quinta-feira, 4 de setembro de 2014

EM DEFESA DA HONRA: A EMANCIPAÇÃO DE ALAGOAS NO IMAGINÁRIO INSTITUCIONAL- Ann Marie Buyers


EM DEFESA DA HONRA:

A EMANCIPAÇÃO DE ALAGOAS NO IMAGINÁRIO INSTITUCIONAL

IN DEFENSE OF THE HONOR:

THE EMANCIPATION OF ALAGOAS IN THE INSTITUTIONAL IMAGINARY

Ann Marie Buyers*

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Resumo: O presente artigo tece considerações críticas acerca das versões sobre a emancipação política de Alagoas, concebidas no decorrer dos séculos XIX e XX pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) e o Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano (IAGA), para demonstrar que o embate ideológico ocorrido entre essas instituições dificultou a compreensão do fato e resultou em interpretações sem veracidade comprovada.

Palavras-chave: Alagoas; Pernambuco; Emancipação; Revolução de 1817.

Abstract: This article presents a criticism of the versions on the political emancipation of Alagoas, designed during the nineteenth and twentieth centuries by the Brazilian Geography and History Institute (IHGB), Historical and Archaeological Institute of Pernambuco (IAHGP) and the Archaeological and Geographical Alagoas (IAGA), to demonstrate the ideological clash that occurred between these institutions hindered the understanding of fact and interpretations resulted in no proven truth.

Key-words: Alagoas; Pernambuco; Emancipation; 1817 rebellion.

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No dia 31 de outubro de 1901, o historiador Francisco Augusto Pereira da Costa apresentou aos membros do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) o seu mais recente ensaio: Estudo das Causas Eficientes da Emancipação Política de Alagoas. Pereira da Costa, conhecido por seu temperamento esquentado, estava uma fera!

A cólera do respeitável sócio benemérito do IAHGP foi provocada pela divulgação de uma coletânea de artigos comemorativos ao natalício da emancipação de Alagoas, intitulada “Alagoas Livre Homenagem -1817- 1901”, divulgada por uma obscura Sociedade Protetora dos Alagoanos, sediada no Recife. Para ele, não tinha cabimento continuar comemorando a data na era republicana, vez que assinalava a traição aos revolucionários de 1817 e o retorno à vassalagem ao rei em troca de mercês1.

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* Licenciada em História pela Universidade Federal de Alagoas e pesquisadora autônoma na área de História de Alagoas. Atualmente desenvolve projeto de pesquisa sobre a Revolução de 1817 em Alagoas e no Nordeste.
  1. ANTONINO, Virgilio. Relatório sobre o Estudo das Causas Eficientes da Emancipação Política de Alagoas, que o Dr. F.A. Pereira da Costa apresentou ao Instituto A.G. Pernambucano em sessão de 31 de outubro de 1901 In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. Maceió: Oficinas Fonseca, 1907, p. 19.

    O Estudo, obra menor na extensa produção do historiador, hoje é publicação rara, de difícil acesso à consulta. Contudo, foi possível resgatar parte do seu conteúdo através dos Anais Pernambucanos e de um Relatório publicado em 1907 na revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano (IAGA).

    Pereira da Costa, nativista exacerbado, atribuiu aos alagoanos um papel assaz mesquinho na Revolução de 1817:

    rebelara-se a criatura contra o criador, e firmada a sua emancipação, constituíram-se logo os alagoanos, por inconfessáveis juízos, inimigos dos pernambucanos, e passando essa odiosidade como um triste legado de geração a geração, é ainda hoje [início do século XX] mantido com as mais exaltadas manifestações hostis. Aquela sua emancipação, porém, fez então explodir francamente, ostensivamente, tais sentimentos, mas que desde muito se via suas tendências francamente manifestadas2.

    O autor prossegue verberando que a vilania praticada pelos alagoanos em 1817 chegara ao paroxismo do ódio e à ambição desenfreada por honrarias e bens materiais graças aos exemplos históricos da mais vil ralé, representada pelo “atrevido” Domingos Fernandes Calabar (1632) e de principais como José de Barros Pimentel, capitão-mor de Porto Calvo, que apoiou os mascates do Recife em 17103.
    Por seguir tais exemplos de traição à “metrópole pernambucana”, a elite de Alagoas não aderiu à heróica causa republicana, preferindo manter-se fiel ao rei. Na contrarrevolução, os patriotas da comarca foram presos, “insultados, injuriados, algemados” e enviados à Bahia, sendo um deles assassinado a caminho e esquartejado. Na campanha do sul, os caboclos de Atalaia, “selvagens”, “canibais”, mataram e mutilaram o filho do general Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque; os “mulatos milicianos” de Penedo, dispostos a continuar “a caça dos republicanos”, aprisionaram e humilharam Domingos José Martins e outros patriotas da elite e do clero pernambucanos4.
    Em suma, para Pereira da Costa, os alagoanos eram covardes, traidores, sem nenhum caráter, que abriram mão da honradez para obter a autonomia política:
    [...] capitania independente [...] mas por que preço? Pela apostasia da fé republicana; pelo crime de lesa-pátria, abafando o grito uníssono das suas liberdades e da sua emancipação política, para voltar ao despótico regime colonial, sob uma velha monarquia corrompida e absoluta, fraca e de importância secundária, preferindo os seus habitantes o qualificativo nobilíssimo e altivo de cidadão pelo humilhante de vassalos e súditos de el rei nosso senhor; pelas delações e pelos mais cruéis martírios infligidos aos infelizes patriotas republicanos; pelos seus protestos de amor e fidelidade ao melhor dos reis, significados pelo povo por intermédio das municipalidades; enfim, segundo o juízo da posteridade pela voz da história. Em consequência dos serviços prestados pela comarca contra a revolução democrática, que em 1817 rebentou na cidade do Recife. (J.M. Filgueira de Melo); Em virtude dos serviços prestados à realeza pelos seus habitantes na ocasião da revolução pernambucana de 1817 (F.A. de Varhagen [sic], Visconde de Porto Seguro); Em paga da sua testemunhada lealdade monárquica (M. de Oliveira Lima); e para não irmos muito longe, o

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  2. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais Pernambucanos (1795-1817), vol. VII. Recife: Arquivo Público Estadual, 1958, p. 542; colchetes nossos.
3 Idem, pp. 542-543.
4 Idem, pp. 544-545.

que escreve Cândido Mendes de Almeida e repetido por A. Moreira Pinto: Como galardão da lealdade com que se houveram os alagoanos na revolução de 1817 em Pernambuco5.

O discurso agressivo de Pereira da Costa e o episódio ocorrido no Recife em 1901evocam dois momentos distintos, porém complementares, da produção histórica Institucional sobre a revolução de 1817 e a emancipação política da comarca de Alagoas.

O discurso correspondeu à fase em que o nativismo perdeu a força de mobilização política com a derrota da Praieira (1849) e passou a ser utilizado como munição ideológica em querelas acadêmicas entre agremiações6. O motivo da contenda: em defesa da honra provincial, as facções pretendiam incluir as suas versões da História regional na História do Brasil imperial.

O episódio ocorrido em 1901 correspondeu à fase de construção de uma “nova história”, compatível com a era republicana, “pensada e trabalhada” conforme o reordenamento político do país e o ideal burguês de ordem e progresso para “demonstrar, com certeza científica, que a república era mesmo a síntese conclusiva do povo brasileiro” e o capitalismo a única via de desenvolvimento7.

A guerra acadêmica foi travada em duas frentes de combate: nacionalmente, entre o IAHGP e o IHGB; e regionalmente, entre o IAHGP e o IAGA8. No tempo do Império, o IHGB valeu-se do prestígio que gozava na Corte para continuar sendo o guardião da história brasileira, o detentor do poder de estabelecer parâmetros sobre o que “devia ser trabalhado e dado à luz do conhecimento geral, e o que devia ser guardado como memória, corpo sem voz, algo engavetado nos arquivos”9. O IAHGP se mobilizou para incluir a História de Pernambuco no panteão nacional: mediante o ingresso de seus membros naquela instituição, a inclusão das suas versões nas revistas do IHGB e nos livros didáticos oficiais10.

