e para além deles, no sentido de conduzir uma força de reflexão política e não uma comunidade hagiográfica do pensamento da tradição 
19/07/2013
Ana Monique Moura*

É algo muito ambíguo o que tem ocorrido e permanece ocorrendo nas ruas do nosso país, tamanha é essa ambiguidade, que veio confundindo teóricos, políticos, sociólogos de todo o mundo sobre como definir este panorama. Não é gratuito que se revele ambíguo e, portanto, difícil, pois como diria Maiakovski: “o mar da história é agitado”. Estamos acostumados a definir a história e o nosso tempo ainda de maneira linear e definir os períodos de protestos de maneira um tanto didática, mas é preciso que nos penetremos nesta confusão para compreender o que está acontecendo. Com rigores de observações unilaterais isso fica inviável. É preciso aceitar a agitação do período e ver nisso a possibilidade de sua compreensão e não a sua ausência. Nosso momento é um enredo truncado, com definições sempre falíveis, caso tentem repetir abordagens.
Não valeria dizer, por outro lado, que pareça uma revolução, mas também não é, inteiramente ou apenas, uma festa. A manifestação que aconteceu para impedir a fixação do aumento dos R$ 0,20 centavos a mais nas passagens de ônibus não é inovadora. Há anos, desde a nossa desconfiável insurgente democracia, movimentos estudantis vem enrijecendo lutas, cuja minoria participativa é inegável. Dentro das próprias universidades em que estudam são, com frequência, rechaçados pela infinita maioria esmagadora de outros estudantes que se dizem apolíticos, ou afastados do envolvimento, assim dizem, “sem retorno”, com a politização de ideias.
Em triste contrapartida, os movimentos estudantis atuais, claro, preciso ser ferrenha quanto a isso, de fato, carecem de uma envergadura mais política e menos emotiva. A folia da indignação é o que se mostra muito mais presente nas atividades dos grupos que saem às ruas há anos. Esta ausência de envergadura, que significa, em outros termos, não apenas a ausência de leitura e compreensão tanto do jovem quanto do velho Marx, e de outros autores como Bakunin, Kropotkin, aliada à leitura de autores atualíssimos sobre o tema, como o Badiou, Derrida (dentre tantos outros), mas a própria produção intelectual dos grupos. Não há, e se há, não é suficiente.
Porém o recuo da maioria infinita não se dá pelo reconhecimento desta falta de envergadura política, e sim porque, neles, a possibilidade de envergadura política nem mesmo alça algum feixe de possível presença. Se parece claro a despolitização de muitos jovens estudantes que se põem muitas vezes na luta, o que diríamos da grande massa que se aparte desta minoria?
Embora este fato triste, e ao mesmo tempo, até esperado, em se tratando de um país em que a preguiça intelectual ainda é grande problema, é preciso que haja sempre desconfiança na negação da luta por parte dos demais em relação às lutas dos estudantes contemporâneos.
Ainda que haja ingenuidade intelectual, há uma arma que eles sabem utilizar muito bem, que é o discurso da indignação, coisa que já critiquei em outro texto publicado aqui (Os índios e o Brasil: Da história às redes sociais). Uma indignação que se revela, muitas vezes, como apelativa e acrítica. A linguagem publicitária do sistema culminou por estar presente em muitos dos discursos que deveriam se propor como um discurso mais politizado. Hoje, por fim, usarmos os termos “propaganda de esquerda” ou “propaganda de direita” é mais vigente do que o discurso político para ambos.
Mas é preciso que a luta de uma esquerda crítica de si mesma permaneça, que resista aos titubeios e disfarces das novíssimas esquerdas que não tem nada de esquerda. O que ocorre é que a direita se apropria das conquistas da esquerda e assume tais conquistas como próprias do direitismo político. Aqui a propaganda tem um papel fundamental, ao divulgar que sem a direita, as conquistas adquiridas não receberiam a gestão devida.

