O ASSASSINATO DE ZUMBI: O SADISMO DE UM CRIME*
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1. Qual a Estrutura Física de Zumbi? | |||
A trajetória de Zumbi, apesar de ter sua origem na violência,
no ódio e no preconceito então existentes, contém uma rara
beleza, pois se trata de uma história onde mistério, religião
e habilidade militar misturam-se. Pode, por isso, ser dividida
em três fases distintas: a da infância, a da adolescência
e, finalmente, a adulta.
A fase da infância e da adolescência é um misto de mistério
e religião. Explico-me: narra-se em duas cartas que existiam
na casa da marquesa de Cadaval que “foram copiadas em 1978
a pedido do historiador gaúcho Décio Freitas” antes que fossem
“roubadas por um pesquisador disfarçado de paralítico em cadeiras
de rodas”, que quando Francisco Barreto era governador da
capitania de Pernambuco, Brás da Rocha Cardoso, em 1655, comandou
uma expedição punitiva aos Palmares onde foi capturada uma
criança negra recém-nascida. Esta criança foi entregue a um
padre chamado Antônio de Melo que, movido pela compaixão,
a batizou com o nome de Francisco (talvez porque seu batismo
realizou-se no dia destinado a este Santo) e a criou e educou
nos moldes destinados exclusivamente aos filhos brancos dos
poderosos senhores de engenho, ensinando-a português e latim
e, inclusive, tornando-a coroinha, nas colinas verdejantes
de Porto Calvo de onde se ouvia o cantar das aves nas florestas
dos Palmares.
Numa bela noite de luar de 1670, “Francisco”, já então
com quinze anos de idade, movido pelo amor humano e divino,
é claro que à sua gente e aos deuses africanos, tomou uma
decisão inaudita: internou-se nas matas dos Palmares e se
transformou em Zumbi.
Bela história! Mas, não parece uma lenda?
Porque a necessidade da participação do branco na formação
do grande guerreiro negro?
Já a fase adulta de sua vida que inicia com a fuga,
e termina em 20 de novembro de 1695, com o seu assassinato,
encontra-se fartamente documentada e caracteriza-se pelas
sucessivas derrotas militares, morais e diplomáticas impostas
a seus adversários, pela não aceitação do Pacto de Cucaú e,
principalmente, por sua permanência nos Palmares respondendo
a altura os absurdos e infames castigos aplicados a seus semelhantes
nas áreas urbanas e rurais da então Capitania de Pernambuco.
Que brusca mudança na personalidade do coroinha! Em
vez de uma vida sossegada e cheia de paz sob a proteção da
Igreja, optou por ficar em Palmares onde não havia nada para
ele a não ser a guerra, a dor e o sofrimento.
O único documento, até aqui descoberto, que fornece
elementos que nos possibilitam respondermos a pergunta inicial,
é o denominado por Décio Freitas de “A
Cabeça de Zumbi”. Nele afirma-se que o físico de Zumbi
era raquítico, pois o mesmo possuía “um corpo pequeno e magro”
(1) (Fig. 01).
Esta afirmação difere completamente do que diz “A Relação das guerras feitas aos Palmares
de Pernambuco no tempo do Governador D. Pedro de Almeida,
de 1675 a 1678” onde, entre outras informações, consta que os chefes
palmarinos eram “corpulentos e valentes todos” (2).
As duas fontes históricas foram produzidas pelos vencedores.
Porque, então, a aparente disparidade? É que a primeira foi
escrita quando o líder negro já estava morto, por pessoas
que lhe devotavam um ódio imortal e por isso tinha o objetivo
de diminuir, de desmoralizar. É necessário, portanto cautela
em sua interpretação porque, ao invés do que afirma o referido
documento, “O Tigre dos Palmares” poderia ter sido um guerreiro
alto e de porte atlético.
Os objetivos da segunda eram diferentes: propalar uma
das maiores mentiras da história dos Palmares disseminando
a notícia de que o capitão Fernão Carrilho havia destruído
a “República Negra”, supervalorizando assim as realizações
do então governador da Capitania de Pernambuco, D. Pedro de
Almeida e as habilidades militares do mencionando capitão.
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Fig. 01. Zumbi: “corpo magro e pequeno”?
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2. Onde, Quando e Quem
feriu Zumbi?
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____Os mais renomados historiadores
da “Tróia Negra” atribuem a Manuel Lopes
Galvão o mérito de ter sido o primeiro a ferir
Zumbi, à bala. Este ferimento “o deixaria coxo”,
ou seja, aleijado de uma perna (Fig. 02). Como o combate realizou-se
em 1676, num ponto de impossível localização,
pois situado no vastíssimo território que constituía
os Palmares, Zumbi tinha apenas vinte e um anos.