Em outro front, o IAHGP, travestido de IHGB regional, utilizou o prestígio de seus mestres com igual pretensão de estabelecer parâmetros sobre o que “deveria ser ou não ser histórico ou historicizado”11. Diante das regras impostas, os membros do IAGA ora compactuaram ora se entreveraram com os mestres de Pernambuco, para impedir que o discurso em defesa da honra provincial fosse ignorado e os ícones históricos locais ocupassem um espaço secundário na História da região.

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  1. Idem, p. 547; negritos do autor.
  2. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O imaginário da restauração pernambucana, 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1977, p. 21.
  3. MELO, Ciro Flávio de Castro Bandeira de. Senhores da História e do Esquecimento. A construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX. Belo Horizonte: Argumentum, 2008, p.21.
  4. O IHGB foi fundado em 1838; o IAHGP em 1862; o IAGA em 1869. Durante o século XIX a interlocução regional se resumiu a esses dois institutos, vez que o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte só seria criado em 1902 e
o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano em 1905.
9 Melo, op. cit., 2008, p. 35.
  1. Idem, pp. 39-41.
  2. Idem, p. 35.

    Como em todas as guerras, o estrago foi considerável. Em relação à revolução de 1817 e à emancipação política de Alagoas, pode-se dizer que o efeito foi desastroso para o aprimoramento da pesquisa histórica.

    Varnhagen, o mais conceituado historiador do Império, desagradou-se da revolução de 1817 a ponto de desejar passar uma borracha sobre o assunto e deixá-la fora da história nacional. Como um dever imposto, relatou o fato manchando a reputação dos revoltosos para transformar o monarca em vítima, livrando-o da responsabilidade pelo ocorrido antes da revolução e no decorrer da repressão. Arrematou o assunto mencionando, sem qualquer comprovação documental, a suposta generosidade do rei através de mercês concedidas aos súditos leais de Alagoas (Decreto Régio de 16/09/1817), Rio Grande do Norte (Alvará de 18/03/1818) e Sergipe (Decreto Régio de 08/07/1820)12.

    O autor expressou a opinião dos membros do IHGB: por ser republicana e separatista, além de afrontar a casa de Bragança, a revolução quebrou “de modo lamentável a unidade do Império”. Portanto, “não era um movimento adequado para produzir heróis a serem cultuados em escolas públicas” e não deveria ser tema privilegiado na História oficial13.

    Agastados, os pernambucanos revidaram, contestando o relato que manchou a reputação regional com versões que transformaram os renegados em abnegados precursores e mártires da Independência:

    Não foi tão simples nem de tão pouca posteridade o que ocorreu em Pernambuco naquela época de dolorosa recordação. Nada se lucra em amesquinhar acontecimentos de tal ordem. Os sentimentos e o modo de pensar dos que julgaram libertar a terra sul-americana das garras do absolutismo europeu, mais pela justiça e interesse da sociedade brasileira do que pelo materialismo da força, devem ser estudados com imparcialidade para então avaliar-se da abnegação, com que procederam e da generosidade de seus intuitos. Aqueles sentimentos nunca foram desmentidos nem quando a vitória mostrou-se propícia aos patriotas, nem quando dispersados tiveram de perder a vida em afrontosos cadafalsos. Por maiores que sejam os esforços empregados para deprimir-se a memória das vítimas do absolutismo triunfante, atribuindo-se-lhes sentimentos e qualidades que não tiveram, jamais dirão que elas imitaram o governo decaído no regime do terror14.

    No processo de construção das versões nativistas sobre a revolução, os historiadores de Pernambuco se apropriaram, de forma oportunista, da hipótese não comprovada de Varnhagen acerca da emancipação de Alagoas: na versão mais branda, o desligamento da comarca foi reinterpretado como uma punição do rei aos revoltosos de Pernambuco. Na versão mais radical, a emancipação foi reinterpretada como uma mercê recebida graças à traição aos patriotas.

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  3. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal vol. 5º, 8ª Ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1975, pp. 149-179.
13 Melo, op. cit., 2008, p. 185.
  1. MACHADO, Maximiano Lopes. Introdução In: TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco em 1817 3ª ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, pp. LXII-LXV.

    Na era imperial prevaleceu a versão mais branda do discurso nativista. O IAGA aceitou a versão conciliadora, que transformava os pernambucanos em vítimas do despotismo lusitano, incorporando-a ao seu discurso15. A versão mais radical, em segundo plano, serviu como objeto de críticas informais entre os membros da agremiação alagoana, como mostra a carta escrita por Pedro Paulino da Fonseca a Ladislau Neto, em 28 de janeiro de 1875:

    Mas não se diga, que compramos a nossa emancipação de Capitania independente, com uma traição.[...].Onde o aviso prévio? Quando o único que lá foi, o Padre Roma, além de tardio, insuficiente, foi logo tido por mentiroso? Cuja inconsideração foi pagá-la na Bahia sete dias depois? [...]. Quem afiança, que Alagoas (como a Bahia), aderiu, prometeu seu concurso, e recusou? Que Batalha e Antônio Gomes, aceitando a grande ideia, retraíram-se? Que os Alagoanos ligaram-se para tal fim? Que houve acordo? Confrontemos as datas. Pernambuco se premeditou, guardou no Recife o sigilo do negócio, e só quando rompeu no dia 6 de Março lembrou-se de mandar então um emissário mentir nas Alagoas onde chegou a 18, (doze dias depois!) e daí seguiu o infeliz na jangada para ir mentir na Bahia!! O que foi Roma fazer nas Alagoas e na Bahia? Naquela impor, como o fizeram, dando ordem a tropa para matar quem duvidasse, sinal que não havia conivência, e mentir para atrair adesões, fazendo constar que todo o norte simultaneamente e de comum acordo proclamara o Provisório, com a proteção de países estrangeiros. A imposição de armas carregadas, não prova anuência nem conivência. O Tente. Cel. Borges da Fonseca, foi um traidor, e vendeu o infeliz Padre Roma: e por que como este não sofreu os rigores do Conde dos Arcos? Por que foi Judas; é de crer, que encobrisse desse sua correspondência com este.[...]. Assim mesmo o sublime pensamento então por si, correu como faísca elétrica, e grande foi o número dos que aceitaram o pastel, e viram-se logo em unidade, abandonados e comprometidos, pelo que forçoso foi converterem- se em tempo como aconteceu aos Penedenses, que pagaram o pato, e muito sofreram até o final da dança16.

    Com a proclamação da República, a versão mais contundente foi enfatizada no discurso da agremiação pernambucana. A emancipação de Alagoas passou a ser alvo de críticas dos radicais do IAHGP. Em última instância, a emancipação virou refém de uma estratégia elaborada para defender a honra de Pernambuco nacionalmente.

    Tal como ocorreu no Império, nas primeiras décadas do século XX a revolução de 1817 foi considerada como tema pouco significativo pelos mestres da capital federal. Pretextos ideológicos similares conduziram ao rebaixamento: a revolução fora republicana, mas de cunho separatista; anticolonial e nacionalista, porém antiburguesa, graças ao nativismo lusófobo; antimonárquica, mas gestada por motim militar. Em suma, “confusa e cheia de equívocos”, o bastante para não ser glorificada e não servir de exemplo civilizado e ordeiro aos jovens da nova Nação que se construía17.

  2. CAROATÁ, José Prospero Jehovah da Silva. Crônica do Penedo In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. Maceió: Tipografia do Jornal das Alagoas, 1875, p. 3.
  3. FONSECA, Pedro Paulino da. Carta endereçada a Ladislau Neto (28/01/1875) In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano vol. XII. Maceió: Oficinas Gráficas da Livraria Machado, 1927, pp. 148-150; parênteses do autor.
17 Melo, op. cit., 2008, p.188.

O IAHGP persistiu em sua canonização para incluí-la no panteão da Historia nacional, usando o nativismo como referencial para transformar os patriotas em precursores e mártires da Independência e da República. No processo de seleção dos fatos para construir a defesa da reputação dos revolucionários e da província, a emancipação de Alagoas foi destituída de importância histórica. O discurso de Pereira da Costa e o ocorrido em 1901 nos levaram a deduzir que os radicais do IAHGP rebaixaram a emancipação porque não era politicamente correto enaltecer um episódio em que traidores de um movimento que fizera a independência pela via republicana e serem recompensados pela sua vilania por um rei despótico, que quebrou de modo lamentável a unidade da capitania de Pernambuco.

