sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O SURREALISMO SELVAGEM DE LAUTRÉAMONT - Isidore Lucien Ducasse, mais conhecido pelo pseudónimo literário de Conde de Lautréamont (Montevidéu, 4 de Abril de 1846 — Paris, 24 de Novembro de 1870) foi um poeta uruguaio que viveu na França.

O SURREALISMO SELVAGEM DE LAUTRÉAMONT



Lautréamont, um poeta para se saborear lentamente degustando bem devagar. Hei de primeiro devorar sua poesia para depois ser por ela devorada. Sua imaginação delirante é de uma lucidez visionária.
Se toda poesia discorre sobre o Homem em algum contexto ou no seu próprio, Lautréamont fala do avesso desse animal que tornou-se presunçoso e vive perdido de si mesmo e enganando-se a si próprio. Sua poesia ao mesmo tempo original e fascinante, prima pela lógica do absurdo. Mas dane-se só a lógica fundamental, só o concreto, só a razão, só o empírico; antes a dualidade das coisas.
Por sinal lembrei de uma grande e saborosa questão da filosofia, ou seria da poesia? O Homem não nasceria bom nem mau como os animais ditos irracionais? Ou já nasceria bom e mau? E qual dos dois seria mais latente? Ou quem sabe o Homem precise resgatar o arquétipo selvagem? O Homem se dissociou da Natureza, aquela que lhe serviu de berço no enorme infinito, mas a Natureza continua em suas entranhas e à ela ele voltará.
Isidore Lucien Ducasse, mais conhecido pelo pseudónimo literário de Conde de Lautréamont nasceu em Montevidéu em 4 de abril de 1846 e morreu em Paris aos 24 anos em 24 de novembro de 1870. É considerado um precursor do Surrealismo.
Como sobre sua vida não há muita informação, consta que várias versões diferentes já foram escritas sobre ela. Mas sem dúvida deixou uma grande obra: Les chants de Maldoror (Os Cantos de Maldoror). O primeiro canto sai anônimo em 1868. Esse mesmo canto seria publicado, novamente, em 1869, na Antologia "Parfum's de l'Âme", também sem identificação de autor. Em 23 de outubro de 1869 é anunciada a publicação de Cantos de Maldoror (I, II, III, IV, V e VI) pelo Conde de Lautréamont, mas os livros foram retirados da venda pelo editor; somente em 1874 o volume chegaria às livrarias
Os Cantos de Maldoror (trecho) “Ó ser humano! Eis-te agora, nu como um verme, diante do meu gládio de diamante! Abandona teu método; passou o tempo de te fingires orgulhoso; lanço sobre ti minha oração, em atitude prosternada. Alguém observa os mínimos movimentos de tua vida criminosa; estás envolvido pelas malhas sutis da tua perspicácia encarniçada. Não confies nele quando vira as rédeas, pois te encara; não confies nele quando fecha os olhos, pois ainda te encara. É difícil supor que, por meio de artimanhas e maldades, tua temível resolução tenha sido ultrapassar o fruto de minha imaginação. Mesmo seus golpes mais fracos têm efeito. Com cuidado, é possível ensinar àqueles que fingem ignorá-lo que lobos e salteadores não se devoram mutuamente; talvez não seja hábito”.
Esta imagem de uma obra do escultor tcheco Richard Stipl tirada do álbum The Macabre and the Beautiful Grotesque, ilustra bem Lautréamont e nos mostra que o que é belo nem sempre assim nos parece quando apenas olhamos, "o que observamos não é só que o que observamos, é também o que significa”. Lautréamont2.jpg 
“Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito...Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta...acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau”. (Lautréamont, Os Cantos de Maldoror, oitava estrofe, Canto I), tradução de Claudio Willer.
Invocando Lautréamont com os Lobos O lobo que vive em mim corre pelos bosques e uiva para a lua no cio O lobo que vive em mim lambe a cria das palavras paridas à fórceps O lobo que vive em mim traz brasas no olhar que penetram minha escuridão O lobo que vive em mim busca a estrela Sirius – a do cão maior – a mais brilhante do céu O lobo que vive em mim descobre trilhas nas estepes para caçar sentimentos O lobo que vive em mim quer me libertar da presunção O lobo que vive em mim quer resgatar o ser selvagem


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Isidore Ducasse – O Conde de Lautréamont

PRÓLOGO DE RUY CÂMARA
para Edição espanhola de Los Cantos de Maldoror obra de Isidore Ducasse – O Conde de Lautréamont
Tradução 
MANUEL SERRAT CRESPO - EDIÇÃO ESPANHOLA.
Abram Lautréamont! E aí está toda a literatura virada pelo avesso como um guarda chuva! Fechem Lautréamont e tudo volta ao seu lugar...  (Francis Ponge)