____Não considero esta opinião totalmente inaceitável. Acho, porém, que ela é passível de discussão por dois motivos principais: primeiro, porque um dos aspectos da vida militar de Zumbi que mais impressionam é a sua extrema mobilidade: ele percorria a imensa e difícil região palmarina com uma rapidez inacreditável. Em pequenos espaços de tempo irrompia nos mais diversos e distantes locais. Fato que, por várias vezes, deixou seus algozes perplexos. ____Nós perguntamos: como uma pessoa que guiava guerreiros, conduzia e cuidava de mulheres, velhos, velhas e crianças e ainda era coxo, ou seja, “aleijado de uma perna”, podia se movimentar tão rápido nas intrincadíssimas e perigosíssimas selvas palmarinas? ____De imediato surgem duas explicações: ou existia mais de uma pessoa com o nome de Zumbi, ou o único Zumbi existente não foi ferido em 1676! Mas, se Zumbi não foi ferido em 1676 por Manuel Lopes Galvão, quando ele foi ferido, por quem e onde? ____Nossa resposta iremos buscar nos itens 9º e 11º do documento número 54, do livro “As Guerras nos Palmares” (subsídios para a sua história), de Ernesto Ennes, onde Domingos Jorge Velho afirma que por ocasião da queda da Fortaleza em 06 de fevereiro de 1694, Zumbi não morreu, e sim, “levou duas pelouradas” e que sua morte deu-se somente “em vinte de novembro de seiscentos e noventa e cinco” (3). ____O que significa pelourada? Segundo o Aurélio, pelourada é um “tiro de pelouro” e pelouro é uma “bala de ferro ou de pedra, esférica, empregada antigamente em peças de artilharia”. ____Em 1694, Zumbi tinha trinta e nove anos de idade. Por maior que seja a nossa perplexidade ou mesmo nosso conservadorismo sabemos que esta hipótese além de explicar determinados fatos é perfeitamente plausível. ____Às vezes a verdade encontra-se tão perto de nós que deixamos de enxergá-la. |
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Fig. 02. Ferimento de Zumbi: Manuel Lopes
Galvão ou Domingos Jorge Velho?
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3. O assassinato de
Zumbi
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____Os
que fugiram dos engenhos para a região que ficou conhecida
com o nome de Palmares encontraram uma segunda Canaã,
uma segunda Terra Prometida. Apesar das profundas cicatrizes
deixadas pela saudade do torrão natal e pelos desumanos
tratos recebidos, se contentaram com a tranqüilidade de
nossos bosques, com a fartura de nossa fauna, com a fragosidade
de nossa flora e com a exuberância de nosso solo. Queriam
apenas viver em paz. Serem tratados como seres humanos. Ter
o direito a terra. Trabalhá-la e dela retirar sua subsistência.
Não puderam porque os ditos supercivilizados da época
lhes impuseram um pavoroso regime: o do terrorismo. Achando
pouco a quantidade de terras e de escravos que possuíam,
invadiam seu território, incendiavam suas plantações,
destruíam suas criações, queimavam suas
povoações, raptavam suas crianças e mulheres,
matavam seus guerreiros e, os poucos que sobreviviam, eram submetidos
a uma bárbara escravidão. As perdas causadas por
estas investidas eram terríveis. Para evitá-las
eram obrigados a viver como ciganos, ou seja, em constante processo
de mudança. Se por um lado este comportamento “resolvia”
a situação, por outro, só piorava, pois
cada vez que isto acontecia tudo o que havia sido construído
através de árduo trabalho, era deixado para trás,
destruído. É difícil, muito difícil,
viver sempre recomeçando.
____Cansado de tantos “começar de novo” Zumbi decidiu se fixar em determinado ponto, construir uma fortaleza e partir para o “tudo ou nada”. Tinha consciência de que se vencesse o que se conhece por “Lei Áurea” entraria em vigor em 1694, pois a repercussão de sua vitória seria tão grande que todos os escravos se rebelariam e a escravidão acabaria. ____Sabedoras desta decisão as tropas luciferinas se puseram em marcha. Nunca se vira tão grande exército. Tantos demônios juntos. Sitiaram a fortaleza. Após vinte e dois dias de combates, onde coragem, valentia e inteligência não faltaram a seus defensores, o gigantesco baluarte erguido para defender o direito de ser livre e de ser humano é incendiado. Ardeu como no passado arderam as fogueiras da Inquisição, o castelo de Montségur, com os cátaros e como no futuro arderia os fornos de Auschwitz com os judeus! Que destino trágico para a liberdade! ____Zumbi, não podia morrer. Era fundamental que permanecesse vivo. De sua incontestável liderança, indômita bravura e insubstituível presença física dependia a reunificação do pouco que restara. Seus guerreiros o defenderam e ele, mesmo atingido por “duas pelouradas” (4) conseguiu livrar-se da morte. ____Internou-se nas matas mais inóspitas a procura de um lugar seguro. De um lugar onde pudesse recobrar suas forças, colocar sua consciência e seu raciocínio em ordem e reagrupar seus guerreiros. Encontrou-o e lá construiu o seu esconderijo que consistia de “um sumidouro que artificiosamente havia fabricado” (5). ____Aos poucos a localização de seu esconderijo tornou-se razoavelmente conhecida por outros que se tornariam seus piores inimigos: aqueles que apesar de fazerem parte de seu círculo intimo eram, na realidade, verdadeiros parias, calhordas e judas camuflados, pois só esperavam uma única oportunidade para mostrar sua verdadeira face. ____Um deles, chamado Antônio Soares, em troca de mercês, foi quem guiou o capitão André Furtado de Mendonça ao esconderijo. Neste local, onde Zumbi “pelejou valorosa ou desesperadamente, matando um homem ferindo alguns e não querendo render-se...” (6), foi cometido um dos mais hediondos e sádicos crimes de que se tem notícia em toda a história do Brasil: Zumbi foi assassinado por “quinze ferimentos de bala e muitos de lanças vendo-se ainda que o membro da virilidade do dito negro se havia cortado e enfiado na boca também lhe faltando um olho e se lhe cortara a mão direita” (7) (Fig. 03). |
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Fig. 03. O assassinato de Zumbi: o sadismo
de um crime
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____O
cadáver foi levado para Porto Calvo. Testemunhas confirmaram
tratar-se de Zumbi. Como anteriormente, por inúmeras
vezes, afirmara-se, falsamente, terem conseguido sua morte,
resolveram mandar um negro decepar sua cabeça (Fig. 04)
e salgá-la “com sal fino” (Fig. 05) para
enviá-la ao “Governador de Pernambuco Caetano de
Melo de Castro” (8) como prova irrefutável e definitiva
de sua morte.