A agressividade do ataque capitaneado por Pereira da Costa indignou os que estavam entrincheirados no IAGA. Como ainda estivesse “por escrever-se a história da separação política de Alagoas”, fizeram fogo com o disponível para revidar o golpe: de primeira, acusaram o historiador de bairrista incongruente e incriminaram Borges da Fonseca pela traição aos seus: ele foi o autor da carta (14/03) delatando o ocorrido ao conde dos Arcos e sua fuga (29/03) resultou no fiasco da revolução na comarca18.

Refutando a traição aos patriotas, os historiadores do IAGA conceberam versões alternativas para justificar a emancipação ocorrida na fase mais dura de repressão ao movimento. A primeira, concebida em meados do século XX, alega que bem antes da revolução o rei estava convencido que o “desenvolvimento da comarca justificava amplamente a constituição de uma nova capitania”. Com ou sem revolução, Alagoas seria desanexada de Pernambuco e passaria a ter governo próprio para a alegria dos alagoanos, que de longa data desejavam a autonomia19. Na segunda metade do século, essa versão foi enriquecida com outra hipótese, na qual a emancipação aparece como um desfecho inevitável desde os tempos coloniais: o povoamento e a posterior criação da comarca, além de propiciar a consolidação das fronteiras geográficas, haviam gestado uma sociedade bastante desenvolvida e culturalmente diferenciada do restante de Pernambuco. O decreto régio de 16sde setembro de 1817 só conferiu “legitimidade jurídica” a essa ‘capitania informal’20.

Essas hipóteses, elaboradas ao longo do século passado pelos membros do IAHGP, transformaram-se na versão oficial sobre a emancipação de Alagoas, perpetuada até hoje pelos professores e historiadores locais. Ninguém se preocupou em comprovar sua veracidade. Abordagens mais aprofundadas permitiram, finalmente, conciliar o nativismo pernambucano com o positivismo (1939), transformando a revolução de 1817 em pérola da História nacional:

Revolução idealista, impregnada de concepções patrióticas e elevadas, antimonárquica, profundamente republicana e democrática, sublime no seu sentimento de doçura e fraternidade, sem excessos violentos nem espírito vingativo, ela foi caracteristicamente nossa. Cem por cento brasileira. Reatou o laço de nosso espírito nacional que vinha dos primeiros

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18 Antonino, op. cit., 1907, pp. 19; 28-30.
  1. COSTA, João Craveiro. História das Alagoas, resumo didático, edição fac-similiar. Maceió: Sergasa, 1983, p.89. Antonino, op. cit., 1907, pp. 30-31.
  2. LINDOSO, Dirceu. Interpretação da Província. Estudo da Cultura Alagoana, 2ª ed. Maceió: Seplan-AL, 2005, pp. 97-99.

    séculos. E muito embora o seu aniquilamento, ela fica na nossa História como o mais belo anseio de Pernambuco por um Brasil verdadeiramente livre e brasileiro21.

    Canonizada a revolução, a animosidade contra Alagoas arrefeceu ao longo do século XX e alguns historiadores pernambucanos retomaram a versão nativista mais branda, gestada pelo IAHGP no período imperial: para todos os efeitos, o desligamento da comarca foi uma punição aos revoltosos de Pernambuco.

    No âmbito nacional, prevaleceu a versão formulada pelo IHGB no século XIX. Até hoje a autonomia obtida à custa da lealdade ao rei permanece uma suposição tida como certa. Tão inexpressiva que alguns historiadores do sudeste sequer mencionaram o episódio quando avaliaram a revolução de 1817 22.

    A inércia de pesquisas brasileiras está levando os historiadores internacionais a reproduzir, como fato histórico cientificamente comprovado, o fruto de um parâmetro ideológico dos tempos do Império. Roderick J. Barman, por exemplo, além do tropeço cronológico, resvalou no argumento ideológico ao concluir que: “for their loyalty to the Crown the notables were to be rewarded in 1820 (sic), when the comarca was separated from Pernambuco and became the province of Alagoas”23.

    Decidimos testar essas hipóteses e nenhuma delas foi confirmada: nem pela bibliografia consultada, nem pelas fontes documentais conhecidas. Concluímos que as versões existentes não foram projetadas para gerar conhecimento histórico, embora estejam recheadas de informações coletadas em fontes documentais para dar um toque de veracidade à retórica do discurso. Do ponto de vista científico, a História da Emancipação não existe. O que vem sendo narrado e analisado desde o século XIX é fruto de suposições.

    A versão do IHGB alega que a emancipação foi concedida em recompensa aos serviços prestados à Coroa. Afirmar que a Coroa teria recompensado imediatamente os alagoanos por sua lealdade e zelo de última hora, contraria os fatos e a conjuntura política da época. De comprovada fidelidade ao rei, do princípio ao fim, só foram identificados: o ouvidor Antônio Batalha, o capitão José Dias da Costa (da vila de Atalaia) e a população indígena da comarca, cooptada pelo ouvidor24.

    As fontes documentais provam que Alagoas aderiu à revolução: entre os implicados encontramos 5 militares, 3 membros da elite, 2 remediados, 1 popular e 5 cujo status social não pode ser identificado até o momento25. Considerando que não houve conspiração, que a revolução em Alagoas durou de 18 a 29 de março

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  3. QUINTAS, Amaro. A Revolução de 1817 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1985, p. 95.
  4. MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817. Estruturas e Argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972. LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco 1817. Estrutura e Comportamentos Sociais. Recife: Massangana, 1988.
  5. BARMAN, Roderick J. Brazil. The Forging of a Nation 1798-1852. California: Stanford University Press, 1988, p. 60.
  6. Segundas perguntas do réu Cristóvão Correia de Barros Cavalcante (17/05/1817) In: Documentos Históricos vol. CIV. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954, p.75.
  7. Relação dos réus presos existentes na cadeia da Bahia In: Documentos Históricos vol. CVI. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954, pp. 244-245. Lista dos implicados na revolução de 1817, copiada do original da devassa no Arquivo Público
    da Bahia In; TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco em 1817, 3ª ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, pp. 330-397. Excluímos dois alagoanos presos por atividades revolucionárias fora da comarca. Não há

    (12 dias) e que o ouvidor Batalha se recusou a abrir devassa “para não envolver nela pessoas que ajudaram a contra-revolução”26, trata-se de uma quantidade razoável de envolvidos com comprovada participação. O suficiente para indicar que a lealdade ao rei não foi tão genuína como alegaram as câmaras municipais27. Se assim fosse, o padre Roma e Borges da Fonseca não teriam levado adiante a sublevação: seriam imediatamente presos ou assassinados.

    A documentação também indica que a restauração da ordem monárquica ocorreu rapidamente devido à presença de tropas sergipanas e baianas na região do São Francisco, registrada no dia 28 de março, comprovando que o conde dos Arcos não estava blefando na proclamação (21/03/1817) divulgada nas vilas litorâneas mais ou menos nesse período 28. Os militares que aderiram não puderam sustentar a defesa do território devido à indigência militar de Alagoas29: capitularam e se bandearam para o partido realista a fim de não perder a vida e evitar um massacre. Nessas circunstâncias, não se pode confirmar que a colaboração das autoridades (civis ou militares) e dos habitantes durante a contrarrevolução tenha sido fruto da genuína e inabalável lealdade à Coroa, a ponto de enlevar o rei e resultar na concessão de autonomia política como mercê.

    Aliás, no período em que ocorreu a emancipação o rei estava agastado com a ofensa sofrida. Luiz do Rego Barreto e a Comissão Militar haviam executado e esquartejado 9 líderes revolucionários no Recife; na Bahia, outra Comissão Militar presidida pelo conde dos Arcos executou mais três; em Pernambuco, o Tribunal de Alçada agia com a máxima severidade e o mínimo de clemência da Coroa, para dar uma demonstração do poderio da Casa de Bragança e coibir outra sublevação no Norte30.

