sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O PAPEL DOS ESTUDOS DE TRADUÇÃO NA BUSCA PELA IDENTIDADE CULTURAL LATINO-AMERICANA - Elaine Barros INDRUSIAK

O PAPEL DOS ESTUDOS DE TRADUÇÃO NA BUSCA PELA IDENTIDADE CULTURAL LATINO-AMERICANA


Elaine Barros INDRUSIAK1

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RESUMO: O presente ensaio propõe-se a reunir reflexões quanto ao papel dos Estudos de Tradução na busca pela identidade cultural brasileira e latino-americana, bem como a analisar em que medida essa colaboração já se configura em nosso meio acadêmico. Partindo de leituras variadas e (aparentemente) discrepantes, procuramos demonstrar que, embora debatam sobre muitos temas comuns, os Estudos Literários e os Estudos de Tradução brasileiros têm mantido, quando muito, um diálogo pouco promissor no que tange às questões de nossa identidade cultural, pois não se percebe um intercâmbio entre tais campos com a profundidade e intensidade que se poderia esperar. Sendo assim, traçamos um panorama desses estudos, que, ainda que superficial, salienta os pontos de contato e as possibilidades reais de pesquisas ainda não exploradas, redimensionando o papel dos Estudos de Tradução como ferramenta básica na busca por uma pretensa identidade cultural latino-americana, que certamente não será totalizante ou definitiva, mas provisória e parcial como toda tradução.

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PALAVRAS-CHAVE: América Latina; identidade; literatura comparada; tradução.

A América Latina tem experimentado, já há algumas dé- cadas, um fenômeno único e sem precedentes em sua histó- ria: a busca de uma identidade cultural compartilhada, em
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diferentes graus, por todos os grupos sociais que nela se con- centram, ainda que os critérios para tais grupamentos sejam essencialmente arbitrários. Esse movimento tem sido de es- pecial notoriedade no âmbito dos Estudos Literários como um todo, sendo contemplado a partir das mais diversas pers- pectivas, desde a da Literatura Comparada até a da Historiografia Literária, passando pela da Sociologia da Litera- tura e mesmo pelo mais tradicional estudo das literaturas lo- cais, correntes que, se antes se opunham, hoje se harmoni- zam e complementam em torno de seu objeto comum, cons- tituindo, talvez, um dos melhores exemplos de aplicação prá- tica do ideal acadêmico da interdisciplinaridade.
Partindo de uma busca comum por teorias e conceitos embasados em nossa realidade circundante que viessem a com- plementar, ou mesmo substituir, as tão recorrentes aplicações de concepções estrangeiras, importadas muitas vezes acriticamente, o movimento teórico-crítico em prol da latinoamericanidad, re- presentado por Ángel Rama, Antonio Cornejo Polar, Antonio Candido e Ana Pizarro, entre outros, já rendeu frutos riquíssimos, mas, mesmo assim, não se permite uma empolgação excessiva, sob pena de incorrer no mesmo erro que o pensamento etnocentrista europeu cometeu: o de artificialmente homogeneizar a realidade latino-americana, plural e multifacetada por excelên- cia. Em função disso, algumas das mais consistentes e abrangentes conceituações oriundas dessa “cruzada” limitam-se, de certa for- ma, a apontar para o caráter dialógico de nossas literaturas e, por extensão, de nossas culturas. Tal é o caso, por exemplo, dos conceitos de transculturação, de Ángel Rama, e antropofagia, de Oswald de Andrade (originalmente uma proposta “estética” vanguardista do Modernismo brasileiro que respondia a uma situ- ação sociocultural bem marcada, mas posteriormente retomado e expandido por estudiosos dos mais variados ramos), bem como da noção de hibridez, tomada à biologia e aplicada aos estudos culturais e sociológicos, muito embora com reservas, como nos mostra Antonio Cornejo Polar (1997, p. 342). Está claro, portan- to, que a exploração dos contatos interculturais que culminaram em nossa(s) literatura(s), e que ainda hoje permeiam-na(s), é um tema caro a essa nova corrente de estudos literários e cultu- rais latino-americanos de bases eminentemente sociológicas.
A essa altura, talvez seja prudente fazermos aqui uma res-

