quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O ASSASSINATO DE ZUMBI: O SADISMO DE UM CRIME - PROFESSOR ALOISIO VILELA DE VASCONCELOS -UFAL

O ASSASSINATO DE ZUMBI: O SADISMO DE UM CRIME*
1. Qual a Estrutura Física de Zumbi?

A trajetória de Zumbi, apesar de ter sua origem na violência, no ódio e no preconceito então existentes, contém uma rara beleza, pois se trata de uma história onde mistério, religião e habilidade militar misturam-se. Pode, por isso, ser dividida em três fases distintas: a da infância, a da adolescência e, finalmente, a adulta.
A fase da infância e da adolescência é um misto de mistério e religião. Explico-me: narra-se em duas cartas que existiam na casa da marquesa de Cadaval que “foram copiadas em 1978 a pedido do historiador gaúcho Décio Freitas” antes que fossem “roubadas por um pesquisador disfarçado de paralítico em cadeiras de rodas”, que quando Francisco Barreto era governador da capitania de Pernambuco, Brás da Rocha Cardoso, em 1655, comandou uma expedição punitiva aos Palmares onde foi capturada uma criança negra recém-nascida. Esta criança foi entregue a um padre chamado Antônio de Melo que, movido pela compaixão, a batizou com o nome de Francisco (talvez porque seu batismo realizou-se no dia destinado a este Santo) e a criou e educou nos moldes destinados exclusivamente aos filhos brancos dos poderosos senhores de engenho, ensinando-a português e latim e, inclusive, tornando-a coroinha, nas colinas verdejantes de Porto Calvo de onde se ouvia o cantar das aves nas florestas dos Palmares.
Numa bela noite de luar de 1670, “Francisco”, já então com quinze anos de idade, movido pelo amor humano e divino, é claro que à sua gente e aos deuses africanos, tomou uma decisão inaudita: internou-se nas matas dos Palmares e se transformou em Zumbi.
Bela história! Mas, não parece uma lenda?
Porque a necessidade da participação do branco na formação do grande guerreiro negro?
Já a fase adulta de sua vida que inicia com a fuga, e termina em 20 de novembro de 1695, com o seu assassinato, encontra-se fartamente documentada e caracteriza-se pelas sucessivas derrotas militares, morais e diplomáticas impostas a seus adversários, pela não aceitação do Pacto de Cucaú e, principalmente, por sua permanência nos Palmares respondendo a altura os absurdos e infames castigos aplicados a seus semelhantes nas áreas urbanas e rurais da então Capitania de Pernambuco.
Que brusca mudança na personalidade do coroinha! Em vez de uma vida sossegada e cheia de paz sob a proteção da Igreja, optou por ficar em Palmares onde não havia nada para ele a não ser a guerra, a dor e o sofrimento.
O único documento, até aqui descoberto, que fornece elementos que nos possibilitam respondermos a pergunta inicial, é o denominado por Décio Freitas de “A Cabeça de Zumbi”. Nele afirma-se que o físico de Zumbi era raquítico, pois o mesmo possuía “um corpo pequeno e magro” (1) (Fig. 01).
Esta afirmação difere completamente do que diz “A Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador D. Pedro de Almeida, de 1675 a 1678 onde, entre outras informações, consta que os chefes palmarinos eram “corpulentos e valentes todos” (2).
As duas fontes históricas foram produzidas pelos vencedores. Porque, então, a aparente disparidade? É que a primeira foi escrita quando o líder negro já estava morto, por pessoas que lhe devotavam um ódio imortal e por isso tinha o objetivo de diminuir, de desmoralizar. É necessário, portanto cautela em sua interpretação porque, ao invés do que afirma o referido documento, “O Tigre dos Palmares” poderia ter sido um guerreiro alto e de porte atlético.
Os objetivos da segunda eram diferentes: propalar uma das maiores mentiras da história dos Palmares disseminando a notícia de que o capitão Fernão Carrilho havia destruído a “República Negra”, supervalorizando assim as realizações do então governador da Capitania de Pernambuco, D. Pedro de Almeida e as habilidades militares do mencionando capitão.
Fig. 01. Zumbi: “corpo magro e pequeno”?