    O jornalista Hipólito José da Costa avaliava que os problemas decorrentes da administração tacanha eram “provocação mais que bastante” para o uso da força como meio de extorquir reformas em todo o Brasil31. A conjuntura política do período, portanto, não estava propícia a extravagâncias da parte do rei. Nem para suscitar enlevo com protestos de fidelidade tardia e muito menos para a realização de algo inédito na administração portuguesa: a elevação de Comarca ao status de Capitania por mercê de serviços prestados à Coroa.

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    comprovação de participação da população escrava na revolução: acreditamos que permaneceu inerte em virtude da repressão ao levante escravo de 1815. SILVA, Luiz Geraldo. “Sementes da Sedição”: etnia, revolta escrava e controle social na América Portuguesa (1808-1817) In: Afro-Ásia nº 25-26. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2001, pp. 36-60
    <afroasia@ufba.br>
  8. Ofício do desembargador Bernardo Teixeira Coutinho Alves de Carvalho ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (03/02/1818) In: Documentos Históricos vol. CIII. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954, pp. 73-74.
  9. A Câmara Municipal de Penedo, por exemplo, apesar do testemunho contrário dos habitantes e autoridades de Vila Nova (SE), protestou sua fidelidade ao rei informando ao conde dos Arcos que a vila havia “declarado guerra contra todos os
    rebeldes de qualquer Estado, condição, Pátria ou Nação”. Ofício da câmara municipal da vila de Penedo ao conde dos
    Arcos protestando adesão à causa real (31/03/1817). Doc. 01666, cx. 21, pct. 03, doc. 12. Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.
  10. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 226. TAVARES, Francisco Muniz.
    História da Revolução de Pernambuco em 1817 3ª ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, pp. CXLV-CXLVI.
  11. Carta do capitão Manuel Duarte Coelho ao rei informando sobre a revolução em Alagoas (07/04/1817) In: Documentos Históricos vol. CI. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1953, p.92.
  12. MORAES, Alexandre José de Mello. História do Brasil-Reino e do Brasil-Império vol. I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, pp. 492-494. Leite, op. cit., 1988, pp. 238-239. Tavares, op. cit., 1917, p. CCLVI.
  13. COSTA, Hipólito José da. Revolução de Pernambuco. Correio Braziliense nº 108 (maio de 1817) In: Correio Braziliense ou Armazém Literário vol. XVIII, edição fac-similar. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p. 672.

Habitualmente, o mérito era reconhecido através da concessão de títulos honoríficos, promoções, cargos na administração, sesmarias ou algo similar. Vale ressaltar que em Alagoas somente três indivíduos foram agraciados com mercês: o ouvidor Antônio Batalha (promoção a desembargador e comenda da Ordem de Cristo); o penedense Antônio Luis Dantas de Barros Leite, por sua participação na campanha do sul (comenda da Ordem de Cristo) e o padre Antônio Gomes Coelho, membro do governo interino (elevação a cônego e comenda da Ordem de Cristo)32.

Embora não possamos descartar totalmente essa hipótese, a bibliografia existente e a documentação conhecida não lhe conferem autenticidade. Concluímos que essa versão foi utilizada como um artifício para encobrir a atuação desastrosa da Coroa por ocasião da repressão aos revolucionários33.

Desconsideramos a versão do IAHGP que considera a emancipação um prêmio à traição aos patriotas: essa é uma variável da hipótese anterior, que refutamos até prova em contrário. Resta avaliar a versão que considera a autonomia política de Alagoas uma punição aos revoltosos de Pernambuco.

A Coroa jamais puniu crimes de lesa-majestade com perda de território: a pena máxima prevista nas Ordenações do Reino era a de morte infamante e confisco dos bens dos que haviam praticado o crime34. Mesmo autoridades de reconhecida truculência, como o conde dos Arcos e Luiz do Rego Barreto, tinham noção que nem todos em Pernambuco haviam cometido tal crime35. Ainda que de forma tendenciosa, a imprensa brasileira compartilhava a mesma opinião36. Historicamente, essa suposição não se confirma.

Evaldo Cabral de Mello, que ainda defende a versão punitiva, associou o ocorrido à perda da comarca do São Francisco, durante a revolução de 1824:

Como a reação do seu pai em 17, a de d. Pedro I foi imediata: além de suspender as garantias constitucionais na província, ele a puniu territorialmente, amputando-lhe a comarca do São Francisco, que constituía a margem esquerda do São Francisco, hoje incorporada ao território da Bahia, da mesma forma como d. João VI a havia castigado, mediante o desmembramento de Alagoas37.

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32 Costa, op. cit., 1958, p. 546.
  1. O próprio Varnhagen reconheceu que a repressão levada a cabo pela Coroa provocou “tétricas e hórridas cenas de luto e dor”. Varnhagen, op. cit., 1975, pp. 175-176.
  2. Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal Livro Quinto, vol. 4, edição fac-similar. Brasília: Editora do Senado Federal, 2004, pp. 1153-1158.
  3. Segunda proclamação do conde dos Arcos aos pernambucanos (29/03/1817) In: Documentos Históricos vol. CI, op. cit.,
    1953, pp. 40-41. Ofício do governador Luiz do Rego Barreto ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (23/04/1818) In:
    Documentos Históricos vol. CIII, op. cit., 1954, pp. 82-83.
  4. Resposta do redator ao amigo de Olinda. Gazeta Idade D’Ouro do Brasil nº 29 (1817) apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A primeira gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do Brasil. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 164. Justificativa da redação sobre a
    rebelião de Pernambuco. Gazeta do Rio de Janeiro nº 39 (1817) apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de
    Janeiro (1808-1822): Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2007, p.260.
  5. MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001, p.46.

    A inexistência de provas que sustentem essa versão permite concluir que foi fruto de anacronismo, vez que o autor tende a considerar as alterações pernambucanas entre 1817-1824 como um continuum38. A documentação não comprova que o ocorrido em 1824 seja similar ao ocorrido em 1817.

    A iniciativa de desligar provisoriamente a comarca do São Francisco, para evitar que a revolução se alastrasse pelos sertões, partiu de d. Pedro I (Decreto de 07/07/1824), amparado no artigo 2º da Constituição outorgada em 25/03/1824. A comarca permaneceu anexada à província de Minas Gerais durante três anos até que, por decisão da assembléia-geral do império, ratificada pelo imperador (Decreto de 15/10/1827) foi incorporada provisoriamente à província da Bahia à qual permaneceu anexada definitivamente por inércia39.

    A decisão de desligar provisoriamente a comarca de Alagoas partiu do governo interino capitaneado pelo ouvidor Batalha: o receio de represálias tanto dos patriotas quanto do exército baiano fez com que este governo buscasse o valimento do conde dos Arcos, requerendo que assumisse a tutela da comarca enquanto não houvesse governo legítimo em Pernambuco (31/03/1817)40. O conde criticou a legitimidade do governo criado na comarca, mas aceitou a tutela provisória (06/04/1817) devido à importância estratégica de Alagoas nas operações militares contra os revoltosos. O rei concordou com a decisão do conde (29/04/1817) e ordenou que assim se conservasse até a restauração de Pernambuco. Com a posse de Luis do Rego Barreto no Recife (01/07/1817), cessou a tutela interina do governo da Bahia e Alagoas retornou ao status de sempre: comarca da capitania de Pernambuco41. A emancipação, portanto, foi uma decisão totalmente desvinculada do fato anterior e em nada se assemelha ao ocorrido em 1824.

    Em última instância, o próprio Evaldo Cabral de Mello reconhece que nem a comarca de Alagoas nem o sertão de Pernambuco foram considerados territórios relevantes ou prioritários pelos revoltosos de 1817 e de 182442. Isso torna a intenção malévola de pai e filho um tanto quanto descabida: seria mais lógico punir os traidores amputando áreas consideradas essenciais (da mata seca pernambucana, por exemplo) do que privá- los de áreas às quais não davam valor.

