sexta-feira, 25 de julho de 2014

A “VISÃO CASTANHA DO MUNDO”: A INFLUÊNCIA DE SILVIO ROMERO NA CONSTRUÇÃO DA CULTURA NACIONAL DE ARIANO SUASSUNA.

A “VISÃO CASTANHA DO MUNDO”: A INFLUÊNCIA DE SILVIO ROMERO NA CONSTRUÇÃO DA CULTURA NACIONAL DE ARIANO SUASSUNA.

ELAINE CUNHA – ALUNA DO CURSO DE HISTÓRIA DA UFPE

A partir de meados do século XIX emergem novos olhares sobre a identidade nacional. Valorizando os aspectos culturais caracterizantes de cada espaço geográfico, estas novas perspectivas buscavam o equilíbrio ou a gênese do que poderia ser considerado como singularmente brasileiro. Dentro deste contexto, em 18 de Outubro de 1970 é lançado no Recife o Movimento Armorial, cuja proposta é a divulgação da cultura popular do Nordeste através de releituras de homens e mulheres pertencentes à elite intelectual nordestina. Porém, apesar de serem novos modelos sobre a identidade nacional, desvinculando-se dos princípios racistas e deterministas do clima, tais perspectivas ainda mantêm elementos semelhantes às anteriores. Como exemplo, tomamos a “visão castanha do mundo” apresentada pelo articulador do Movimento Armorial, Ariano Suassuna em sua Tese de Livre Docência A Onça Castanha e A Ilha Brasil1na qual observa-se a influência de Sílvio Romero e de sua principal obra História da Literatura Brasileira.

Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero nasceu em 21 de abril de 1851 em Lagarto no interior de Sergipe falecendo em 25 de setembro de 1914 no Rio de Janeiro. Reconhecido como um pensador polígrafo, por tramitar nos diversos setores do conhecimento, deixou uma vasta produção intelectual, mantendo nela a principal característica de combater, ao seu ver, obras e pensamentos que não transmitiam ao leitor os caracteres formadores do caráter2 brasileiro através das correntes cientificistas da época. Por isto, criticou os trabalhos de Manoel Bomfim, do historiador português Teófilo Braga, Araripe Júnior e Machado de Assis, além de políticos e outros escritores como José
de Alencar. Pertencente à chamada geração de 1870, ao lado de Tobias Barreto, Fausto Cardozo, Tito Lívio e Castro e Clóvis Bevilacqua, formou um movimento filosófico dentro da Faculdade de Direito do Recife denominado de Escola do Recife. Junto às Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, tal escola introduziu os pensamentos darwinista, haeckelenista e spenceriano no Brasil.
Partindo do princípio de que o indivíduo é fruto de seu tempo, a análise das releituras feitas pelos jovens insatisfeitos com a política monarquista e com a sociedade agrária contribui para uma melhor compreensão da postura e da força de Sílvio Romero nas discussões identitárias. Estes jovens tinham como fontes as obras de autores europeus que discutiam o evolucionismo, o positivismo, e outros modelos de pensamento que tinham em comum a valorização dos critérios científicos nos argumentos postos em discussão. Em outras palavras, as explicações sociais, históricas, geográficas e até literárias deveriam comportar análises cientificas da época para serem entendidas como confiáveis. Portanto, estas teorias foram selecionadas sistematicamente, e não de
forma aleatória, seguindo os interesses políticos e culturais das camadas letradas, preocupadas em articular os ideários estrangeiros à realidade local3Desta forma, se observarmos o período no qual não só Sílvio Romero, mas Euclides da Cunha e Tobias Barreto estão inseridos, perceberemos um momento conflituoso, com rupturas e transformações na História do Brasil. Logo, ao se proporem adequar as teorias européias à realidade nacional eles tinham consciência de algumas mudanças em seus argumentos, mas não caracterizando paradoxos ou ambigüidades, mas adaptações.
A principal influência nas obras daqueles autores não se referia diretamente às questões sociais, literárias ou políticas. A teoria evolucionista publicada em 1859 por Charles Darwin, tentava compreender o indivíduo enquanto ser biológico, forjado sob a ação da natureza e do aprendizado, quando aquele ainda estava subjugado pelo ambiente. Esta teoria foi percebida por filósofos alemães e ingleses, entre eles Ernst Haeckel e Herbert Spencer respectivamente, como o suporte necessário para a desvinculação das explicações religiosas, além de romper com a imagem
paradisíaca do Novo Mundo4. Renan, Taine, Spencer, Buckle difundiram a concepção de evolução