2. Onde, Quando e Quem feriu Zumbi?

____Os mais renomados historiadores da “Tróia Negra” atribuem a Manuel Lopes Galvão o mérito de ter sido o primeiro a ferir Zumbi, à bala. Este ferimento “o deixaria coxo”, ou seja, aleijado de uma perna (Fig. 02). Como o combate realizou-se em 1676, num ponto de impossível localização, pois situado no vastíssimo território que constituía os Palmares, Zumbi tinha apenas vinte e um anos.
____Não considero esta opinião totalmente inaceitável. Acho, porém, que ela é passível de discussão por dois motivos principais: primeiro, porque um dos aspectos da vida militar de Zumbi que mais impressionam é a sua extrema mobilidade: ele percorria a imensa e difícil região palmarina com uma rapidez inacreditável. Em pequenos espaços de tempo irrompia nos mais diversos e distantes locais. Fato que, por várias vezes, deixou seus algozes perplexos.
____Nós perguntamos: como uma pessoa que guiava guerreiros, conduzia e cuidava de mulheres, velhos, velhas e crianças e ainda era coxo, ou seja, “aleijado de uma perna”, podia se movimentar tão rápido nas intrincadíssimas e perigosíssimas selvas palmarinas?
____De imediato surgem duas explicações: ou existia mais de uma pessoa com o nome de Zumbi, ou o único Zumbi existente não foi ferido em 1676! Mas, se Zumbi não foi ferido em 1676 por Manuel Lopes Galvão, quando ele foi ferido, por quem e onde?
____Nossa resposta iremos buscar nos itens 9º e 11º do documento número 54, do livro “As Guerras nos Palmares” (subsídios para a sua história), de Ernesto Ennes, onde Domingos Jorge Velho afirma que por ocasião da queda da Fortaleza em 06 de fevereiro de 1694, Zumbi não morreu, e sim, “levou duas pelouradas” e que sua morte deu-se somente “em vinte de novembro de seiscentos e noventa e cinco” (3).
____O que significa pelourada? Segundo o Aurélio, pelourada é um “tiro de pelouro” e pelouro é uma “bala de ferro ou de pedra, esférica, empregada antigamente em peças de artilharia”.
____Em 1694, Zumbi tinha trinta e nove anos de idade. Por maior que seja a nossa perplexidade ou mesmo nosso conservadorismo sabemos que esta hipótese além de explicar determinados fatos é perfeitamente plausível.
____Às vezes a verdade encontra-se tão perto de nós que deixamos de enxergá-la.
Fig. 02. Ferimento de Zumbi: Manuel Lopes Galvão ou Domingos Jorge Velho?

3. O assassinato de Zumbi

____Os que fugiram dos engenhos para a região que ficou conhecida com o nome de Palmares encontraram uma segunda Canaã, uma segunda Terra Prometida. Apesar das profundas cicatrizes deixadas pela saudade do torrão natal e pelos desumanos tratos recebidos, se contentaram com a tranqüilidade de nossos bosques, com a fartura de nossa fauna, com a fragosidade de nossa flora e com a exuberância de nosso solo. Queriam apenas viver em paz. Serem tratados como seres humanos. Ter o direito a terra. Trabalhá-la e dela retirar sua subsistência. Não puderam porque os ditos supercivilizados da época lhes impuseram um pavoroso regime: o do terrorismo. Achando pouco a quantidade de terras e de escravos que possuíam, invadiam seu território, incendiavam suas plantações, destruíam suas criações, queimavam suas povoações, raptavam suas crianças e mulheres, matavam seus guerreiros e, os poucos que sobreviviam, eram submetidos a uma bárbara escravidão. As perdas causadas por estas investidas eram terríveis. Para evitá-las eram obrigados a viver como ciganos, ou seja, em constante processo de mudança. Se por um lado este comportamento “resolvia” a situação, por outro, só piorava, pois cada vez que isto acontecia tudo o que havia sido construído através de árduo trabalho, era deixado para trás, destruído. É difícil, muito difícil, viver sempre recomeçando.
____Cansado de tantos “começar de novo” Zumbi decidiu se fixar em determinado ponto, construir uma fortaleza e partir para o “tudo ou nada”. Tinha consciência de que se vencesse o que se conhece por “Lei Áurea” entraria em vigor em 1694, pois a repercussão de sua vitória seria tão grande que todos os escravos se rebelariam e a escravidão acabaria.
____Sabedoras desta decisão as tropas luciferinas se puseram em marcha. Nunca se vira tão grande exército. Tantos demônios juntos. Sitiaram a fortaleza. Após vinte e dois dias de combates, onde coragem, valentia e inteligência não faltaram a seus defensores, o gigantesco baluarte erguido para defender o direito de ser livre e de ser humano é incendiado. Ardeu como no passado arderam as fogueiras da Inquisição, o castelo de Montségur, com os cátaros e como no futuro arderia os fornos de Auschwitz com os judeus! Que destino trágico para a liberdade!
____Zumbi, não podia morrer. Era fundamental que permanecesse vivo. De sua incontestável liderança, indômita bravura e insubstituível presença física dependia a reunificação do pouco que restara. Seus guerreiros o defenderam e ele, mesmo atingido por “duas pelouradas” (4) conseguiu livrar-se da morte.
____Internou-se nas matas mais inóspitas a procura de um lugar seguro. De um lugar onde pudesse recobrar suas forças, colocar sua consciência e seu raciocínio em ordem e reagrupar seus guerreiros. Encontrou-o e lá construiu o seu esconderijo que consistia de “um sumidouro que artificiosamente havia fabricado” (5).
____Aos poucos a localização de seu esconderijo tornou-se razoavelmente conhecida por outros que se tornariam seus piores inimigos: aqueles que apesar de fazerem parte de seu círculo intimo eram, na realidade, verdadeiros parias, calhordas e judas camuflados, pois só esperavam uma única oportunidade para mostrar sua verdadeira face.
____Um deles, chamado Antônio Soares, em troca de mercês, foi quem guiou o capitão André Furtado de Mendonça ao esconderijo. Neste local, onde Zumbi “pelejou valorosa ou desesperadamente, matando um homem ferindo alguns e não querendo render-se...” (6), foi cometido um dos mais hediondos e sádicos crimes de que se tem notícia em toda a história do Brasil: Zumbi foi assassinado por “quinze ferimentos de bala e muitos de lanças vendo-se ainda que o membro da virilidade do dito negro se havia cortado e enfiado na boca também lhe faltando um olho e se lhe cortara a mão direita” (7) (Fig. 03).