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  6. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. O federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 18-19.
  7. BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O Patriotismo Constitucional: Pernambuco, 1820-1822. Recife: Editora Universitária UFPE, 2006, p. 112. Decreto de 7 de julho de 1824, desligando provisoriamente da província de Pernambuco e
    incorporando à de Minas Gerais a comarca do Rio de São Francisco. Decreto de 15 de outubro de 1827 ordenando a incorporação provisória da comarca do Rio de São Francisco à província da Bahia apud CALADO, Orlando. As Comarcas
    de Pernambuco, do Sertão e do Rio de S. Francisco e a separação da última da província de Pernambuco In: Portal São
    Bento do Una, pp. 4-5 <www.portalsbu.com.br>. “Art. 2- O seu território é dividido em Províncias na forma em que atualmente se acha, as quais poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado”. Constituição Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824) In: Constituição Brasileira de 1824 <pt.wikipedia.org/wiki/Constituição_brasileira_de_1824>.
  8. Carta do governo interino da comarca de Alagoas ao rei, informando acerca da revolução de 1817 (31/03/1817) In:
    Documentos Históricos vol. CI, op. cit., 1953, p.79.
  9. Ofício do conde dos Arcos declarando anexada a comarca de Alagoas à capitania da Bahia (06/04/1817). Ofício do conde dos Arcos ao ouvidor de Alagoas, acerca da continuação do governo interino aí estabelecido (10/[04]/1817). Ofício do conde dos Arcos ao ouvidor de Alagoas declarando que El Rei aprovara o ato de anexação dessa comarca à capitania da Bahia e que nomeara o marechal de campo Luiz do Rego Barreto para governador da capitania de Pernambuco (24/05/1817) In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano nº 5. Maceió: Tipografia do Jornal das Alagoas, 1874, pp. 121; 125-126; 128.
42 Mello, op. cit., 2004, pp. 56; 61-63.

O Instituto Arqueológico e Geográfico de Alagoas (IAGA) concebeu versões completamente diferenciadas das anteriores: alegou que a Coroa, diante do desenvolvimento econômico e das diferenças culturais da comarca, já tinha intenção prévia de transformar Alagoas em capitania, com a anuência dos alagoanos.

A Coroa portuguesa não tinha o hábito de promover comarcas a capitanias por causa do seu desenvolvimento econômico. A prosperidade de uma região só interessava à Coroa no que dizia respeito à arrecadação que, no caso de Alagoas, era realizada pelas Juntas de Fazenda do Recife ou de Salvador, no ato da exportação e importação de gêneros; ou pelos arrematadores dos dízimos da região.

Aliás, consideramos um anacronismo atribuir ao termo conotações geográficas e políticas, como se a região fosse uma espécie de município da capitania de Pernambuco: a comarca de Alagoas era uma circunscrição judiciária sob a jurisdição de um ouvidor, embora, no século XIX, fosse vulgarmente percebida como um derivado de pátria - local de nascimento ou de residência43, porém integrada ao território de Pernambuco sem demarcação geográfica própria ou sede municipal com poder de decisão política sobre o território. Embora a vila das Alagoas reivindicasse a supremacia na região por ser sede da comarca, a rigor era apenas a residência oficial do ouvidor da circunscrição. Como qualquer outra vila no Antigo Regime, sua câmara municipal representava apenas os habitantes do termo junto à Coroa44.

Acreditamos que a versão desenvolvimentista é fruto da interpretação equivocada de um documento póstumo (1821), produzido para instruir os deputados da província a defender a autonomia de Alagoas, caso os pernambucanos requeressem a reintegração do território nas Cortes Constituintes de Lisboa. Moreno Brandão, que não adotou essa versão, descreveu a situação da capitania com mais realismo: “a situação econômica de Alagoas, quando lhe foram doados os benefícios da autonomia, se não era das mais propícias e brilhantes, também não era das mais precárias e vexatórias”45.

Questionamos se os habitantes dessa região medianamente desenvolvida, que deviam sua relativa prosperidade ao fato de viver à margem da fiscalização do governador de Pernambuco, estariam previamente entusiasmados com a perspectiva de ter governador próprio se imiscuindo nos negócios e na política locais. Não encontramos um único documento que comprove o júbilo dos habitantes da comarca com sua elevação à capitania. A câmara municipal de Penedo, por exemplo, enviou um minucioso relatório (15/12/1819) de 27 páginas ao rei descrevendo, pela enésima vez, o ocorrido durante e após a revolução sem dedicar uma linha de

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  1. CANECA, Joaquim do Amor Divino. Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria In: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 68.
  2. Bernardes, op. cit., 2006, p.103.
  3. Instruções da Junta de Governo da capitania de Alagoas aos deputados eleitos para as Cortes Constituintes de Lisboa (18/08/1821) apud Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano vol. XV. Maceió: Oficinas Gráficas da Livraria Machado, 1931, pp. 150-151. BRANDÃO. Francisco Henrique Moreno. História de Alagoas edição fac-similar. Maceió: Sergasa, 1981, pp. 42-43.

    agradecimento pela mercê concedida46, fato que tende a comprovar que ninguém em Alagoas nutria essa espécie de expectativa antes da decisão da Coroa e nem ficou imediatamente empolgado com a emancipação.

    Por fim, consideramos que a alagoanidade dos alagoanos é tão inverossímil quanto a paraibanidade dos paraibanos e a pernambucanidade dos pernambucanos: as supostas diferenciações culturais não têm fundamento histórico algum. A rigor, foram argumentos ideológicos utilizados pelos Institutos para questionar ou afirmar a supremacia cultural, política e econômica de Pernambuco na região Nordeste47.

    No momento, não existem novas versões que sirvam como contraponto às que avaliamos. Contudo, a historiografia mais recente e alguns documentos que localizamos tendem a mostrar que a emancipação foi um episódio bem mais complexo do que aparenta e exige uma avaliação mais aprofundada.

    Denis Bernardes demonstrou que as reformas que a Coroa realizou, a partir de 1808, consistiram na intensificação da fiscalização e controle da população, por intermédio da criação de novas ouvidorias; e na organização do povoamento, mediante a criação de vilas. O desmembramento de terras para criar novas capitanias não fazia parte dos planos da Coroa e Pernambuco não foi uma exceção:

    Resumindo toda esta questão do reordenamento territorial do espaço pernambucano, podemos afirmar que a partir da segunda metade do século XVIII e, sobretudo com a instalação da Corte no Rio de Janeiro, é possível identificar um claro processo de subdivisão do referido espaço, com o propósito de fazer cada vez mais presente o poder do Estado. Esta subdivisão incluía a criação de novas paróquias, de vilas com seus respectivos termos e câmaras, de instâncias jurídicas, com ouvidor, juízes, funcionários. Do ponto de vista político, esta interferência no espaço indica o reconhecimento de uma dinâmica social mais profunda, seja do ponto de vista do fluxo de trocas, do crescimento demográfico, do adensamento urbano. Indica também a necessidade de o Estado se fazer presente tanto para o controle da população, quanto para aumentar a extração de impostos, tributos e taxas48

    Supomos que a revolução de 1817 e a repressão aos revoltosos alteraram momentaneamente o reordenamento em curso na capitania.

    Hipólito José da Costa avaliou que a solução, para a Coroa sair incólume do impasse político criado pela revolução de 1817, seria evitar o derramamento de sangue e promover reformas administrativas para pacificar os ânimos na província: “a execução de alguns dos revoltosos não será outra coisa mais do que a declaração de guerra do Governo contra o povo”49. Agastado, o rei agiu de forma imprudente, deixando-se levar pela ala que o trazia em susto e defendia a repressão violenta aos revoltosos: ao horror provocado pelas

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  4. Exposição da câmara da vila de Penedo ao rei (15/12/1819). Doc. 00125, cx. 03, pct. 3B, doc. 11, Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.
  5. DIAS, Margarida Maria Santos. Intrepida Ab Origene. O Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e a produção da História local. João Pessoa: Almeida Gráfica e Editora, 1996, pp. 50-55.
  6. Bernardes, op. cit., 2006, pp 118-119.
  7. COSTA, Hipólito José da. Revolução no Brasil. Correio Braziliense nº 108 (maio de 1817) In: Correio Braziliense ou Armazém Literário vol. XVIII (janeiro-junho de 1817) edição fac-similar. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, pp. 558-559.

    execuções dos líderes revolucionários, somaram-se as arbitrariedades cometidas pelo governador Luiz do Rego Barreto e seus assessores, que de imediato passaram a ser execrados pela opinião pública.

