Calabar, sem controvérsias
Calabar, sem controvérsias
Por Rachel Rocha de Almeida Barros
“Calabar”, do cineasta pernambucalagoano Hermano Figueiredo, vencedor
do DocTv 2006 em Alagoas, é um documento contemporâneo. Trata do
episódio histórico da invasão holandesa no nordeste brasileiro, no
século XVII, e da controversa figura do mulato(?), do caboclo(?), do
pardo(?) Domingos Ferreira Calabar que fez a produção historiográfica
nacional e local se dividir em tentativas de classificá-lo ora como
traidor, ora como herói.
É um documento contemporâneo não apenas porque trata o referido
episódio histórico a partir de um conjunto de interpretações produzidas
no presente, mas justamente pela consciência aguda que demonstra ter do
processo.
Elegantemente construído a partir da querela histórica, não se
prende, entretanto, a nenhum dos estereótipos sugeridos; ao contrário: é
elaborado de modo a ampliar o horizonte de compreensão sobre o
episódio, distinguindo, através de depoimentos pontuais de
especialistas, questões fundamentais a esta nova compreensão, como a
necessária distinção entre os discursos da memória e aqueles da
história; ou a explicitação da idéia de que optar por uma ou outra
classificação (herói ou traidor) esclarece pouco sobre a controversa
figura de Calabar e, menos ainda, sobre aquele momento histórico.
Fruto de uma pesquisa que Hermano Figueiredo já vinha desenvolvendo
há alguns anos, contando com a assessoria do professor Alberto Flores,
do curso de História da UFAL, o filme resultou num surpreendente produto
que demonstra a força e a importância da elaboração de linguagem do
documentário brasileiro (e alagoano), e que se inscreve, entre outras,
numa tradição de pesquisa embasada, e na necessária sensibilidade e
capacidade de articulação do roteirista e do diretor para dialogar com
os discursos transversais que a contemporaneidade produz sobre seu
passado.
Além da acertada abordagem sobre o tema, de sua aguda sensibilidade
contemporânea, o filme de Hermano Figueiredo oferece soluções plásticas
que incorporam outras linguagens, como a do teatro de sombras; histórias
em quadrinhos, estes e outros recursos criativos, que o cineasta maneja
com maestria, elegem um caminho narrativo que o possibilita tratar o
tema pelo caminho não-ficcional.
Descentrando referências de modo invulgar, como quando possibilitou o
uso de ex-votos num contexto inteiramente novo: o do esquartejamento;
ou lançando mão de fusões de imagens e de sons para explicitar o
emaranhado de interrogações que pairam sobre o personagem, o filme de
Hermano Figueiredo, mesmo se debruçando sobre o século XVII, faz
dialogar com o século XXI.
Todos os depoimentos que estão em *Calabar* acrescentam algo de
importante, de fundamental ao texto fílmico e à reflexão contemporânea
sobre o episódio, com os discursos realizando uma costura argumentativa
sutil e consistente. Essas falas, e as poesias de Ledo Ivo e de Maurício
de Macedo que integram o filme reverenciam a reflexão local sobre o
episódio. Mostram uma Alagoas pensante, pulsante; demonstram o quanto,
mesmo peninsulares, nos interessamos por nós. Calabar rompe com nosso
isolamento porque nos faz dialogar.
A importância de *Calabar* enquanto registro contemporâneo – numa
terra sem memória como tem sido tantas vezes classificada Alagoas – é
grande; isto porque são iniciativas como esta que possibilitam que
Alagoas dialogue com seu passado, com sua história, que desenvolva a
consciência de que está fazendo história também quando reflete sobre a
história.
Mais do que ausência de memória, o problema em Alagoas parece ser,
mais exatamente, o de uma ausência de práticas de rememoração. Memória
temos, em abundância, e reunimos por aqui tantos fatos fundadores e
fundantes que Alagoas poderia ser referência nacional da vida política
brasileira. Mas essa é uma outra história, com desdobramentos e
conseqüências que a torna longa demais para ser tratada aqui.
De toda forma, para todos os que se ressentem da falta de mediadores
sociais em Alagoas, da falta de ação por parte de pessoas que pelo
capital cultural que detêm espera-se que se empenhem na construção dos
necessários *links*que toda sociedade tem que desenvolver para garantir,
de forma equilibrada, que o diálogo entre suas várias referências
constitutivas se estabeleça, o filme de Hermano é uma grata surpresa. E o
Teatro Gustavo Leite estava lotado (uma média de 1500 pessoas) na noite
do dia 29 de março, quando o documentário foi lançado oficialmente para
a sociedade alagoana numa grande demonstração de força tanto do filme
como do Programa DOCTV.
Evidentemente, este sucesso não teria sido completo sem a produção
competente de Regina Barbosa que, além de produtora de cinema é também
escritora, editora e dirigente da Ideário Comunicação e Cultura, esse
engenho de boas idéias de onde o filme foi gerado. Teve ainda a
qualificada participação da Staff Vídeo em sua fase de execução. Importa
dizer que coordenar a bom termo um projeto como este, demonstra o
amadurecimento da produção cultural local e sua capacidade de nos
oferecer excelentes frutos.
* É professora de Antropologia e pesquisadora do Laboratório da Cidade e do Contemporâneo – LACC/ICS/UFAL.
Calabar: um homem sem rosto para a posteridade mas que projetou seu nome numa controvérsia histórica para séculos depois da sua morte.
O Brasil do século XVII, cobiçado por holandeses e franceses, era colônia de Portugal que, por sua vez, fora anexado à Coroa Espanhola. É neste contexto que se passa o conflito envolvendo Calabar. Profundo conhecedor de toda costa do Nordeste e de boa parte dos sertões, sua deserção foi um grande reforço para as conquistas holandesas no Brasil.
Vídeo documentário vencedor do Prêmio DOC TV 2006. Tem a direção de Hermano Figueiredo. Movimentos rebuscados de câmera, cenário expressionista, poemas, história em quadrinhos, teatro de sombras conferem plasticidade, ritmo e estilo à narrativa.
O documentário não se prende a dicotomia herói-traidor, faz um apanhado do imaginário criado em torno da figura de Calabar. Aborda os diversos discursos, contrapondo opiniões divergentes, analisando a importância destes acontecimentos na história do Brasil, do nordeste e de Alagoas.
Conheça o texto: “Calabar, sem controvérsias” por Rachel Rocha de Almeida Barros.
DADOS TÉCNICOS:
Vídeo documentário vencedor do Prêmio DOC TV 2006.
Direção: Hermano Figueiredo.
Coordenação de Produção: Regina Barbosa
Duração: 50min.
Ano: 2007. Maceió/AL.
Produzido pela Staff Vídeo, em parceria com a Ideário.
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