da sociedade no decorrer da História através da interação da raça, do meio e do clima. Compreenderam a Europa como o ápice da civilização, que deveria ser o exemplo a seguir. Viram no homem branco europeu a força necessária para guiar qualquer sociedade ao progresso. Enfim, estabeleceram teorias racistas que partiam de estudos biológicos, moldando-os a uma necessidade de auto-afirmação de si mesmos, de suas nações, tradições e culturas sob um discurso denominado de científico. Os pensadores brasileiros, inclusive Sílvio Romero, tentaram produzir nas Américas outros discursos, usando os mesmos moldes europeus, não só com o intuito de se assemelharem a eles como também de se distanciarem do restante da sociedade brasileira – a que era mestiça, analfabeta e pobre.
As principais leituras de Sílvio Romero eram os trabalhos de Herbert Spencer, Tobias Barreto e do historiador inglês Thomas Buckle, cuja análise sobre o Brasil foi trabalhada pelo escritor sergipano num capítulo A Filosofia da História de Buckle e o Atraso do Povo Brasileiro em sua obra História da Literatura Brasileira. Este historiador compreendeu as sociedades humanas através de um conceito de evolução cultural, no qual quanto mais estas civilizações estivessem distantes das ocidentais mais primitivas seriam. Sílvio Romero transcreveu algumas observações de Buckle a respeito do Brasil – apesar deste autor nunca ter aportado no país, utilizando-se de cronistas – nas quais, os recursos naturais são apontados como motivos, ao lado do estagio primitivo dos índios, do atraso da nação. No entanto, apesar de concordar com tal atraso, Sílvio Romero critica o historiador inglês por não valorizar os papéis da raça, do clima, do meio e da imitação estrangeira como fatores determinantes para uma civilização. O problema do Brasil para Romero não estaria na riqueza dos nossos recursos naturais, mas no aspecto étnico, sendo sua
posição diante do mestiço ambígua. Nos primeiros trabalhos de Sílvio Romero há a idealização de uma homogeneidade branca no futuro, uma “vitória” dela sobre as raças negra e indígena, marcando então, o definitivo progresso brasileiro. Neste processo, a miscigenação é fundamental, pois em três ou quatro séculos o branqueamento se concluiria; logo, o mestiço é um ganho evolutivo em direção à civilização. No entanto, sua


Na obra História da Literatura Brasileira (1888), o escritor sergipano faz não somente uma análise literária, mas histórica e etnológica, tentando com isto compreender o desenvolvimento racial e cultural do povo e apresentar um modelo de caráter capaz de guiá-lo para uma civilização, quando então se assemelharia às nações européias. Sua crítica literária segue a proposição de Hippolyte Taine emHistória da Literatura Inglesa (1863) onde o naturalismo foi incluído como ferramenta para aquela crítica, tendo como eixos a raça, o meio e o momento. Tanto para Sílvio Romero quanto para Araripe Júnior, Veríssimo, Capistrano de Abreu e Rocha Lima as obras literárias são tomadas como ‘documentos’ que revelam a psicologia de um século ou raça, ao
representar a sociedade e a natureza que as produziram6Nas fases descritas pelo autor sergipano,