    A nomeação desastrosa de um desembargador intrigante e venal para presidir o Tribunal da Alçada (Bernardo Teixeira Coutinho Álvares de Carvalho)5criou, em Pernambuco, um poder despótico que teve “em suas mãos o destino da vida, das carreiras e dos bens, de uma considerável parcela da população”5. A venda da justiça, que “prolongou a devassa além dos seus limites” e fez com que aquele desembargador retornasse riquíssimo ao Rio de Janeiro, gerou um clima de indignação, suspeição mútua, ódio racial e conflito político que levou os agentes da Coroa a temer a eclosão de outra revolução52. Como previu Hipólito José da Costa, os pernambucanos acharam que o rei lhes havia declarado guerra: devido à ocupação militar do território e à crueldade dos seus agentes. Os revolucionários, antes execrados, passaram a ser respeitados e cultuados pela oposição que fizeram contra a tirania.

    A comarca de Alagoas escapou praticamente incólume ao clima de terror e conflito político porque o ouvidor Batalha se recusou a tirar devassa. Ignoramos se a Coroa relevou o desacato de propósito ou por inércia53. O fato é que a pacificação da comarca veio a calhar para “alguém” na Corte: que levou em consideração o projeto proposto por Luiz do Rego Barreto, mas não desejava governador de Pernambuco à testa da execução e decidiu convencer o rei a desmembrar Alagoas do território pernambucano. O ofício de protesto, enviado pelo governador ao ministro Vilanova Portugal (10/09/1817), permite avaliar o que se pretendia fazer em Alagoas:

    A comarca das Alagoas, cada dia se torna mais importante, e por este motivo já meu antecessor lembrou a S. Majestade algumas providência que lhe pareceram convenientes, as quais eu recapitularei neste ofício, porque me parecem mui bem lembradas. A cabeça da mesma comarca sua, na distância de sessenta léguas desta vila do Recife, e na de mais trinta a vila do Penedo, que é a última na sua extremidade do sul. As novas vilas que ali se têm criado, a concorrência de imenso povo para a cultura do algodão, os consideráveis portos, e lugares de desembarque, que se acham em toda a extensão de sua costa, as preciosas matas de madeiras de construção, o comércio que já se faz ali com os diferentes pontos do Brasil, são objetos que devem merecer particular atenção, e a maior vigilância da parte do governador e capitão-general de Pernambuco, cujas ordens em tamanha distância chegam muitas vezes tarde; e sendo os executores delas comandantes de milícias, ou de ordenanças, inda mais tarde são executadas. Por isso sou de parecer, que seria conveniente nomear-se um comandante militar de toda a comarca, sem ter ingerência alguma nos negócios civis, para dar execução unicamente às ordens deste governo, tendentes a manter a tranquilidade dos seus

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  8. Moraes, op. cit., 1982, p. 493.
  9. Bernardes, op. cit., 2006, p. 248.
  10. Moraes, op. cit., 1982, p. 493. Bernardes, op. cit., 2006, p.249. A venalidade e as arbitrariedades do desembargador Bernardo Teixeira preocuparam o desembargador João Osório e o governador Luiz do Rego Barreto. Ambos estavam persuadidos que a devassa, que não acabava nunca, não acabaria bem. Ofício do governador Luiz do Rego Barreto ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (14/03/1818) In: Documentos Históricos vol. CIII. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954, p.81.
  11. Os desembargadores do tribunal da alçada não pouparam críticas à recusa de Antônio Batalha: um deles informou à Corte que o ouvidor ainda não havia procedido à devassa apesar das denúncias que chegavam ao Recife. Ofício do desembargador João Osório de Castro Souza Falcão ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (20/01/1818) In: Documentos Históricos vol. CIII, op. cit., 1954, p.128.

    habitantes, a segurança, e defesa dos seus portos, e desembarque, ficando-lhe subordinados os corpos de milícias, e de ordenanças, sendo ao mesmo tempo encarregado da inspeção anual de uns, e dos alardos de outros; pelo que será justo que, além do soldo de sua patente, se lhe desse uma gratificação de quinhentos mil réis. Talvez que alguém se lembrasse de propor antes um governo subalterno, porém eu vejo, e considero o perigo de se multiplicarem pequenos governos, os quais longe de contribuírem para a boa ordem, e regime dos habitantes, não servem senão para suscitar, e criar intrigas entre as justiças, e magistrados territoriais, e o governo geral; porque a denominação de governador faz aparecer o orgulho, o abuso do poder, e são os povos os que sofrem os tristes resultados de conflitos de jurisdições, e minuciosas contestações. Um comandante militar, que execute as ordens deste governo, que ponha em atividade, quando a necessidade o exigir, as forças da mesma comarca, ou seja tropa de linha, ou milícias, e ordenanças, é a autoridade que nas atuais circunstâncias me parece mais conveniente mandar-se para aquela comarca. Meu antecessor tinha feito marchar para ali, com estas vistas, e com o motivo da intentada sedição dos pretos, um destacamento, composto de um capitão, um alferes, um sargento, um furriel, dois cabos de esquadra, um tambor, e trinta soldados, o qual destacamento já hoje ali não existe; porém como eu tenho determinado mandar para cada uma das vilas desta capitania outros tantos destacamentos de tropa de linha, de igual força, para o que já mandei aprontar os alojamentos precisos nas vilas de Igarassú, Goiana, Paudalho, Limoeiro, Santo Antônio, Serinhaém e Cabo, hei de fazer o mesmo para a referida comarca das Alagoas, proporcionando a força que será conveniente pôr-se em cada uma das suas vilas, das quais algumas são ainda de pouca consideração. E conformando-me com o que pelo dito meu antecessor já fora proposto, sou de parecer, que se deve criar naquela comarca uma companhia de infantaria de linha, composta por um capitão, um tenente, dois alferes, dois sargentos, um furriel, cinco cabos, dois tambores, e cem, ou cento e vinte soldados, recrutados estes na mesma comarca: e o quartel deverá ser em a nova vila de Maceió, por ficar no meio da comarca, ser mais saudável que a vila das Alagoas, e mais cômoda ali a subsistência; e porque a mesma companhia deverá também guarnecer uma bateria, que é precisa e indispensável para defesa da contígua barra de Jaraguá, em que podem entrar navios, e fragatas. Sendo pois aquele lugar o mais próprio para o quartel da companhia, sairá dali um destacamento de vinte a trinta homens, para as vilas de Porto Calvo, e Porto de Pedras, na extremidade do norte; e outro igual destacamento para a vila do Penedo na extremidade do sul. Nesta nova companhia deverá refundir-se as duas companhias irregulares, que desde o quilombo dos Palmares se tem ali conservado, com o fim de se evitar a formação de outro semelhante quilombo naquelas matas, então de todo fechadas, e sem moradores, e hoje abertas, e povoadas, bastando por consequência os que nelas moram, e os capitães de campo, para se obter o mesmo fim. As ditas companhias estão presentemente sem oficiais, e fazem pouco, ou nenhum serviço. Se pois S. Majestade se dignar de aprovar o que tenho expendido, nesse caso, proponho para comandante da referida comarcas das Alagoas, o capitão Carlos César Burlamack, cuja inteligência, honra, e zelo, pelo real serviço, ma afiançam o bom resultado de tão importante comissão54.

    O que o governador pretendia era intensificar a ocupação militar em Alagoas, dando continuidade ao plano em curso no restante da capitania. Em seguida, aumentar a fiscalização para incrementar a arrecadação e fazer face ao custeio do aparato militar. Porém “alguém” na Corte considerou que as ordens vindas do Recife poderiam chegar tarde; serem executadas mais tarde ainda ou, na pior das hipóteses, serem ignoradas, o que não seria conveniente no caso de outra alteração política. Seguindo os conselhos desse “alguém”, o rei decidiu

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  12. Oficio do governador Luiz do Rego Barreto ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (10/09/1817). Doc. 01703, cx. 21, pct. 03, doc. 49, Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.

    emancipar Alagoas antes que o ofício com o parecer contrário de Luiz do Rego Barreto fosse entregue ao seu destinatário.

    A escolha de Sebastião Francisco de Melo e Póvoas para governar a nova capitania não foi obra do acaso. Por sua gestão no governo do Rio Grande do Norte (1812-1816), podemos avaliar que conseguia congregar tino militar (para levar adiante o projeto de Luiz do Rego Barreto), tino administrativo (para implantar as repartições e aumentar a arrecadação), coragem para enfrentar a oposição das elites locais e energia para coibir manifestações políticas subversivas55.

