Relatório da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios, 1930
O prefeito Graciliano Ramos presta contas do exercício de 1929 ao Governador de Alagoas
Sr. Governador.
Esta exposição é talvez desnecessária. O balanço que remeto a V. Ex.a
mostra bem de que modo foi gasto em 1929 o dinheiro da Prefeitura
Municipal de Palmeira do Índios. E nas contas regularmente publicadas há
pormenores abundantes, minudência que excitaram o espanto benévolo da
imprensa.
Isto é, pois, uma reprodução de fatos que já narrei, com algarismo e
prova de guarda-livros, em numerosos balancetes e nas relações que os
acompanharam.
RECEITA – 96:924$985
No orçamento do ano passado houve supressão de várias taxas que
existiam em 1928. A receita, entretanto, calculada em 68:850$000,
atingiu 96:924$985.
E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores
largamente concedidos a pessoa que não precisavam deles e pus termo à
extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente
raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores.
Não me resolveria, é claro, a pôr em prática no segundo ano de
administração a eqüidade que torna o imposto suportável. Adotei-a logo
no começo. A receita em 1928 cresceu bastante. E se não chegou à soma
agora alcançada, é que me foram indispensáveis alguns meses para
corrigir irregularidades muito sérias, prejudiciais à arrecadação.
DESPESA – 105:465$613
Utilizei parte das sobras existentes no primeiro balanço.
ADMINISTRAÇÃO – 22:667$748
Figuram 7:034$558 despendidos com a cobrança das rendas, 3:518$000
com a fiscalização e 2:400$000 pagos a um funcionário aposentado. Tenho
seis cobradores, dois fiscais e um secretário. Todos são mal
remunerados.
GRATIFICAÇÕES – 1:560$000
Estão reduzidas.
CEMITÉRIO – 243$000
Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em
pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei,
necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora
útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os
munícipes que não reclamavam.
ILUMINAÇÃO – 7:800$000
A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um
contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à
claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos
até a luz que a lua nos dá.
HIGIENE – 8:454$190
O estado sanitário é bom. O posto de higiene, instalado em 1928,
presta serviços consideráveis à população. Cães, porcos e outros bichos
incômodos não tornaram a aparecer nas ruas. A cidade está limpa.
INSTRUÇÃO – 2:886$180
Instituíram-se escolas em três aldeias. Serra da Mandioca, Anum e
Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada
por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos.
Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As
aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma
lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a
funcionar regularmente, como as outras.
Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a
habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e
decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.
UMA DÍVIDA ANTIGA – 5:210$000
Entregaram-me, quando entrei em exercício, 105$858 para saldar várias
contas, entre elas uma de 5:210$000, relativa a mais de um semestre que
deixaram de pagar à empresa fornecedora de luz.
VIAÇÃO E OBRAS PÚBLICAS – 56:644$495
Os gatsos com viação e obras públicas foram excessivos. Lamento,
entretanto, não me haver sido possível gastar mais. Infelizmente a nossa
pobreza é grande. E ainda que elevemos a receita ao dobro da
importância que ela ordinariamente alcançava, e economizemos com
avareza, muito nos falta realizar. Está visto que me não preocupei com
todas as obras exigidas. Escolhi as mais urgentes.
Fiz reparos nas propriedades do Município, remendei as ruas e cuidei especialmente de viação.
Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi, tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria.
Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi, tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria.
ESTRADA PALMEIRA A SANTANA
Abandonei as trilhas dos caetés e procurei saber o preço duma estrada
que fosse ter a Sant’Ana do Ipanema. Os peritos responderam que ela
custaria aí uns seiscentos mil-réis ou sessenta contos. Decidi optar
pela despesa avultada.
Os seiscentos mil-réis ficariam perdidos entre os barrancos que
enfeitam um caminho atribuído ao defunto Delmiro Gouveia e que o Estado
pagou com liberalidade: os sessenta contos, caso eu os pudesse arrancar
ao povo, não serviriam talvez ao contribuinte, que, apertado pelos
cobradores, diz sempre não ter encomendado obras públicas, mas a alguém
haveriam de servir. Conheci os trabalhos em janeiro. Estão prontos vinte
e cinco quilômetros. Gastei 26:871$930.
TERRAPLENO DA LAGOA
Este absurdo, este sonho de louco, na opinião de três ou quatro sujeitos que sabem tudo, foi concluído há meses.
Aquilo, que era uma furna lôbrega, tem agora, terminado o aterro, um
declive suave. Fiz uma galeria para o escoamento das águas. O pântano
que ali havia, cheio de lixo, excelente para a cultura de mosquitos,
desapareceu. Deitei sobre as muralhas duas balaustradas de cimento
armado. Não há perigo de se despenhar um automóvel lá de cima.
O plano que os técnicos indígenas consideravam impraticável era muito mais modesto.
Os gastos em 1929 montaram a 24:391$925.
SALDO – 2:504$319
Adicionando-se à receita o saldo existente no balanço passado e subtraindo-se a despesa, temos 2:504$319.
2:365$969 estão em caixa e 138$350 depositados no Banco Popular e Agrícola de Palmeira.