a sua obra de 1888 compreende a terceira caracterizada pela crítica imparcial, eqüidistante da paixão pessimista e da paixão otimista que nos têm feito andar às tontas7No entanto, compreende- se atualmente a não existência de uma imparcialidade, sugerindo-se nesta fase um ceticismo que no decorrer dos anos, e verificados nos seus artigos posteriores, aumenta com mais ou menos vigor, mas não retrocedendo a algum tipo de otimismo. Em sua obra de 1888, a mestiçagem é vista de forma positiva, pois não há como negar a ocorrência da mesma em nossa sociedade.
A partir da sua concepção de civilização – a raça, o meio, o clima e a imitação estrangeira interagindo num mesmo ritmo – Romero entende o desenvolvimento da literatura da seguinte forma: período de formação (1500-1750); período de desenvolvimento autonômico (1750-1830); período de transformação romântica (1830-1870) e período de reação critica (1870 em diante)8O critério desta periodização é a articulação daquela teoria com a produção, no decorrer da História, de expressões literárias elitistas e populares, vendo a literatura como um organismo que se move em direção à sua evolução.
Toda literatura desdobrada no curso dos séculos oferece, destarte, um espetáculo de um germe, dum organismo que se desenvolve, já sob o estimulo de forças internas [a raça], inerentes a si mesmo, já sob pressão de correntes estranhas [o meio e a imitação estrangeira] que partem dum ou mais pontos do horizonte intelectual do mundo num tempo dado9.

Para então entender a dinâmica deste ser, o autor buscará no folclore, nas expressões populares os registros que lhe possibilitariam traçar o desenvolvimento da cultura. Um interesse a princípio movido pela curiosidade de sua infância, onde escutava, no engenho modesto dos avós,


Posteriormente, em diversas obras o pensador sergipano discute o mestiçamento da cultura, registrando cantos, contos, danças, apresentando características reveladoras das convergências entre índios, negros e portugueses em vários espaços: Pernambuco, Maranhão, Goiás, Pará, Amazonas e outros. É interessante notar que Sílvio Romero não se ocupa em analisar criticamente os exemplos populares, levantando apenas os elementos étnicos e os seus pontos de contato. No entanto, ele lamenta a falta no cancioneiro brasileiro de referências aos mais notáveis fatos da nossa história social e política e aos seus homens representativos mais eminentes11Os seus estudos de coleta e registro da cultura popular são vistos por muitos autores como marcos, pois Romero não só apresentou a literatura erudita, mas também a popular como fonte para análise de uma nacionalidade12.
Em A Onça Castanha e a Ilha Brasil, Ariano Suassuna não construirá o seu modelo cultural-

nacional a partir de uma visão naturalista da literatura e da arte como Romero. Sua visão castanha do mundo é simbolizada por uma onça castanha que abarca, na opinião de seu criador, aquele mestiçamento que ao longo da nossa história começou no sertão13 e vai em direção ao litoral, não como um contraponto, mas como um guardião de uma fusão mais original, verdadeira. Ao trazer essa cultura original para o litoral, inicia-se um novo processo de fusão que posteriormente o escritor paraibano representará como uma onça malhada. Para então construir esta formação/fusão,
Ariano Suassuna buscará na literatura elementos que mostram a criação no futuro de uma cultura castanha, composta pelas presenças indígenas, africanas, européias; primeiro no sertão, depois no litoral, transformando esse espaço real em imaginário: a Ilha Brasil. Porém, enquanto Romero buscava os pontos de contato para a formação do seu caráter nacional, Suassuna contempla na Ilha junção de contrários. Ou seja, como povos distintos, com suas respectivas culturas se uniram – e ainda se unem, no seu entender – para formar o que seria posteriormente entendido como brasileiro. No entanto, na nossa perspectiva, isto não significaria uma divergência entre estes autores, pois na construção de um modelo identitário ocorrem os dois processos: o de convergência – características semelhantes entre povos distintos têm uma assimilação mais rápida dentro de uma cultura nova – e o de divergência – sendo ele mais lento, no entanto necessário, já que nele se apresentarão os

Como se pode perceber existem dois fatores que ligam esta construção diretamente a Sílvio Romero: a visão de um mestiçamento cultural como fonte para uma identidade nacional e o uso da literatura como um guia na sua elaboração. Outro ponto se refere a como Ariano entende o Movimento Armorial: uma continuação da Escola do Recife, ou mais precisamente, dessa grande Escola Nordestina que, há tanto tempo, vem se preocupando com a criação de uma Arte, de uma