    No entanto, a emancipação de Alagoas pode ter sido fruto do casuísmo com que a Coroa administrava: uma resposta momentânea a um problema existente, que poderia ser reavaliada e desfeita após cessar a causa do problema.

    Melo e Póvoas ficou retido por mais de um ano na Corte e chegou a Alagoas de mãos vazias: sem regimento com que governar; sem a demarcação oficial do território; sem o foral da alfândega que recebera ordens de implantar; com pouca autonomia financeira para levar o reordenamento administrativo-militar adiante. O rei não o autorizou a preparar um regimento, levando-o a administrar de improviso. A demarcação do território foi levada a cabo graças a um “piloto” que contratou por conta própria para fazer o serviço de mapeamento topográfico. A alfândega de Maceió usava a cópia do foral da alfândega de Lisboa (1587) como fonte de consulta. Os recursos públicos para erigir as estruturas militar e portuária foram obtidos à custa do empenho pessoal do governador junto ao fisco das capitanias principais (Pernambuco e Bahia), que às vezes resultaram em duras advertências da Coroa56. Os problemas que identificamos conferem à emancipação de Alagoas uma aparência de transitoriedade.

    A instalação das Cortes Constituintes de Lisboa (1820) resultou na anistia aos revolucionários de 1817, que cumpriam pena nos cárceres baianos. O retorno dos mártires do absolutismo à província intensificou a oposição a Luiz do Rego Barreto. Apesar de toda a pressão do governo para coibir o descontrole político, a metade dos deputados eleitos para representar Pernambuco nas Cortes havia participado da revolução57. A legitimidade da Junta criada por Rego Barreto (31/03/1821) passou a ser questionada, resultando na criação de

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  13. Melo e Póvoas não apenas enfrentou o clã dos Albuquerque Maranhão por causa de sonegação de impostos, como prendeu um militar que estava praticando subversão política naquela capitania (1815), o que lhe valeu um sério desentendimento com Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que fez vista grossa ao crime de traição daquele militar. Ofício do governador do Rio Grande do Norte ao governador de Pernambuco (02/03/1815) In: Documentos do Arquivo. Presidentes de Províncias 1802-1817, vol. 1. Recife: Secretaria do Governo do Estado, s.d., pp.40-41. CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984, pp. 133-134.
  14. Ofício do governador de Alagoas ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (26/09/1818). Doc. 01714, cx. 21, pct. 03, doc. 60, Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Representação do governador de Alagoas para a Junta da Real Fazenda da capitania (23/08/1819). Autoridades Civis e Militares. Ofícios e Portarias, Correspondência Ativa (1819-1825).
    Arquivo Público de Alagoas, livro 110 est. 20, mss. pp. 85v-86f.Ofício do juiz da alfândega de Maceió ao presidente da
    província (27/05/1825)In: Ofícios do Inspetor da Alfândega de Maceió (1825).Alfândega, Ofícios (1821-1836). Arquivo Público de Alagoas, maço 136, est. 08. Provisão do ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (27/09/1819). Doc. 01717, cx. 21, pct. 03, doc. 63,Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.
  15. Bernardes, op. cit., 2006, pp. 381-382.

uma segunda Junta em Goiana (29/08/1821), presidida por um revolucionário58. Em suma, tanto nas Cortes de Lisboa quanto na província, tudo se encaminhava para um ajuste de contas entre republicanos e realistas, numa fase em que a monarquia absolutista estava em baixa e o rei havia retornado a Portugal.

Supomos que o temor de um ajuste de contas político, associado à forma improvisada como se processou a emancipação, levou a Junta de Governo presidida por Melo e Póvoas5a encaminhar aos deputados que iriam a Lisboa as seguintes recomendações:

1º Constando a diligência que fazem os Povos das Províncias limítrofes para unirem, como dantes, esta a uma delas convém tratar-se de a conservar desanexada na forma criada por sua Majestade em 1818, não só apresentando a sua suficiência pelos rendimentos de suas ricas produções atuais e esperáveis, como a comodidade dos Povos na facilidade de seus recursos depois da separação independente da Província, que foi, e será de único, e particular agrado, o que é convinhável com a opinião de serem sempre mais bem regados curtos termos60.

A ênfase que deveria ser dada, em Lisboa, à prosperidade de Alagoas e às comodidades propiciadas pela autonomia, pode ser interpretada como uma estratégia para garantir que não acontecesse com Alagoas o que aconteceu com a capitania da Paraíba, cuja mediocridade econômica havia resultado em sua anexação à Pernambuco (1755-1799), com consequente ruína e dependência financeira mesmo após a desanexação61. Por outro lado, também pode estar associada ao exemplo contemporâneo da capitania de Sergipe, emancipada em
8 de julho de 1820 por Decreto Régio, que tornou-se letra morta devido à ingerência baiana62. As recomendações, afinal, acabaram sendo desnecessárias: a ala revolucionária presente em Lisboa estava mais preocupada em expulsar Luiz do Rego Barreto de Pernambuco, do que em requerer de volta a parte do território amputada pelo rei. Na província, os republicanos estavam preocupados em desmontar as estruturas do Antigo Regime e não encontramos indícios de que naquela ocasião houvesse alguma intenção de transformar o Decreto de 16/09/1817 em letra morta, como ocorreu com Sergipe.

Nosso relato não é conclusivo: pretendemos apenas desenvolver uma linha de raciocínio que poderia ser transformada em hipótese a ser testada. Outras reflexões poderiam ir além do recorte cronológico em que se deu a emancipação, possibilitando avaliar as dificuldades de sobrevivência das províncias subalternas ante a ‘sobretirania’ das províncias principais, resquício perverso das estruturas do Antigo Regime que comprometeu a autonomia dessas províncias, às vezes emancipadas apenas no papel, e que se perpetuou ao longo dos séculos XIX e XX.

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  1. MACHADO, Teobaldo. As Insurreições Liberais em Goiana. Recife: FUNDARPE, 1990, p.154.
  2. Eleita em 9 de julho de 1821.
  3. Instruções da Junta de Governo da capitania de Alagoas aos deputados eleitos para as Cortes Constituintes de Lisboa
    (18/08/1821) apud Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano vol. XV, op. cit., p. 150.
  4. OLIVEIRA, Elza Regis de. A Paraíba na Crise do Século XVIII: Subordinação e Autonomia (1755-1799). Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil S. A., 1985, pp. 133-134.
  5. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 233.

    No entanto, damos a nossa modesta contribuição por finda. Esperamos ter atingido o nosso objetivo: alertar que a “voz da história” invocada por Pereira da Costa em suas verberações, oferece outras possibilidades de abordagem sobre a emancipação de Alagoas. Esgrimi-la com a ira dos justos ou dos injustiçados em querelas sobre questões de honra, não contribuiu e nem tem contribuído para o aprimoramento da pesquisa histórica: no fim das contas, “quando os elefantes brigam, quem paga o pato é a grama”63.

    Concluindo, gostaríamos de deixar claro que, apesar das críticas contundentes à historiografia sobre a emancipação, reconhecemos o mérito dos Institutos e dos autores criticados. Graças a seu empenho, parte importante da memória brasileira e alagoana foi preservada. E com muita competência, por sinal. O Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas é uma instituição que merece nosso respeito e admiração pelo excelente serviço que presta à comunidade, na qual nos incluímos. Sem o acervo preservado no IHGAL, nosso projeto de pesquisa sobre a revolução de 1817 não teria sido concretizado.

    Fontes e Referências Bibliográficas

    1. “Art. 2- O seu território é dividido em Províncias na forma em que atualmente se acha, as quais poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado”. Constituição Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824) In: Constituição Brasileira de 1824 <pt.wikipedia.org/wiki/Constituição_brasileira_de_1824>.

    2. ANTONINO, Virgilio. Relatório sobre o Estudo das Causas Eficientes da Emancipação Política de Alagoas, que o Dr. F.A. Pereira da Costa apresentou ao Instituto A.G. Pernambucano em sessão de 31 de outubro de 1901 In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. Maceió: Oficinas Fonseca, 1907.