I

Por fim, a esquerda começa a ser objeto da direita e o perigo se mostra tanto pior no momento em que a esquerda entra na ingenuidade de que está promovendo alguma luta política inovadora, quando, em verdade, está sendo aproveitada pelos direitistas. O mínimo de esclarecimento intelectual aqui bastaria aos entusiastas de esquerda para evitar isso.
É preciso que, para além de ler os clássicos teóricos do Comunismo, se pense com eles e para além deles, no sentido de conduzir uma força de reflexão política e não uma comunidade hagiográfica do pensamento da tradição. Como já pensou muito bem o Maurice Ravel, “a tradição é a personalidade dos imbecis”. E o próprio Marx guarda como cerne de sua crítica da economia política uma fundamental crítica à religião. Com toda certeza, ele não esperaria dos comunistas uma genuflexão ao seu pensamento como uma doutrina a ser honrada. É pensamento crítico, não religiosidade. Isto é básico. Esta atitude ingênua acarreta na ridicularização cada vez mais declarada da “atitude política” por parte dos jovens que se dizem de esquerda.
Deve-se entender que, se o nosso país ficou repleto de pessoas nas ruas isso não se deu de uma maneira estritamente revolucionária. Houve uma propaganda de direita que se aproveitou dessa conjuntura e ali, nas universidades, os estudantes que sempre estiveram nos protestos ficaram ingenuamente felizes com a repercussão, e os que sempre recuavam agora aderiam às manifestações.
Há muitos que criticam as manifestações por uma ausência de direcionamento de pautas, mas esta crítica é um tanto falha. Em um país cujas decisões políticas são todas ao mesmo tempo muito falhas, as manifestações só podem também revelar esse mosaico de decisões a serem corrigidas. O problema não é o pluralismo das manifestações, mas o pluralismo carnavalesco de decisões que se pretendem políticas para o país. As manifestações são apenas uma decorrência natural de um palácio de governo no qual a bacanal de leis irrisórias acontece com frequência e vem se acumulando a cada ano, desde Fernando Collor.
O problema é que a política do Brasil é feita por analfabetos políticos que alimentam outros analfabetos políticos, no sentido Brechtiano. Se engana quem acha que está à frente de modo crítico disso por levantar um cartaz nas ruas. O neoliberalismo consiste em aderir a todas as tomadas contrárias a ele para, ao invés de conservar e tornar-se estéril a partir da coibição, ampliar e multiplicar seu mercado a partir da aceitação. Isso explica porque, dentre tantas outras coisas, Marx é emblema do Cartão Mastercard em Chemntiz na Alemanha, porque Che Guevara é emblema de camisas de marca, e o personagem de V de vingança é mercadoria querida dos manifestantes brasileiros que, ao comprarem o produto, geram royalties para a Warner.
Estamos encurralados. E não digo isso solitariamente. De uma maneira sofisticada e através da literatura, George Orwell, na obra “1984”, retrata antecipadamente muito bem isso. E sua crítica ao poder é tão ferrenha que deixa ser possível para nós pensar até mesmo a esquerda sendo comparada ao que a direita tem feito conosco. E nos colocamos a pensar: o que a direita e/ou o fascismo fez é o que também a esquerda e/ou o comunismo faria se chegasse ao investimento do delírio do poder, a saber, controlaria a todos para evitar que outra forma de poder viesse à tona. Há a descrição do controle de mídia, jornais, a comunicação do grande irmão, o famoso Big Brother, com os seus governados que são, por isso mesmo, manipulados.
Penso que a saída para a ampliação da reflexão disso, se houvesse ou se houver, estaria, em alguma boa porcentagem, na revisão de algumas propostas feitas por Bakunin, na sua critica radical ao estado, uma vez que o problema reside, como vemos, na estrutura desse poder que existe, ao menos teoricamente, para nos tonar mais dignos de uma vida social, o que é uma douta mentira. A erradicação do estado seria, de acordo com Bakunin, a erradicação das possibilidades de uso excessivo de poder sobre os outros, para o bem ou para o mal. Ah, mas isto, nos dizem, é anarquia! Sim, é anarquia contra anarquias soberanas, anteriormente fundadas.
É necessário saber que não estamos em Maio de 68, mas muito provavelmente estejamos em 1984 de George Orwell, mas no estilo bem abrasileirado.