PRODUÇÃO
Dos administradores que me precederam uns dedicaram-se a obras urbanas; outros, inimigos de inovações, não se dedicaram a nada.
Nenhum, creio eu, chegou a trabalhar nos subúrbios.
Encontrei em decadência regiões outrora prósperas; terras aráveis
entregues a animais, que nelas viviam quase em estado selvagem. A
população minguada, ou emigrava para o Sul do País ou se fixava nos
municípios vizinhos, nos povoados que nasciam perto das fronteiras e que
eram para nós umas sanguessugas. Vegetavam em lastimável abandono
alguns agregados humanos.
E o palmeirense afirmava, convicto, que isto era a princesa do
sertão. Uma princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça,
muito suja e muito escavada.
Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei
as patifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha;
suprimi, nas questões rurais, a presença de certos intermediários, que
estragavam tudo; facilitei o transporte; estimulei as relações entre o
produtor e o consumidor.
Estabeleci feiras em cinco aldeias: 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fora.
Canafístula era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco.
Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola.
MIUDEZAS
Não pretendo levar ao público a idéia de que os meus empreendimentos
tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas. Mas afinal existem.
E, comparados a outros ainda menores, demonstram que aqui pelo interior
podem tentar-se coisas um pouco diferentes dessas invisíveis sem grande
esforço de imaginação ou microscópio.
Quando iniciei a rodovia de Sant’Ana, a opinião de alguns munícipes
era de que ela não prestava porque estava boa demais. Como se eles não a
merecessem. E argumentavam. Se aquilo não era péssimo, com certeza
sairia caro, não poderia ser executado pelo Município.
Agora mudaram de conversa. Os impostos cresceram, dizem. Ou as obras
públicas de Palmeira dos Índios são pagas pelo Estado. Chegarei a
convencer-me de que não fui eu que as realizei.
BONS COMPANHEIROS
Já estou convencido. Não fui eu, primeiramente porque o dinheiro
despendido era do povo, em segundo lugar porque tornaram fácil a minha
tarefa uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários
miseráveis.
Quase tudo foi feito por eles. Eu apenas teria tido o mérito de escolhê-los e vigiá-los, se nisto houvesse mérito.
MULTAS
Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. Isto prova que as coisas não vão bem.
E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades
passam despercebidas. As infrações que produziram soma considerável para
um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram
denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada
a sofrer a opressão dos que vão trepando.
Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram
as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de
resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um
desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia
enforcar-me.
Sei bem que antigamente os agentes municipais eram zarolhos. Quando
um infeliz se cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma
resolução heróica; encomendava-se a Deus e ia à capital. E os Prefeitos
achavam razoável que os contraventores fossem punidos pelo Sr.
Secretário do Interior, por intermédio da polícia.
REFORMADORES
O esforço empregado para dar ao Município o necessário é vivamente
combatido por alguns pregoeiros de métodos administrativos originais. Em
conformidade com eles, deveríamos proceder sempre com a máxima
condescendência, não onerar os camaradas, se rigorosos apenas com os
pobre-diabos sem proteção, diminuir a receita, reduzir a despesa aos
vencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar esse
luxo de obras públicas à Federação, ao Estado ou, em falta destes, à
Divina Providência.
Belo programa. Não se faria nada, para não descontentar os amigos: os
amigos que pagam, os que administram, o que hão de administrar. Seria
ótimo. E existiria por preço baixo uma Prefeitura bode expiatório,
magnífico assunto para commérage de lugar pequeno.
POBRE POVO SOFREDOR
É uma interessante classe de contribuintes, módica em número, mas
bastante forte. Pertencem a ela negociantes, proprietários, industriais,
agiotas que esfolam o próximo com juros de judeu.
Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão.
Como ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros.
Como ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros.
PROJETOS
Tenho vários, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o aumento
da produção e, conseqüentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de
chuva ou de estiagem arruínam as searas, desmantelam tudo – e os
projetos morrem.
Iniciarei, se houver recursos, trabalhos urbanos.
Há pouco tempo, com a iluminação que temos, pérfida, dissimulavam-se
nas ruas sérias ameaças à integridade das canelas imprudentes que por
ali transitassem em noites de escuro.
Já uma rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança, arrastadas por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolando de cachoeira em cachoeira e danificaram na viagem braços, pernas, costelas e outros órgãos apreciáveis.
Já uma rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança, arrastadas por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolando de cachoeira em cachoeira e danificaram na viagem braços, pernas, costelas e outros órgãos apreciáveis.
Julgo que, por enquanto, semelhantes perigos estão conjurados, mas
dois meses de preguiça durante o inverno bastarão para que eles se
renovem.
Empedrarei, se puder, algumas ruas.
Tenho também a idéia de iniciar a construção de açudes na zona
sertaneja. Mas para que semear promessas que não sei se darão frutos?
Relatarei com pormenores os planos a que me referia quando eles
estiverem executados, se isto acontecer.
Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É
uma pretensão moderada, realizável. Se não realizar, o prejuízo não será
grande.
O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na
Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos.
Paz e prosperidade.
Palmeira dos Índios, 11 de janeiro de 1930.
GRACILIANO RAMOS
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