Tão estranha quanto original e fascinante é a imaginação abissal e delirante que se materializa neste livro à sombra da genialidade de Isidore Ducasse (1846-1870), autor celebrizado pelo pseudônimo, Conde de Lautréamont, um mito literário que ergue-se sozinho sobre os pilares de uma vasta bibliografia que o situa no rol de autores mais controversos, discutidos e estudados na atualidade.
Reli Los Cantos de Maldoror cerrada e desesperadamente, como se estivesse naquele estado de torpor intelectual em que o solitário Ducasse era visto, ora ébrio e feliz, entornando taças de bons vinho no cabaré du Ciel et de l’Enfer, no Montmartre, ora triste e decaído, ingerindo substâncias opiáceas num bordel qualquer, de uma ruela qualquer, numa noite qualquer da velha e bela Paris do século 19.
Lautréamont, esse fantasma fiel à sua maneira invisível de aparecer, rasga a lucidez do leitor e decreta a falência da racionalidade ao se servir da lógica do absurdo para atacar com fúria a própria alteridade, que se expressa no sistema do livro como provocação às tradições ou como sedução lingüística. Nesta obra cifrada e permeada de códigos, a arte literária é soberana, e o que nela se respira é o ar insalubre de atmosferas pantanosas e sombrias, que sufocam e perturbam até mesmo os leitores habituados às longas jornadas do pensamento.
Por essa razão, Lautréamont foi inúmeras vezes acusado de beber onde Baudelaire bebia: na fonte de Lúcifer, e assim como Baudelaire e Lúcifer, Ducasse foi igualmente caluniado e incompreendido por haver engendrado “Maldoror” com plena consciência de que colocava em cena um personagem instintivo, cruel e maligno, à semelhança do homem, e o fez propositadamente, sob a ótica de um adolescente expatriado e reprimido, que não teve o amor materno e foi forçado a viver exilado e distante do pai durante toda a sua juventude.
Apesar de Ducasse andar em muitas bocas, em muitos livros e de haver seduzido inúmeros espíritos, poucos conhecem em pormenores sua vida trágica, de modo que, qualquer abordagem centrada no seu legado literário, por mais despretensiosa que seja, acabará desembocando nos seus aspectos biográficos e nas explicações que o justifiquem como indivíduo ignorado pela família, pelo Estado e pela sociedade.
Assim como a imensa maioria de indivíduos que passa pela vida sem deixar vestígios de sua existência, Ducasse não haveria de ter sua existência comprovada em separado de suas obras e dos registros biográficos que foram sendo descobertos ao longo dos séculos 19, 20 e 21. A impressão generalizada de que sua vida é um mistério indesvelável, está completamente superada, uma vez que já se reuniu muito mais elementos sobre esse montevideano, morto há 137 anos, do que normalmente reunimos acerca de importantes autores da atualidade. Contudo, há lacunas em sua vida e em sua personalidade que só podem ser preenchidas por componentes de verossimilhança literária.
A suposta ausência de elementos biográficos de Isidore-Lucien Ducasse, nascido em Montevidéu a 4 de abril de 1846, levou inúmeros autores a produzir invenções e mitificações variadas e esdrúxulas sobre sua vida, como a versão de René Dumesnil, de que Ducasse teria nascido em 1850; a versão de Rémy de Gourmont, de que teria morrido aos 28 anos; a versão de Léon Genonceaux, de que escrevia sentado frente ao piano e desesperava os hóspedes do hotel, tirando acordes na alta madrugada; a versão de Léon Bloy, de que o autor morreu numa cabana e é tudo o quanto se sabe dele; a versão de Rubén Dario, de que se trata de um louco e seu nome verdadeiro se ignora; a versão de que havia combatido na comuna de 1871; ou uma versão que se repete nos dias atuais, de que teria embarcado em Bordeaux e regressado a Montevidéu em 25 de maio de 1867, hipótese endossada por Philippe Soupault, Pichon Rivière e mais tarde por Pablo Neruda. Rivière, autor de polêmicos relatos, afirma num artigo de 1946, em La Nación, de Buenos Aires, que Ducasse teria embarcado em Bordeaux, no veleiro Harrick, para visitar parentes em Córdoba, antes de seguir para Montevidéu.
Mas esses e outros equívocos já estão aclarados, de modo que, não se pode reprovar as boas e más intenções desses autores porque, enfim, não fosse o desprendimento e entusiasmo com que se lançaram na difícil tarefa elucidativa de Lautréamont, Ducasse teria pouca chance de sair do breu do anonimato em que se encontrava desde o princípio e, provavelmente, continuaria obumbrado e esquecido, juntamente com seu Cantos, por todo o século 20.  
Até onde as nossas pesquisas alcançam, podemos inferir que, em 1867 Ducasse viu, de fato, o mar em Bordeaux, não com o propósito de regressar a Montevidéu, mas a pretexto de matricular-se na Faculdade de Letras, que seria uma forma de reconciliação com seu pai, com quem estava rompido após haver ele abandonado os estudos formais, e também para agenciar a publicação do seu Canto Primeiro em Bordeaux, mais provavelmente com Evariste Carrance, seu futuro editor. Há ainda outro forte motivo que inviabiliza completamente a hipótese de um regresso de Ducasse a Montevidéu em 1867: aos 21 anos de idade e como uruguaio nato, ele teria sido recrutado logo no desembarque para defender seu País na guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) em que o Uruguai, ao lado do Brasil e da Argentina, dizimavam o Paraguai. Nessa guerra a população do Uruguai foi reduzida para a metade, a Argentina perdeu 50 mil homens e o Brasil, 100 mil. O Paraguai, ardendo-se em chamas, ficou com apenas 25% da sua população. Ducasse tampouco lutou na comuna de Paris em 1871, já que, por esse tempo, seu corpo jazia no Cemitério Montmartre-Norte.
É certo que a morte, as guerras e o destino trágico perseguem Isidore-Lucien Ducasse desde a origem, quando, aos 2 (dois) anos, testemunha o suicídio de Célestine-Jacquette Davezac (1821), sua mãe, ocorrido na comemoração natalina de 1847, no casarão 9, da rua Camacuá, em Montevidéu. Aos 13 anos, devido às pestes e guerras no Uruguai, o menino é empurrado num navio pelo chanceler interino do consulado geral da França em Montevidéu, François Ducasse (1809-1887), seu pai, para ser educado no sul da França, onde sofre crises de angústias terríveis e os rigores dos pedófilos nas prisões escolares de Tarbes e Pau. Aos 18 anos, tendo em mãos um baccalauréat e uns Cantos inacabados, adota para si o pseudônimo “Conde de Lautréamont” e vai aventurar-se no mundo das letras em Paris e Bruxelas. Rejeitado pelos editores e decepcionado com o paroquialismo literário francês, o jovem escritor, precursor do surrealismo e discípulo de Baudelaire, abandona os estudos formais e passa a desfrutar, às expensas do pai, de uma vida pomposa em Paris, sendo hóspede do hotel Verdun, no Cais d’Anjou, 17. Sentindo-se no topo do mundo, Ducasse adquire hábitos refinados, aluga um fiacre-negro, com cocheiro agaloado e passa a freqüentar os teatros, bistrôs e torna-se um freguês assíduo dos cabarés do Montmartre. Quando tudo vai bem na vida desse dândi precoce, contemporâneo de Verlaine e Marllamé, eis que François Ducasse toma conhecimento da vida boêmia e errante do filho e o abandona. Com os orgulhos feridos e cheio de esperanças no seu futuro literário, Ducasse empreende viagens à Bélgica na esperança de aproximar-se de Baudelaire, Paulet Malassis e Victor Hugo, que vivem em Bruxelas na condição de expatriados. Nessas aventuras, Ducasse se dá conta de que, em pouco tempo, havia dilapidado a antecipação de herança que seu pai havia concedido sob a tutela do banqueiro Jean Darasse. Ducasse retorna a Paris e passa a viver nos quartos de fundos e sem direito a lenha, nas pensões de segunda categoria, onde é tratado como hóspede relapso e impontual. Sem emprego, sem família, sem amigos e submetido à tirania financeira de Jean Darasse, Ducasse, rompe com as instâncias normativas da vida, fazendo da arte literária o refúgio da sua fuga e do isolamento no quarto, o seu cativeiro, revivendo assim, o tempo daquele adolescente aprisionado nos liceus, onde acabou aprendendo a amar as paredes do próprio cárcere. Completamente desiludido e sentindo na carne que o ato da criação é uma eternidade sufocante, Ducasse passa a viver às margens das regras sociais, fugindo dos credores e sofrendo privações materiais e morais de toda ordem. Em 1870, estoura a guerra franco-prussiana e o império de Luis Napoleão tomba aos pés de Bismarck, o chanceler de ferro da Prússia. A decadência leva seu tutor, o banqueiro Jean Darasse, à bancarrota, que arrasta as finanças do cônsul François Ducasse, deixando-o praticamente falido e submetido às perseguições diplomáticas no Uruguai, país que também está em chamas. Aos 24 anos, sem ter como se suster no quarto 7, da rua du Faubourg-Montmartre, e profundamente deprimido com a carnificina que avoluma os cadáveres nas ruas de Paris, o jovem escritor ingere um coquetel mortífero, arrepanha sua navalha e, na manhã de 24 de novembro de 1870, seu cadáver é encontrado pelo garçom, Antoine Milleret, cumprindo-se, portanto, a profecia escrita no Canto Primeiro, décima estrofe: Ao despertar, minha navalha, abrindo caminho através do pescoço, provará que nada, com efeito, é mais verdadeiro...
Além da obra principal, Los Cantos de Maldoror, de um livro inacabado, intitulado Poésies e de uma gigantesca biobibliografia, Ducasse deixou registros fundamentais que comprovam, cabalmente, sua existência, tais como: a certidão de nascimento, encontrada por volta de 1920 pelos irmãos, Álvaro y Gervasio Guillot Muñoz, na Cúria de Montevidéu; uma foto de 1865 com os condiscípulos da turma de retórica do Liceu de Pau; sete cartas, em poder dos colecionadores de raridades; e o atestado de óbito – Extrait des minutes des actes Nº 768419, expedido pela Prefeitura do Sena. Contudo, seu túmulo e seus restos mortais desapareceram, mas há registros de que seu cadáver foi sepultado no dia 25 de novembro de 1870, numa tumba de cessão temporária na 35ª divisão do Cemitério Montmartre-Norte, e após 57 dias do sepultamento, mais precisamente em 20 de janeiro de 1871, foi trasladado para a 49ª divisão do mesmo cemitério, onde permaneceu até o meado de 1890, quando as autoridades da França transferiram seus restos para um ossuário público.
Acreditamos que o suicídio de Célestine foi um incidente insuperável na vida de Ducasse e também decisivo na formação da sua personalidade e do seu caráter. É provável que, nos seus anos de confinamento nos liceus franceses, ele tenha compreendido e pensado no suicídio como uma forma de ruptura com qualquer fundamentação absoluta. (...) triste como o universo, belo como o suicídio. E é possível supor que, nos seus momentos entediantes, sem ter a quem recorrer, a figura do pai ausente, aparecesse apenas como uma imagem entressonhada. Apesar de tudo, o ódio que Ducasse sentia ou fingia sentir pelo pai, não resistia a um naco de afeto. Não era um ódio legítimo.
É consenso entre os investigadores que o castelhano sempre esteve na gênese do pensamento de Ducasse. As vozes que ele faz reverberar nos Cantos nada mais são do que os ecos da sua infância caótica numa Montevidéu incendida e mortificada pela carnificina das guerras. Não há como negar que o castelhano teve grande influência na sua composição e na sua linguagem. Percebe-se isso até mesmo nas suas improbidades estilísticas, que são, de fato, as marcas que caracterizam um autor em processo contínuo de mutação. Em função dessas flutuações ele se via constantemente ameaçado de falência criativa em função dos sintomas depressivos. E aqui cabe a questão: como ignorar que a revolta do seu personagem, Maldoror, são reflexos da sensação sinóptica de tudo o que Ducasse apreendia como experiência sensível na infância?