II

Pergunto a vocês, leitores comunistas ou anarquistas, seria essa juventude brasileira, que está nas ruas, politizada? Em um recente artigo na Revista Carta Capital (edição 754), Vladimir Safatle chega a ser muito peremptório ao dizer que essa é a época de uma consciência política no Brasil. Com exceção do brilhantismo de seus pensamentos, não vejo meios para concordar com uma ideia tão deslumbrada.
Em primeiro lugar uma manifestação política em forma de protesto não pode ser esperada. Ela deve chegar de surpresa. Neste caso, a manifestação de fato que protestou aconteceu uma única vez, a primeira manifestação em São Paulo. Mas, em um lugar no qual os militares esperam, em sua maioria, de maneira tranquila, em que boa parte das lojas da cidade fecha, como ter voz de impacto a manifestação que ali chega? Em segundo lugar, como pode haver uma consciência política se a juventude está despolitizada, mesmo quando ousa falar muito mais por euforia, do que por compreensão, de política? No meio desta juventude se metem os outros jovens direitistas cantando e muitas vezes fazendo os outros de esquerda também cantar “deitado eternamente em berço esplêndido”. Ora, como dizer que estamos deitados eternamente em berço esplêndido? O Movimento Sem Terra esteve presente nas manifestações e foi vaiado em muitas cidades. Seu grito foi substituído pelo “deitado eternamente em berço esplêndido”. Que tipo de consciência política é essa que está indo às ruas?
Não importa o que façamos, se o fazemos numa apelação e firmação do poder do estado, o resultado disso será reconfigurado pelo neoliberalismo atual e que se imiscui nas decisões políticas do país. Aqui, a teoria do “menos estado” no pensamento liberal cai por terra. O próprio estado detém princípios liberais, não nos enganemos.
Um exemplo. Eugênio Gudin, economista brasileiro na época do presidente Café Filho (década de 50) defendeu a teoria de que recuar e diminuir os impostos não resolve nenhum problema. O que precisa ser feito é procurar um meio do país ter condições de conviver com o aumento dos impostos. Mas, talvez ele não tenha pensado que, em geral, se há aumento de impostos, algo vai mal na economia do país. É necessário que se reveja o número significativo que um governo paradoxalmente tirânico e populista investe em subsídios favorecedores de uma ideia de política da caridade, como o programa Bolsa Família, que substitui uma política que deveria nascer, sem esse tipo de estado, reinventada para uma emancipação da educação, trabalho e liberdade intelectual, no meu ver, importantíssima para um país doente pelo analfabetismo político. A medida dos subsídios não só serve para investir na separação entre o que se toma como “o miserável que recebe ajuda” daquele que não precisa de ajuda, como serve para enrijecer o poder do estado a insuflar no povo a necessidade de ter um estado que lhe seja, sempre e cada vez mais, superior, temível e, na ajuda, divino, tal como Deus. Não foi a toa que Bakunin associou o estado ao significado de Deus.

III

Acredito que das ideias anárquicas, já que seu todo não consegue se manter, o que deve ser mantido, e o mais importante, é a recusa permanente do poder excessivo de Estado sobre decisões que comprometem a dignidade social do povo. Quanto ao Socialismo, nós sabemos, não podemos esbravejar tal nome com tanta alegria. Hitler já o fez suficientemente a ponto de não ser preciso nenhuma referência ingênua a esse termo. Se trata de um termo atualmente muito genérico, a ponto de perder o sentido. Também não falemos, com raras exceções, em Comunismo, não porque não tenha dado certo na União Soviética, como muitos argumentam (o que me parece um argumento de certa forma vazio, já que o capitalismo também não deu certo), mas porque sua proposta deve ser repensada. Proponho que possamos não apenas falar, e sim por em prática algo próprio do Comunismo, que é a crítica à alienação e, acrescente-se, que essa crítica não seja feita à alienação da massa, mas também e com urgência à própria alienação dos intelectuais e dos estudantes em relação às suas posturas atualmente doutrinadas.
A crítica contemporânea à alienação começa muito bem com uma crítica aos donos da mídia, que favorecem um estado, para além de corrupto, mafioso. Mas é preciso lembrar que esta crítica não deve ser feita com um elogio a uma outra mídia alternativa, embora ela precise existir, mas não isoladamente. O protesto deve estar seguido de uma negação a todo e qualquer tipo de hegemonia midiática sobre nossas cabeças frágeis e preguiçosas. Nada pior e mais deplorável do que repetir o termo “revolução”, os nomes “Marx” e “Che Guevara” sem saber o que tudo isso significa e fazê-lo tão só por uma atitude hagiográfica. Uma mídia que viesse substituir a Globo, mas que para se manter manipulasse um novo povo, provocaria um espírito tão fascista como o que a Globo injetou em seu público. Ocorreria o que de fato Orwell mostrou muito bem em seu romance “1984”, como falei acima.
Muitas pessoas estiveram e estão segurando seus cartazes coloridos e sorrindo nas ruas. Pareciam e parecem condizer com alguma mensagem subliminar que diz: “Sorria, a manifestação está sendo manipulada”. E a pesar disso, sorriem. E é perfeito para essas pessoas que esteja tudo odiável e que o ódio seja festejado, até que as eleições cheguem com suas novas promessas teatrais supostamente acolhedoras de um país de “risonhos lindos campos”, que em verdade, está abandonado por leis que deplora seu povo há muitos anos. Nada mudou, o que precisa mudar é tão somente a recepção do que não é nada novo. No dizer mais poético de Maiakovski, “... Não há nada de novo no rugir das tempestades”.
*Ana Monique Moura é doutoranda em Filosofia - UFPB. Autora do livro “Entre Kant, Filosofias e Arte”, 2012.

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