Fig. 03. O assassinato de Zumbi: o sadismo de um crime

____O cadáver foi levado para Porto Calvo. Testemunhas confirmaram tratar-se de Zumbi. Como anteriormente, por inúmeras vezes, afirmara-se, falsamente, terem conseguido sua morte, resolveram mandar um negro decepar sua cabeça (Fig. 04) e salgá-la “com sal fino” (Fig. 05) para enviá-la ao “Governador de Pernambuco Caetano de Melo de Castro” (8) como prova irrefutável e definitiva de sua morte.

Fig. 04: Decapitação da cabeça de Zumbi
Fig. 05: A Cabeça de Zumbi sendo salgada

____O governador ao receber o macabro presente determinou que “se pusesse em um pau, no lugar mais público daquela praça, a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos, e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam-no imortal” (9) (Fig. 06).

Fig. 06: A Cabeça de Zumbi espetada em um pau

____Porque lhe deceparam a cabeça? Cortaram-lhe a mão direita? Arrancaram-lhe um olho? Castraram-no e enfiaram o pênis em sua boca? Porque tanto sadismo?
____Não devemos procurar as respostas em explicações desmoralizantes. Estas são totalmente descabidas. As explicações estão nos documentos que nos informam, direta ou indiretamente, o porque deste crime. Em resumo, poderíamos dizer que tamanho sadismo foi devido ao fato de Zumbi, com toda a razão, ter, na medida do possível, pago com a mesma moeda todo o mal que fizeram a sua gente.
____Qual não foi a surpresa dos escravos ao verem a cabeça de seu amado líder naquele estado? Aquela seria mesmo a sua cabeça? Não estariam querendo enganá-los? Como poderiam matá-lo se ele era imortal?
____Zumbi estava realmente morto. É impossível imaginar o tamanho da dor, do desespero e da falta de esperança que sua morte causou aos escravos. Ele não era fisicamente imortal como acreditavam. Imortal era e continua sendo a sua luta, pois neste País os grandes e pequenos engenhos com suas grandes e pequenas senzalas foram simplesmente substituídos pelas grandes e pequenas cidades, aquelas com suas favelas e estas com seus mutirões.
____Zumbi é um exemplo a ser rigorosamente seguido.

Aloisio Vilela de Vasconcelos
Bibliografia
(1) FREITAS, Décio. República dos Palmares: pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII. Maceió: EDUFAL: IDEÁRIO, 2004, doc. 43, p. 193.
(2) Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador D. Pedro de Almeida, de 1675 a 1678. RIHGB, tomo XXII, 1859, pp. 303-329.
(3) ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares (Subsídios para a sua história). Rio de Janeiro. Companhia Editora Nacional, 1938, doc. 54, pp. 317-344.
(4) Ibid.p. 323.
(5) Ibid.p. 261.
(6) Idem.
(7) FREITAS, Décio. República dos Palmares: pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII. Maceió: EDUFAL: IDEÁRIO, 2004, doc. 43, p. 193.
(8) Idem.
(9) ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares (Subsídios para a sua história). Rio de Janeiro. Companhia Editora Nacional, 1938, doc. 39, pp. 260-261.

(*) Este artigo foi publicado, parcialmente ou totalmente, nos seguintes meios de comunicação:

a. Portal Caruaru. 26.12.2005;
b. InformeSergipe. Variedades. 30/11/2005;
c. http://www.vicosadealagoas.com.br/pg_livros.htm#.


http://www.aloisiovilela.com/artigos.htm 

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