Uma das acusações mais intrigantes é a de que Ducasse teria plagiado seu cognome a partir de uma corruptela de Lautréaumont, nome de um personagem do escritor francês Eugène Sue, autor de Les Mystères de Paris. Embora pareça verossímil, discordamos dessa hipótese e tudo nos leva a crer que ele inventou para si um cognome extremamente original e estranho, tanto e quanto a etimologia da palavra e o significado que pretendia dar. Fundamentado na tese do bilingüismo em Ducasse, sugerimos o reparo desse equívoco imperdoável da crítica mundial, um erro que vem se repetindo desde o século XIX, tocante ao pseudônimo "Lautréamont", que não é plagio de Eugène Sue. Sustentamos uma hipótese que exprime rigor e consistência, e eclodiu quando associamos a palavra "l'autre", que significa "o outro", com a preposição "a", que indica lugar e como sabemos ser o "a" um metaplasmo de acréscimo que chamamos de epêntese, uma vez justaposto à mont, raiz da palavra Montevidéu, resultou literalmente em Lautréamont, cujo sentido exato, preciso e incontestável é "o outro de Montevidéu", já que o primeiro seria o próprio Ducasse. Claro que um autor de tamanha genialidade não haveria de pecar por tão pouco. Cremos que sua intenção real foi criar mesmo um problema de onomástica, ciente de que amanhã haveríamos de elucidar o enigma.
Outra intrigante questão, envolve a crítica literária, que acumula ao longo dos séculos opiniões inconciliáveis sobre a obra e sobre o homem, Ducasse. E não foram poucos os críticos que, a pretexto do ofício, distanciaram-se do texto em busca de traços da sua personalidade. Nesse deslocamento de foco, a crítica literária erudita cedeu lugar de honra às flutuações psicológicas mais diversas, as quais, inevitavelmente, exageram traços de ‘psicose’ e enfatizam crises de ‘esquizoidismo’ em Ducasse, tomando Los Cantos de Maldoror como sintomas clássicos de loucura, satanismo, desvios morais e crises do inconsciente.
Na linha das opiniões inconciliáveis, de um lado Ducasse foi mordido por Jean Paul Sartre, ironizado por Albert Camus e desmerecido por György Luckács, e do outro lado foi exaltado por André Gide, André Breton, André Malraux, Paul Éluard, Philippe Soupault, Gaston Bachelard, Antonin Artaud, Salvador Dali, Walter Benjamin, Georges Bataille, Octavio Paz, Pablo Neruda, Marcelin Pleynet, e por mais uma legião de autores e fãs cuja lista não caberia neste espaço.
Mas esses confrontos de idéias justificam-se e contribuíram sobremaneira para a consolidação do mito, uma vez que, desde o princípio, Ducasse se caracteriza como um autor de leitores secretos e, ao longo do século 20, foi espicaçado, velado e louvado sob a redoma fria das academias e universidades e, nas décadas do pós-boom dos surrealistas, esteve sob a custódia silente dos núcleos mais fechados de escritores, bibliófilos e eruditos.
Entretanto, não se pode negar que os ataques, em parte, são reflexos do moralismo intelectual ou do ideal crucífero, os quais realçam bem o componente conservador ou mesmo laico de uma época romântica e preconceituosa que se estende até os dias atuais. Mas até mesmo os adversários reconhecem que Ducasse é autor de um texto cifrado, singular e único, porque ousou em demasia: no plágio, na crueldade, na ingenuidade, nas improbidades estilísticas, inovou em estética e levou ao extremo, tanto na ficção, quanto na vida real, a busca existencialista do impossível, onde Sartre se perdeu: Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta... acreditava ser mais! Ducasse parece ter compreendido melhor que Sartre e Camus, que o ímpeto rebelde e vanguardista é próprio da juventude e somente a juventude é capaz de jogar ciscos nos olhos da experiência.
Há outro ponto em que os críticos de todos os tempos convergem e se curvam: Ducasse é, verdadeiramente, gênio, um gênio original e senhor absoluto da sua criação. Ora, sendo ele um leitor voraz e conhecedor da problemática literária do seu tempo, é aceitável que ele sabia perfeitamente em que fronteira deveria situar-se como escritor: na fronteira tênue e contígua, entre a genialidade e a loucura. Nessa fronteira, ao criar Maldoror, um personagem desolado, sinistro, cruel, ambíguo e dilemático, Ducasse, ciente da perseguição dos tribunais contra Baudelaire, seu ídolo voluptuoso, já antevia pelo menos três situações: o silêncio da corte literária francesa; um possível esquartejamento na imprensa; e a recusa do leitor de compreender a lógica da metamorfose que norteia o enredo. Para não cair em desgraça, Ducasse cuidou de preservar a sua verdadeira identidade escondendo-se à sombra de Lautréamont. Nessa sombra vem ancorar-se a tese da tríplice alteridade, na qual Maldoror se revela como alter ego, ora de Lautréamont, ora do próprio Ducasse. Aqui, precisamente, há uma nova convergência de opiniões: Ducasse não estabeleceu um limite entre a vida e a arte, e não demarcou a fronteira entre si próprio e Lautréamont, tanto que, no enredo, o escritor, Ducasse, suprime a voz do personagem, Maldoror, para dar lugar ao narrador, Lautréamont, num jogo de espelhos em que a fúria literária e a lógica rigorosa de confronto de egos revelam, claramente, o fenômeno da dúbia alteridade como expressão do “Eu” ducasseano. Lanço um prolongado olhar de satisfação à dualidade que me compõe (...) e me acho belo.
As dualidades que aparecem de diversas formas no enredo, levaram alguns juízos a reafirmar que a cisão de personalidade em Ducasse é um claro sintoma de escrizofenia precoce. Ora, o mundo nunca parou de produzir loucos e esquizofrênicos e, no entanto, nenhum louco e nenhum esquizofrênico produziu um texto que se assemelhe a Los Cantos de Maldoror, uma obra composta de tal forma racional que, cada bloco narrativo pode ser alvo de múltiplas interpretações, tanto por sua riqueza simbólica, quanto por sua integridade, originalidade e propósito: realçar a crueldade humana e atacar o homem, essa besta fera, e o Criador, que engendrou semelhante verme.
É certo que a opção pelo anonimato, contribuiu sobremaneira para a obscuridade da obra, mas é improvável que o objetivo não tenha sido apenas para evitar problemas com os Tribunais franceses. Admite-se que pode ter sido por complexo ou receio de abrir a tumba do seu passado, tanto que escreveu num tom profético em Poésies: Não deixarei memórias; ou para se sobrepor ao stablishment literário do seu tempo: Os gemidos poéticos deste século não passam de sofismas horrendos(...) Desde Racine, a poesia não progrediu um milímetro. Retrocedeu. Graças a quem? Aos Grandes-Cabeças-Moles de nossa época.; ou ainda para revelar pelo avesso sua vocação póstuma, como profetiza no Canto Primeiro: O final do século dezenove verá seu poeta, e somente mais tarde, quando certos romances tiverem saído, compreendereis melhor o prefácio do renegado, de rosto fuliginoso.
Este livro, composto no claustro dos liceus sobre o páthos do ódio à repressão é, no sentido mais amplo da literatura, um Canto à subversão, um Canto à liberdade e pode ser apreciado como o desabafo de um adolescente que não teve escolhas, como se percebe no fragmento: Quando o aluno interno, em liceu, é governado por anos que são séculos, do amanhecer até a noite e da noite até o dia seguinte, por um pátria da civilização, que não tira os olhos dele, sente as ondas tumultuosas de um ódio vivaz, a subir como uma fumarada espessa até o seu cérebro, que lhe parece a ponto de estourar. De dia seu pensamento se lança por sobre as muralhas da morada do embrutecimento, até o momento em que escapa, ou em que o expulsam, como a um empestado desse claustro eterno.
 Essa é voz de Ducasse e pelo tom, percebe-se que, sem o componente de ódio, um ódio como expressão de luta individual e de resistência intelectual, seu texto perderia a sua dimensão mais original e radical. Esse ódio aparece também em oposição ao fundamento pecaminoso da repressão sexual, que é exaltado em: Eu fiz um pacto com a prostituição, a fim de semear a desordem entre as famílias. Aparece também nas declarações de pederastia, sempre associadas a um ato de extrema crueldade, de proibição e transgressão, que nos discursos assumem uma dimensão lírica ou mesmo elegíaca pela impossibilidade de realização do desejo. Numa França católica e moralista, a suposta pederastia e o bilingüismo em Ducasse, realçam bem os motivos da sua dupla exclusão social: pelo sexo e pela nacionalidade. 
Portanto, a obra que temos em mãos tinha mesmo de ser escrita do modo como foi concebida: a rever e a corrigir, razão pela qual existe por si mesma desde 1868. Mas permaneceu esquecida e renegada até o final do século 19, quando, enfim, saiu do anonimato para encontrar os seus primeiros leitores. Somos tributários da publicação do Canto Primeiro, que veio à luz na França em agosto de 1868, à Imprimerie Balitout et Cie. Mas foi Alfred Sircus, editor de La Jeunesse, o primeiro a chamar a atenção para a obra de Lautréamont em 1868:  El primer efecto producido por la lectura de este libro es la surpresa…, la extrañeza selvagem, el vigor desesperado de las ideas, el contraste de este lenguaje apasionado junto com las elucubraciones más anodinas de nuestro tiempo, dejam de inmediato a nuestro espíritu en un estupor profundo… No iremos mas lejos em el examen de este libro. Basta leerlo para sentir la poderosa inspiración que lo anima, la oscura desesperación derramada en estas paginas lúgubres.
Em janeiro de 1869 o jovem editor de Bordeaux, Evariste Carrance, publica os Cantos na coletânea Parfums de L’âme, da série Littérature Contemporaine. Em meados de 1869, a versão completa de Les Chants de Maldoror é publicada na Bélgica por “Lacroix e Verboekchoven”, editores de Victor Hugo e Baudelaire. Mas esses editores, apesar de haverem embolsado 400 francos como pagamento da edição, não cumpriram o acordo editorial e esconderam a obra temendo represálias e perseguições da Suprema Corte. Em 1874, portanto, quatro anos após a morte de Ducasse, o livro foi posto à venda na Bélgica, com nova capa, no libraire-éditeur Jean- Baptiste Rozez. Mas teve de esperar ainda uma década para, em 1885, chegar às mãos do director da La Jeune Belgique, Máximo Waller, que o levou aos seus amigos, Iwan Gilkin, Albert Giraud, e estes lhe recomendam as leituras de Huysmans e do visionário e apocalíptico escritor, Léon Bloy. Em 1887 León Bloy dedicou um parágrafo a Lautréamont em seu romance, El Desesperado e em 1890 publicou um artigo devastador e ambíguo na Revista La Plume, no qual assevera: La contínua obseción de este infeliz Lautréamont – indudablemente un seudónimo – es en efecto el blasfemo. Y si se hace misantropo, es porque recuerda que el hombre fue hecho a semejanza de Dios. Contudo, o mesmo Léon Bloy, que chamou Lautréamont de louco e sua obra de monstro de livro, reconhece a dimensão do jovem escritor:  Ese extraordinario poema en prosa, convertido en rareza bibliográfica y solamente conocido por algunos artistas que se lo pasan de mano en mano con insistentes recomendaciones, no dejará de situarse en el eje de la más activa preocupación de las almas profundas, en este fin de siglo… Esse Lautréamont, o mais deplorável, o mais dilacerante dos alienados. As litanias satânicas de As Flores do Mal, se comparadas a esse monstro de livro, assumem repentinamente um certo ar de anódina carolice.