    3. BARMAN, Roderick J. Brazil. The Forging of a Nation 1798-1852. California: Stanford University Press, 1988.

    4. BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O Patriotismo Constitucional: Pernambuco, 1820-1822. Recife: Editora Universitária UFPE, 2006.
    5. BRANDÃO. Francisco Henrique Moreno. História de Alagoas edição fac-similar. Maceió: Sergasa, 1981.

    6. CANECA, Joaquim do Amor Divino. Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria In: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001.

    7. CAROATÁ, José Prospero Jehovah da Silva. Crônica do Penedo In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. Maceió: Tipografia do Jornal das Alagoas, 1875.

    8. Carta do capitão Manuel Duarte Coelho ao rei informando sobre a revolução em Alagoas (07/04/1817) In:
      Documentos Históricos vol. CI. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1953, p. 92.

    9. Carta do governo interino da comarca de Alagoas ao rei, informando acerca da revolução de 1817 (31/03/1817)
      In: Documentos Históricos vol. CI, op. cit., 1953, p.79.

    10. CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
    11. Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal Livro Quinto, vol. 4, edição fac-similar. Brasília: Editora do Senado Federal, 2004, pp. 1153-1158.

    12. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais Pernambucanos (1795-1817), vol. VII. Recife: Arquivo Público Estadual, 1958.

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  6. Expressão de Zygmunt Bauman.

  1. COSTA, Hipólito José da. Revolução de Pernambuco. Correio Braziliense nº 108 (maio de 1817) In: Correio Braziliense ou Armazém Literário vol. XVIII, edição fac-similar. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p. 672.
  2. COSTA, Hipólito José da. Revolução no Brasil. Correio Braziliense nº 108 (maio de 1817) In: Correio Braziliense ou Armazém Literário vol. XVIII (janeiro-junho de 1817) edição fac-similar. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, pp.
    558-559.

  3. COSTA, João Craveiro. História das Alagoas, resumo didático,edição fac-similiar. Maceió: Sergasa, 1983, p.89.
    Antonino, op. cit., 1907.

  4. Decreto de 15 de outubro de 1827 ordenando a incorporação provisória da comarca do Rio de São Francisco à província da Bahia apud CALADO, Orlando. As Comarcas de Pernambuco, do Sertão e do Rio de S. Francisco e a separação da última da província de Pernambuco In: Portal São Bento do Una, pp. 4-5.

  5. DIAS, Margarida Maria Santos. Intrepida Ab Origene. O Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e a produção da História local. João Pessoa: Almeida Gráfica e Editora, 1996.
  6. Exposição da câmara da vila de Penedo ao rei (15/12/1819). Doc. 00125, cx. 03, pct. 3B, doc. 11, Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.

  7. FONSECA, Pedro Paulino da. Carta endereçada a Ladislau Neto (28/01/1875) In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano vol. XII. Maceió: Oficinas Gráficas da Livraria Machado, 1927.
  8. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1977.

  9. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 233.

  10. Instruções da Junta de Governo da capitania de Alagoas aos deputados eleitos para as Cortes Constituintes de Lisboa (18/08/1821) apud Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano vol. XV. Maceió: Oficinas Gráficas da Livraria Machado, 1931, pp. 150-151.

  11. Instruções da Junta de Governo da capitania de Alagoas aos deputados eleitos para as Cortes Constituintes de Lisboa (18/08/1821) apud Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano vol. XV, op. cit., p. 150.

  12. Justificativa da redação sobre a rebelião de Pernambuco. Gazeta do Rio de Janeiro nº 39 (1817) apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822): Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2007, p. 260.

  13. LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco 1817. Estrutura e Comportamentos Sociais. Recife: Massangana, 1988.

  14. LINDOSO, Dirceu. Interpretação da Província. Estudo da Cultura Alagoana, 2ª ed. Maceió: Seplan-AL, 2005.

  15. Lista dos implicados na revolução de 1817, copiada do original da devassa no Arquivo Público da Bahia In; TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco em 1817, 3ª ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, pp. 330-397.
  16. MACHADO, Maximiano Lopes. Introdução In: TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco em 1817 3ª ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917.

  17. MACHADO, Teobaldo. As Insurreições Liberais em Goiana. Recife: FUNDARPE, 1990.

  18. MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001.

  19. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. O federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.

  20. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O imaginário da restauração pernambucana, 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1977.

  21. MELO, Ciro Flávio de Castro Bandeira de. Senhores da História e do Esquecimento. A construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX. Belo Horizonte: Argumentum, 2008.

  22. MORAES, Alexandre José de Mello. História do Brasil-Reino e do Brasil-Império vol. I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, pp. 492-494.

  23. MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817. Estruturas e Argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972.

  24. Ofício da câmara municipal da vila de Penedo ao conde dos Arcos protestando adesão à causa real (31/03/1817).
    Doc. 01666, cx. 21, pct. 03, doc. 12. Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.

  25. Ofício do conde dos Arcos declarando anexada a comarca de Alagoas à capitania da Bahia (06/04/1817). Ofício do conde dos Arcos ao ouvidor de Alagoas, acerca da continuação do governo interino aí estabelecido (10/[04]/1817). Ofício do conde dos Arcos ao ouvidor de Alagoas declarando que El Rei aprovara o ato de anexação dessa comarca à capitania da Bahia e que nomeara o marechal de campo Luiz do Rego Barreto para governador da capitania de Pernambuco (24/05/1817) In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano nº 5. Maceió: Tipografia do Jornal das Alagoas, 1874, pp. 121; 125-126; 128.

  26. Ofício do desembargador Bernardo Teixeira Coutinho Alves de Carvalho ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (03/02/1818) In: Documentos Históricos vol. CIII. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954, pp. 73-74.

  27. Ofício do desembargador João Osório de Castro Souza Falcão ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal
(20/01/1818) In: Documentos Históricos vol. CIII, op. cit., 1954, p.128.

40. Ofício do governador de Alagoas ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (26/09/1818). Doc. 01714, cx. 21, pct. 03, doc. 60,Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.
  1. Oficio do governador Luiz do Rego Barreto ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (10/09/1817). Doc.
    01703, cx. 21, pct. 03, doc. 49, Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.

  2. Ofício do governador Luiz do Rego Barreto ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (23/04/1818) In:
    Documentos Históricos vol. CIII, op. cit., 1954, pp. 82-83.

  3. Ofício do governador Luiz do Rego Barreto ao ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (14/03/1818) In:
    Documentos Históricos vol. CIII. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954, p.81.

  4. Ofício do juiz da alfândega de Maceió ao presidente da província (27/05/1825) In: Ofícios do Inspetor da Alfândega de Maceió (1825).Alfândega, Ofícios (1821-1836). Arquivo Público de Alagoas, maço 136, est. 08.

  5. OLIVEIRA, Elza Regis de. A Paraíba na Crise do Século XVIII: Subordinação e Autonomia (1755-1799). Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil S. A., 1985.

  6. Provisão do ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal (27/09/1819). Doc. 01717, cx. 21, pct. 03, doc. 63,Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.

  7. QUINTAS, Amaro. A Revolução de 1817 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1985.

  8. Relação dos réus presos existentes na cadeia da Bahia In: Documentos Históricos vol. CVI. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954, pp. 244-245.

  9. Representação do governador de Alagoas para a Junta da Real Fazenda da capitania (23/08/1819). Autoridades Civis e Militares. Ofícios e Portarias, Correspondência Ativa (1819-1825). Arquivo Público de Alagoas, livro 110 est. 20, mss. pp. 85v-86f.

  10. Resposta do redator ao amigo de Olinda. Gazeta Idade D’Ouro do Brasil nº 29 (1817) apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A primeira gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do Brasil. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 164.

  11. Segunda proclamação do conde dos Arcos aos pernambucanos (29/03/1817) In: Documentos Históricos vol. CI, op. cit., 1953, pp. 40-41.

  12. Segundas perguntas do réu Cristóvão Correia de Barros Cavalcante (17/05/1817) In: Documentos Históricos vol.
    CIV. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954.

  13. SILVA, Luiz Geraldo. “Sementes da Sedição”: etnia, revolta escrava e controle social na América Portuguesa (1808-1817) In: Afro-Ásia nº 25-26. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2001, pp. 36-60.

  14. TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco em 1817 3ª ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, pp. CXLV-CXLVI.

  15. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal 
    vol. 5º, 8ª Ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1975.

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