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Fig. 04: Decapitação da cabeça
de Zumbi
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Fig. 05: A Cabeça de Zumbi sendo salgada
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____O
governador ao receber o macabro presente determinou que “se
pusesse em um pau, no lugar mais público daquela praça,
a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos, e atemorizar
os negros que supersticiosamente julgavam-no imortal”
(9) (Fig. 06).
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Fig. 06: A Cabeça de Zumbi espetada
em um pau
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____Porque
lhe deceparam a cabeça? Cortaram-lhe a mão direita?
Arrancaram-lhe um olho? Castraram-no e enfiaram o pênis
em sua boca? Porque tanto sadismo?
____Não devemos procurar as respostas em explicações desmoralizantes. Estas são totalmente descabidas. As explicações estão nos documentos que nos informam, direta ou indiretamente, o porque deste crime. Em resumo, poderíamos dizer que tamanho sadismo foi devido ao fato de Zumbi, com toda a razão, ter, na medida do possível, pago com a mesma moeda todo o mal que fizeram a sua gente. ____Qual não foi a surpresa dos escravos ao verem a cabeça de seu amado líder naquele estado? Aquela seria mesmo a sua cabeça? Não estariam querendo enganá-los? Como poderiam matá-lo se ele era imortal? ____Zumbi estava realmente morto. É impossível imaginar o tamanho da dor, do desespero e da falta de esperança que sua morte causou aos escravos. Ele não era fisicamente imortal como acreditavam. Imortal era e continua sendo a sua luta, pois neste País os grandes e pequenos engenhos com suas grandes e pequenas senzalas foram simplesmente substituídos pelas grandes e pequenas cidades, aquelas com suas favelas e estas com seus mutirões. ____Zumbi é um exemplo a ser rigorosamente seguido. Aloisio Vilela de Vasconcelos
Bibliografia
(1) FREITAS, Décio. República
dos Palmares: pesquisa e comentários em documentos históricos
do século XVII. Maceió: EDUFAL: IDEÁRIO,
2004, doc. 43, p. 193.
(2) Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador D. Pedro de Almeida, de 1675 a 1678. RIHGB, tomo XXII, 1859, pp. 303-329. (3) ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares (Subsídios para a sua história). Rio de Janeiro. Companhia Editora Nacional, 1938, doc. 54, pp. 317-344. (4) Ibid.p. 323. (5) Ibid.p. 261. (6) Idem. (7) FREITAS, Décio. República dos Palmares: pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII. Maceió: EDUFAL: IDEÁRIO, 2004, doc. 43, p. 193. (8) Idem. (9) ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares (Subsídios para a sua história). Rio de Janeiro. Companhia Editora Nacional, 1938, doc. 39, pp. 260-261. (*) Este artigo foi publicado, parcialmente ou totalmente, nos seguintes meios de comunicação: a. Portal Caruaru. 26.12.2005; b. InformeSergipe. Variedades. 30/11/2005; c. http://www.vicosadealagoas.com.br/pg_livros.htm#. http://www.aloisiovilela.com/artigos.htm |
Academia Portocalvense de História, Letras e Arte – com sigla A.P.H.L.A, fundada em 26 de abril de 2012, Porto Calvo, Alagoas, é uma academia de letras brasileira. Fundada por intelectuais alagoanos, entre eles Jefferson Murilo Palmeira Chaves , Carlos Henrique Palmeira Chaves, Amaro Patrúcio, Adelmo Monteiro, Jossana Cabral, Severino dos Ramos Barbosa, Cláudia da Cunha entre outros.
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
O ASSASSINATO DE ZUMBI: O SADISMO DE UM CRIME - PROFESSOR ALOISIO VILELA DE VASCONCELOS -UFAL
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