Los Cantos de Maldoror vão viver então uma nova vida quando León Genonceaux o reedita na França em 1890, com um prefácio curto no qual critica Léon Bloy, que lhe havia sugerido a publicação de Lautréamont e defende a sua iniciativa editorial escrevendo: Hemos pensado que la reedición de una obra tan interessante como ésta habría de ser bien recebida. Sus vehemencias de estilo no habrán de sorpreender una época tan literaria como la nuestra. Por más extremas que sean, conservan una profunda belleza y no revisten el menor carácter pornográfico. La crítica sabrá apreciar como corresponde estos Cantos de Maldoror, poema extraño y desigual, donde se suceden en furioso desorden, episodios admirables y otros a veces confusos.
Em 1896, Rubén Darío, influenciado por Léon Bloy, publica em seu livro Los Raros, um ataque feroz contra Lautréamont: Su nombre verdadero se ignora... Él se dice montevideano; pero ¿quién sabe de la verdad de esa vida sombría, pesadilla tal vez de algún triste ángel a quien martiriza en el empireo el recuerdo del celeste Lucifer? Vivió desventurado y murió loco. O mesmo Rubén Dário se curva ao genio dizendo: Escribió un libro que sería único si no existiesen las prosas de Rimbaud; El no pensó jamás en la gloria literaria. No escribió sino para si mismo. Nacio con la suprema llama genial, y esa misma le consumió.
Como que indiferente à ciclotimia crítica, um novo ciclo começa após a 1ª Guerra Mundial, com a apropriação de Lautréamont pelos surrealistas, que o declaram, o poeta maior da modernidade, o único escritor íntegro, insuspeito e que não teria feito concessões nem mesmo a sí próprio. André Breton, seduzido pela idéia de comunização da literatura proposta por Lautréamont, A poesia deve ser feita por todos, e não por um, copia Poésies I e II na Biblioteca Nacional de Paris e juntamente com Aragon e Soupault, publicam-na em 1919  na revista Littérature.  Em 1920 sai uma nova edição de Los Cantos de Maldoror, cabendo a André Malraux a árdua tarefa de apontar as diferenças entre a primeira versão, de 1868, e a edição publicada na Bélgica, por Lacroix, em 1869.
É provável que André Gide tenha compreendido melhor Lautréamont do que os próprios surrealistas, anunciando: Lautréamont jamais admitiria confessar os motivos psicológicos e a causa da sua revolta contra todas as convenções da existência do mundo.(...) Sua influência ao longo do século XIX foi nula, porém ele é como Rimbaud, talvez mais que Rimbaud, o padrão para aqueles que surgirão na literatura do amanhã.
Em janeiro de 1928, François Alicot presta um grande serviço, entrevistando Paul Lespés, condiscípulo de Ducasse nos Liceus de Tarbes e Pau e filho de Jean Dazet, tutor de Ducasse. Alicot extrai de Dazet preciosas informações sobre Isidore Ducasse:
Conheci Ducasse no Liceu de Pau, no ano de 1864. Ele estava comigo e com Minville na classe de retórica e no mesmo curso. Ainda vejo aquele rapaz grande, magro, as costas meio curvas, a tez pálida, os cabelos compridos caindo atravessados sobre a testa, a voz meio estridente. Sua fisionomia nada tinha de atraente. Habitualmente, era triste e silencioso, como se estivesse dobrado sobre si mesmo. Por duas ou três vezes, falou-me com uma certa animação dos países de além-mar onde se levava uma vida livre e feliz. Com freqüência, na sala de estudos, passava horas com os cotovelos apoiados na carteira, mãos na cabeça e os olhos fixos em um livro clássico que não lia. Via-se que estava mergulhado em um devaneio. Eu achava, como meu amigo Minville, que ele sentia saudades e que a melhor coisa que seus pais poderiam fazer seria levá-lo de volta a Montevidéu. (...)
Adotado pela geração de Lorca e Alberti, Lautréamont é considerado por Octavio Paz como a Águia real, a águia negra da poesia universal. J.G.M. Le Clézio, no prefácio da edição preparada por Hubert Juin, fala de uma obra primitiva e única, que não tem paralelos em nossa tradição literária. Marcelin Pleynet, em Lautréamont par lui-même, Éditions du Seuil, 1967, escreve: É o livro mais radical de toda a literatura universal.
Construída em forma de relatos ficcionais, a obra de Ducasse amplia as possibilidades da ficção e das estruturas dramáticas lineares e, ao mesmo tempo desarticula, de uma vez, o paradigma da narrativa dramática estruturada sobre os pilares da lógica aristotélica de: começo, meio e fim. E foi mais longe: transformou a palavra em entidade sonora e a metáfora em entidade pensante, o que nos impossibilita tentar suprimir dos Cantos a exatidão lógica da sua desordem, pois, num movimento do pensamento, a metáfora que já havia encontrado um lugar, um tempo e um significado exato, evola-se, e salta dos sentidos para adquirir, em seguida, uma forma transfigurada de ascese.