A busca por uma identificação cresce com o estado brasileiro no séc. XIX e adentra o XX ainda como um objetivo a ser alcançado: afinal o que é ser brasileiro? O que nos caracteriza como tal?No primeiro período a resposta inevitavelmente passaria pela raça, pelo meio, pelo território. No entanto, a partir de meados do segundo a solução estaria na compreensão da cultura popular e erudita unidas numa só, compondo uma identidade com raízes no passado, numa fusão, para tornar- se algo novo, único, singular no futuro. Tanto em História da Literatura Brasileira quanto em A Onça Castanha e a Ilha Brasil essa cultura ainda está sendo forjada, as visões de Sílvio Romero e de Ariano Suassuna não conseguem, seja porque ainda não há uma raça brasileira – no entender de Romero – seja porque o sertão ainda não se fundiu com o litoral – na perspectiva de Suassuna – vislumbrar para o agora uma identidade nacional. E esta nos debates atuais, adquire um caráter menos homogeneizador, isto é, hoje valoriza-se a questão do multiculturalismo, das diversas expressões – populares ou elitistas – tal como um caleidoscópio cultural composto de diversas partes, cores e imagens para se apresentar como algo novo, porém, múltiplo.

Notas


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  1. SUASSUNA, Ariano. A Onça Castanha e a Ilha Brasil: uma reflexão sobre a cultura brasileira. Recife: Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Tese de Livre Docência para ministrar disciplina História da Cultura Brasileira.
  2. Tanto Marilena Chauí quanto Dante Moreira Leite vêem diferenças entre caráter identidade nacionais: o primeiro estaria ligado a uma psicologia geral, de um sentimento nacional, ou como os românticos alemães entendiam, um
    espírito que guiava as nações rumo ao progresso, sendo portanto, particular a cada uma. Já a identidade é composta por
    singularidades raciais, naturais, culturais que cada povo produz. O primeiro termo é característico do século XIX e o segundo do XX.
  3. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo,
    Companhia das Letras, 2000.
  4. Desde a sua descoberta, ao Novo Mundo foram atribuídas diversas perspectivas, desde Éden, Eldorado a Inferno. Com o advento do Iluminismo, perdurou a noção de degenerescência moral e social de seus habitantes, através das obras de Buffon, De Pauw e Raynal.
  5. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São
    Paulo: Companhia das Letras, 1991. P.64
  6. VENTURA, Roberto. op cit, p. 88.
  7. ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. 5a. ed. Rio de Janeiro, José Olimpio, tomo I, 1953. p.34.
  8. ROMERO, Sílvio. op cit, p. 59.
  9. ROMERO, Sílvio. op cit, p. 298.
  10. ROMERO, Sílvio apud MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero. Dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000. p. 32.
  11. ROMERO, Sílvio. op cit, p. 191.
  12. Dentre as suas obras que tratam a cultura popular destacam-se Cantos populares do Brasil (1883) e Estudos sobre a poesia popular no Brasil (1888).
  13. Ariano Suassuna não compartilha com o discurso de uma região delimitada pela seca e denominada de Nordeste, para o autor do Auto da Compadecida “sertão” designa o interior do Brasil constituído por tudo
    aquilo que não fosse o litoral ou distante dele.
  14. Disto, entende-se o porquê de num mesmo país, como o Brasil, ocorrerem tantas expressões distintas: cada uma representa a predominância de um povo sobre aquele local diante de outro. Os diversos maracatus podem explicar isto: diferentes povos africanos, com culturas, experiências sociais e mentalidades divergentes em espaços e períodos de
    formação distintos. Logo, quando um pensador, do XIX ou meados do XX, afirma estar no futuro a nossa brasilidade,
    na realidade, ele está dizendo que este processo de convergência ainda não terminou.
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Bibliografia


CHAUI, Marilena. Brasil. Mito Fundador e sociedade autoritária. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2001.

COLLICHIO, Terezinha Alves Ferreira. Miranda Azevedo e o Darwinismo no Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da Sagração Armorial. Ariano Suassuna e o Movimento Armorial (1970-76). Recife, Editora Universitária da UFPE, 2000.

LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional. 4 ed. São Paulo, Pioneira, 1983.

MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero. Dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000.

ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. 5 ed, I. Rio de Janeiro, José Olimpio, 1953.

SUASSUNA, Ariano. A Onça Castanha e a Ilha Brasil: uma reflexão sobre a cultura brasileira. Recife: Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Tese de Livre Docência, 1976.

SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. IN: Revista Pernambucana de Desenvolvimento. Recife no 4(1), jan – jun. pp.39-64.

VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870- 1914. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

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