Lautréamont, um anticanônico que ergueu sob os próprios ossos uma catedral de metáforas, agora é elevado à categoria de clássico universal, ganhando edições e reedições sucessivas em todas as línguas e países do planeta. Devemos uma parte dessa construção secular aos seus tradutores, editores e leitores de todas as línguas, que ousaram reescrever, publicar e ler sua obra, muito mais por paixão do que por recompensas, como é o caso do veterano e exemplar tradutor e escritor, Manuel Serrat Crespo, homem de letras possantes, condecorado por mérito e reconhecido pelo talento, que agora me concede a honra de poder compartilhar com seu feito tradutório, acolhendo este prólogo, através do qual expresso o meu entusiasmo de  poder celebrar a nossa irmandade, entregando aos leitores de língua espanhola, a obra de Ducasse, que também é de Manuel Serrat Crespo (traduzir e reescrever) e que aparece no início do século 21, graças à luminosa idéia de Pere Sureda e Ilse Font, editores da Belacqva, cujo selo estampa a obra que me furtou quatro anos de pesquisas e mais três de escritura, e que vem à luz em língua espanhola com o título, Cantos del Otoño, la novela de la vida de Lautréamont. Portanto, reeditar Los Cantos de Maldoror após 139 anos da sua primeira publicação, juntamente com a biografia ficcional de Lautréamont, é a afirmação real e concreta da validade da arte pala arte mesma; é validar o caráter subversivo e libertário do criador, privilegiando o homem e a obra, que se completam e se confundem na entidade pensante que jaz e se eterniza no vulto de Isidore Ducasse. Com essas edições primorosas que a Belacqva entrega aos leitores, fica patente que, no domínio da arte só pode existir concretamente aquilo que antes existia simbolicamente. 
Finalizo este prólogo com esperança de que os leitores apreciem com vagar essas obras e compreendam a razão pela qual a ficção do autor não pode consentir que a racionalidade pura se aposse dos espaços reservados aos sonhos. 

Ruy Câmararuycamara@uol.com.br


Lautréamont e os prazeres do comparatismo literário


Claudio Willer
.
Lautréamont
Literatura Comparada é a disciplina através da qual crítica e estudos literários podem respirar, libertos da opressão do paradigma e da prisão na série cronológica.

E Lautréamont é um autor que convida aos estudos comparados, não só pelo modo como se apropriou de tanta criação literária - o plágio é necessário, declarou, completando a afirmação famosa de que a poesia deve ser feita por todos, não por um - mas também pelas sincronias: por todas as ressonâncias, afinidades, aparentes diálogos, mas que independem de haver lido ou não outro autor. Em meu prefácio para a edição brasileira - Lautréamont: Os Cantos de Maldoror, Poesias, Cartas (obra completa), tradução, prefácio e notas de Claudio Willer, Iluminuras, São Paulo, 2005 - já observei a riqueza do intertexto de Lautréamont. Aqui, prossigo, utilizando o que disse em uma palestra recente (no ciclo “Malditos” na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo), e focalizando, em especial, sua relação com Baudelaire.
Evidentemente, nem tudo o que virá a seguir é novidade. Baudelairismo em Lautréamont já foi examinado inúmeras vezes. De especial valia é a demonstração, por Pichon-Rivière, de que François Ducasse, o pai de Isidore Ducasse, o futuro “Conde de Lautréamont”, já tinha As Flores do Mal em sua biblioteca em Montevidéu (em Pichon-Riviére, Psicoanalisis del Conde de Lautréamont, Ed. Argonauta). Portanto, a leitura de Baudelaire por Lautréamont pode ter precedido até mesmo sua ida à França para estudar em Tarbes e Pau. Passagens deOs Cantos de Maldoror sugerem um Ducasse-Lautréamont vasculhando bibliotecas, à cata de textos de Baudelaire que já haviam saído em revistas, mas não em livro. Por exemplo, o modo como parece comentar, seguindo e ao mesmo tempo contestando Baudelaire, em uma passagem sobre o riso. “Quanto a mim, não sei rir”, diz Lautréamont, em uma estrofe enigmática de Os Cantos de Maldoror, mas na qual há rastros evidentes da leitura de Da Essência do riso e de Modo Gera do Cômico nas Artes Plásticas de Baudelaire. Mas, para ler esse ensaio, teria sido necessário que Lautréamont consultasse os periódicos em que ele foi publicado em 1855 e 57.
É o que Jean-Luc Steinmetz observa, em seu prefácio a uma das edições francesas da obra completa de Lautréamont (Isidore Ducasse, le Comte de Lautréamont, Les Chants de Maldoror, Poésies I e II, Correspondance, edição preparada e prefaciada por Jean-Luc Steinmetz, Paris, GF-Flammarion, 1990):
Maurice Blanchot mostrou, um dos primeiros, tudo o que Isidore devia a esse Baudelaire obcecado pelo problema do mal, mas pronto a transcendê-lo pela busca da beleza pura, pela arte soberana. Baudelaire, Ducasse: acreditamos ver passar mais de uma vez essa dupla sobre o palimpsesto dos Cantos: Mario e Maldoror galopam ao longo da beira-mar (mas poderia também ser Byron esse cavaleiro companheiro). De Baudelaire, Ducasse retém tudo, inclusive as sugestões: o poder do riso (rechaçado, contudo, por As Flores do Mal), a excentricidade como estética. Ele acrescenta aos ingredientes de um romantismo hipertrofiado o sentido do hibridismo, das ligas. Por sua instigação, penetram-se formas do discurso aparentemente incompatíveis (assim como Maldoror se une à fêmea do tubarão), códigos que se ignoram. Linguagens das matemáticas, da entomologia, da física, da ética: outras tantas parcelas idiomáticas que ele não hesita em alfinetar com insolência sobre os artifícios mais gastos da retórica clássica. Intervenção quase cirúrgica que ele parafraseia, aliás, claramente, quando faz que se reencontrem sobre uma “mesa de operação” um guarda-chuva e uma máquina de costura.
As afirmações de Steinmetz sobre “formas do discurso aparentemente incompatíveis” podem ser bem ilustradas por uma das passagens em que comparecem os “belo como”, a do Canto Sexto, na qual Maldoror se contempla diante de um espelho e se acha belo:
Raúl Vázquez
Hoje, sob a impressão dos ferimentos que meu corpo recebeu em diferentes circunstâncias, seja pela fatalidade do meu nascimento, seja por minha própria culpa; desalentado pelas conseqüências da minha queda moral (algumas dentre elas aconteceram; quem poderá prever as outras?); espectador impassível das monstruosidades adquiridas ou naturais, que decoram as aponevroses e o intelecto de quem vos fala, lanço um prolongado olhar de satisfação à dualidade que me compõe... e me acho belo! Belo como o vício de conformação congênito dos órgãos sexuais do homem, que consiste na brevidade relativa do canal da uretra e na divisão ou ausência da parede inferior, de modo que o canal se abra a uma distância variável da glande e por baixo do pênis; ou, ainda, como a verruga carnuda, de forma cônica, sulcada por rugas transversais bem profundas, que se ergue na base do bico superior do peru; ou melhor, como a seguinte verdade: "O sistema de gamas, modos e encadeamentos harmônicos não repousa em leis naturais invariáveis, mas é, ao contrário, conseqüência de princípios estéticos que variam com o desenvolvimento progressivo da humanidade e que continuarão variando!"; e, principalmente, como uma corveta encouraçada com torreões! Sim, sustento a exatidão da minha afirmação. Não tenho ilusões presunçosas, orgulho-me disso, e nada ganharia em mentir; de modo que, quanto ao que eu disse, não deveis vacilar em acreditar-me. Pois, como iria eu inspirar horror a mim mesmo, diante dos testemunhos elogiosos que partem da minha consciência?

Esse trecho é um microcosmo de todo Os Cantos de Maldoror. Exibe os recursos mobilizados por Lautréamont na criação de sua obra: as hipérboles, os enunciados não-lineares, o uso abundante de termos científicos fora de contexto; a relação especular e metalingüística (o autor a comentar seu próprio texto), a exortação ao leitor, a justaposição de termos incompatíveis. Ou, antes, duplas incompatibilidades, paradoxos em dobro: associar um canal da uretra ao belo já é paradoxal; muito mais, juntá-los na mesma seqüência a uma crista de peru, um enunciado sobre estética e uma corveta.
É possível observar uma origem baudelairiana desse tipo de junção paradoxal, colocando termos antagônicos ou incompatíveis na mesma seqüência? Em caso positivo, não seria oHino à Beleza, de As Flores do Mal, um bom exemplo desse procedimento? Examinemos esse poema (transcrito de Charles Baudelaire, poesia e prosa, edição Nova Aguilar, tradução de Ivan Junqueira):
HINO À BELEZA
Vens do céu profundo ou sais do precipício,
Beleza? Teu olhar, divino mas daninho, 
Confusamente verte o bem e o malefício,
E pode-se por isso comparar-te ao vinho.

Em teus olhos refletes toda a luz diuturna;
Lanças perfumes como a noite tempestuosa;
Teus beijos são um filtro e tua boca uma urna
Que torna o herói covarde e a criança corajosa.

Provéns do negro abismo ou da esfera infinita?
Como um cão te acompanha a fortuna encantada;
Semeias ao acaso a alegria e a desdita
E altiva segues sem responder nada.

Calcando mortos vais, Beleza, a escarnecê-los;
Em teu escrínio o Horror é jóia que cintila,
E o Crime, esse berloque que te aguça os zelos,
Sobre teu ventre em amorosa dança oscila.

A mariposa voa ao teu encontro, ó vela,
Freme, inflama-se e diz: “Ó clarão abençoado!”
O arfante namorado aos pés de sua bela
Recorda um moribundo aos pés do túmulo abraçado.

Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! Ó monstro ingênuo gigantesco e horrendo!
Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta
De um infinito que amo e que jamais desvendo?

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Que importa,se és tu quem fazes - fada de olhos suaves,
Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia! -
Mais humano o universo e as horas menos graves?

É um poema feito de pares de opostos que se encontram: alegria e desdita, noite e dia, mariposa e vela, amante e moribundo, céu e inferno, Satã e Deus. Claramente, os “belo como” de Lautréamont são uma aplicação da própria concepção de beleza, da estética tal como proposta em Hino à Beleza.
Raúl Vázquez
Em comum aos dois textos - o poema de Baudelaire e o trecho citado de Os Cantos de Maldoror -, o modo como ambos transgridem o princípio lógico da identidade e não-contradição. Neles, uma coisa também pode ser outra, isto é aquilo, e os opostos se confundem.

Hino à Beleza é citado por Erich Auerbach (em As Flores do Mal e o sublime) como um dos exemplos da ambivalência em Baudelaire; da expressão literária de seu “direito de contradizer-se”. Outro bom exemplo de encontro de opostos em As Flores do Mal está nestes versos de O Heautontimoroumenos:
Eu sou a faca e o talho atroz!
Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada,
Eu sou a vítima e o algoz! [1]
É possível observar, comparando esses versos com aqueles do Hino à Beleza, como que uma passagem do abstrato para o concreto, do geral para o particular, do sagrado para o mais profano. Pares como talho e faca, rosto e bofetada, estão mais próximos de nós, do real imediato, que Deus e Satã. A interpretação dessa passagem, de um nível para outro, é possibilitada pelo exame do verso anterior do mesmo poema:
Não sou por acaso um falso acorde
Nessa divina sinfonia,
Graças à voraz Ironia
Que me sacode e que me morde?
Ironia - aí está uma palavra-chave, indissociável da contribuição do próprio Baudelaire, para se entender o modo como suas imagens reaparecem em Lautréamont.
Que Lautréamont aprendeu algo, ou melhor, aprendeu muito da leitura de Baudelaire, é algo fora de dúvida, consensual entre os críticos. Talvez seja mais interessante - e mais concorde com o próprio espírito do comparatismo literário - inverter os termos ou a seqüência dessa comparação, perguntando o que se aprende de Baudelaire a partir da leitura de Lautréamont.
Semelhante inversão da série cronológica foi sugerida por Borges em Kafka e seus precursores. Entre outros desses “precursores” de Kafka - Zeno, Han You, Leon Bloy, Dunsanny, Browning - está Kierkegaard, por histórias como esta, das expedições ao Pólo Norte:
Raúl Vázquez
Os párocos dinamarqueses haviam declarado, de seus púlpitos, que participar de tais expedições convinha à salvação eterna da alma. Teriam admitido, no entanto, que chegar ao Pólo é difícil e talvez impossível, e que nem todos podem empreender a aventura. Finalmente, anunciariam que qualquer viagem - da Dinamarca a Londres, digamos, em um vapor de carreira -, ou um passeio dominical de carro de praça são, pensando bem, verdadeiras expedições ao Pólo Norte.

Interessam as conclusões extraídas por Borges dessas leituras retrospectivas, de um “precursor” como Kierkegaard a partir do seu “sucessor” Kafka, independentemente de Kafka haver lido ou não esses comentários de Kierkegaard:
O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro.
A mesma idéia, da leitura como transformadora e atualizadora do passado, pode ser encontrada, sintetizada de modo feliz, em Roland Barthes, na passagem de O Prazer do Textoem que comenta como vê Proust em um texto citado por Stendhal e em uma passagem de Flaubert sobre “macieiras normandas em flor”, para observar que “a obra de Proust é, ao menos para mim, a obra de referência, a mathesis geral, a mandala de toda a cosmogonia literária.” Vê-se que, para Barthes, Proust é um ensinamento, fonte de conhecimento para a leitura de Flaubert e Stendhal: torna-os mais legíveis.
Portanto, não se trata apenas de examinar uma relação genética, de discutir o quanto Lautréamont leu Baudelaire, e quais as dimensões da influência do autor de As Flores do Malsobre a criação de Os Cantos de Maldoror. O contrário também é importante: a “criação” de Baudelaire como precursor a partir da leitura de Lautréamont. Em outras palavras: o quanto ler Lautréamont nos ajuda a enxergar mais em Baudelaire e a ampliar sua legibilidade.
Mas qual é o sentido dessas aproximações de termos opostos (em Baudelaire) ou incompatíveis (em Lautréamont) para personificar a beleza? Como podem ser interpretados os paradoxos e antinomias de um, os completos absurdos de outro, a “instigação”, na feliz expressão de Steinmetz, à penetração das “formas do discurso aparentemente incompatíveis”?
Talvez esclareça a citação de outra passagem de Os Cantos de Maldoror, aquela do acasalamento de Maldoror com a fêmea do tubarão, nesta explosão lírica:
Duas coxas nervosas se colaram estreitamente à pele viscosa do monstro, como duas sanguessugas; e, os braços e as nadadeiras entrelaçados ao redor do corpo do objeto amado, rodeando-o com amor, enquanto suas gargantas e seus peitos logo formavam coisa alguma, a não ser uma massa glauca, com exalações de sargaços; no meio da tempestade que continua a provocar estragos; à luz dos relâmpagos; tendo por leito de himeneu a vaga espumosa, transportados por uma corrente submarina como em um berço, rolando sobre si mesmos, rumo às profundezas desconhecidas do abismo, juntaram-se em uma cópula longa, casta e horrorosa!... Finalmente, acabava de encontrar alguém semelhante a mim!... De agora em diante, não estava mais só na vida!... Ela tinha as mesmas idéias que eu!... Estava diante do meu primeiro amor! [2]
A passagem mais significativa, simbolizando essa reintegração à esfera primitiva em Os Cantos de Maldoror é a estrofe do sonho (Lautréamont é todo contraditório: em uma estrofe, execra o sono, diz que prefere morrer a dormir; em outra, logo a seguir, dorme, sonha, e encontra a felicidade): Maldoror adormece e sonha que se transformou em porco selvagem. Assim, atinge um gozo primitivo, uma espécie de estado indiferenciado. Nele,
A metamorfose nunca apareceu a meus olhos senão como elevada e magnânima ressonância de uma felicidade perfeita, que esperava há muito. Finalmente, havia chegado o dia em que fui um porco!
Raúl Vázquez
Essas metamorfoses de Lautréamont-Maldoror já foram bem examinadas (entre outros, por Gaston Bachelard e mais recentemente por Eliane Robert de Moraes em O Corpo Impossível, ed. Iluminuras, 2003). Interessa aduzir que em um caso - dos “belos como” - e em outro - das metamorfoses em animais ou da união sexual com algum animal - há uma fusão de termos ou entidades distintas. A figura de linguagem - a imagem poética feita através da justaposição de realidades distintas - e o relato - da fusão com animais ou com o estado animal - dizem a mesma coisa. Mas, na segunda série de exemplos, não são “formas do discursos” que se penetram, porém seres vivos.

Mas dizem o que essas figuras e relatos? Dizem algo também dito por esta passagem de O Arco e a Lira de Octavio Paz:
A poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso confina com a magia, a religião e outras tentativas para transformar o homem e fazer “deste” ou “daquele” esse “outro” que é ele mesmo. O universo deixa de ser um vasto armazém de coisas heterogêneas. Astros, sapatos, lágrimas, locomotivas, salgueiros, mulheres, dicionários, tudo é uma imensa família, tudo se comunica e se transforma sem cessar, um mesmo sangue corre por todas as formas e o homem pode ser, por fim, o seu desejo: ele mesmo.
Há um vocábulo, neste trecho, que deveria ter sido grifado: desejo. E que reaparece em outra passagem de O Arco e a Lira:
O reino da poesia é o do “Oxalá”. O poeta é “varão de desejos”. Com efeito, a poesia é desejo. Mas esse desejo não se articula no possível, nem no verossímil. A poesia não é o “impossível verossímil”, desejo de impossíveis: a poesia é fome de realidade. O desejo aspira sempre a suprimir as distâncias, conforme vemos no discurso por excelência - o impulso amoroso. A imagem é a ponte que liga o desejo entre o homem e a realidade.
Outra frase a grifar: a poesia é desejo. Desejo sempre maior que seu objeto, por isso irrealizável; daí só poder ser expressado através de enormidades, dessas violências contra a linguagem, contra a lógica e contra a ordem natural das coisas, antevistas e propostas por Baudelaire, e plenamente manifestadas por Lautréamont.

NOTAS
1 Charles Baudelaire - Poesia e Prosa, pg. 166.
2 Lautréamont, Os cantos de Maldoror, Poesias, Cartas, pg. 197. 

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