salva. Quando dizemos, como acima, que vivemos um fenô- meno novo e relativamente recente de estudo e problematização de nossa identidade cultural em nível continental, não queremos sugerir que tal discussão não existisse anteriormente, mas ape- nas que, a partir de sua segunda metade do século XX, ela ga- nhou novo ímpeto, manifestando-se de forma mais sistemática e coesa a partir de publicações, congressos e grupos de pesqui- sa. Além disso, talvez pela primeira vez no âmbito dessas pes- quisas estejamos vivenciando um verdadeiro diálogo entre paí- ses e culturas, pois o que mais chama a atenção nesse movi- mento é seu caráter de intercâmbio cultural, cujas bases têm-se mostrado bem mais profundas e sólidas do que as de tentativas de formação de blocos econômicos e zonas de livre comércio, pois não são coibidas por fronteiras ou distâncias geográficas, mas partem do propósito de traçar um panorama sociocultural de países cuja maior semelhança reside em sua condição de culturas transplantadas vivendo, hoje, algo que se convencionou chamar pós-colonialismo.
Na verdade, a própria Ana Pizarro, uma das pesquisado- ras de maior destaque nesse campo, chama a atenção para o fato de o próprio termo “América Latina”, cunhado em 1851 por Torres Gaicedo, remeter a uma certa noção de integração, pois engloba países e culturas resultantes da dominação de espanhóis, franceses e portugueses. Apesar de antigo, no en- tanto, o conceito demorou a ter uma aplicação prática efeti- va, pois, por muito tempo, os estudos e mesmo intenções políticas referentes a uma suposta América Latina aplicavam- se tão-somente à hispânica; o Brasil (apesar de ser modelo de integração, dado o fato de suas complexidade interna e vastidão geográfica nunca terem redundado em fragmenta- ção) e o(s) Caribe(s) foram tardiamente incorporados, e as comunidades indígenas sobreviventes no interior de algumas nações só passaram a gozar de real reconhecimento, nesse sentido, há poucas décadas, apesar dos esforços do cubano José Martí em incorporá-las a “nuestra América” remonta- rem a 1888 (PIZARRO, 1990, p. 13 - 15).
Seria importante salientar, também, que, embora se ca- racterize por uma pluralidade de métodos e de arcabouços teó- ricos, esse movimento teórico-crítico latino-americano desen- volveu-se, e ainda hoje se manifesta, de forma praticamente

indissociável do surgimento e ascensão dos estudos de Literatu- ra Comparada em nosso continente e, mais recentemente, foi também abarcado pelo abrangente espectro dos Estudos Cultu- rais (ou, pelo menos, das pesquisas latino-americanas que se propõem a constituir tais estudos, em geral, segundo os moldes norte-americanos, já que boa parte dos pesquisadores nelas engajados encontra-se nos Estados Unidos). Entretanto, ape- sar dessa fluidez de fronteiras e interpenetração de campos de pesquisa, aparentemente essa nova corrente crítica latino-ame- ricana praticamente não foi influenciada pelo surgimento de um ramo relativamente novo das ciências humanas que, ainda hoje, é responsável por inquietações acadêmicas em nível internacio- nal: os Estudos de Tradução.
Impulsionados pelo final da 2ª Guerra Mundial e pelos investimentos astronômicos de agências estatais européias em pesquisas que levassem à criação de instrumentos para a tradução automatizada de alta qualidade e precisão, os Estu- dos de Tradução ganharam força e notoriedade na segunda metade do século XX, apesar de nunca terem alcançado seu objetivo primeiro. Muito embora a tradução seja um fenôme- no que muitos pensadores consideram anterior mesmo à lin- guagem verbal, já que, elevado à sua potência máxima, con- funde-se mesmo com a compreensão, e, mesmo estando as tradições da literatura e do pensamento filosófico repletas de reflexões quanto à sua natureza, antes da constituição dos Estudos de Tradução faltava ao pensamento ocidental um ramo voltado sistemática e consistentemente para as questões tradutórias. Muitos esforços foram despendidos, então, em prol da criação dessa nova disciplina que clamava por autono- mia, e um dos exemplos mais marcantes e ricos desse esfor- ço de sistematização é o conjunto da obra teórica de James Holmes (1994). Mesmo assim, ainda hoje não se pode dizer que os Estudos de Tradução constituam uma disciplina objeti- va e de contornos nítidos, apesar dos progressos na delimita- ção e caracterização de seu objeto central. Na verdade, es- ses estudos constituem, ainda, salvo em alguns centros de pesquisa que fazem a exceção, um grande guarda-chuva, sob o qual tentam abrigar-se, com maior ou menor sucesso, es- tudiosos das mais diversas áreas, das ciências exatas à filo- sofia, analisando e versando sobre uma infinidade de temas

relacionados às mais diversas concepções de tradução, adici- onando novos ingredientes e temperos a essa grande “tossed salad teórica” de que Julio Pinto já nos falava (1991, p. 105).
Se essa espécie de “confusão” metodológica ainda per- siste em centros de pesquisa de excelência e tradição interna- cionalmente renomados, não há razões para crer que a situa- ção brasileira seja muito diferente. Sem dúvida alguma, os Estudos de Tradução encontraram, em nosso meio acadêmi- co, um terreno fértil para seu desenvolvimento, tanto que cursos de formação de tradutores, congressos e eventos de pesquisadores e pensadores da tradução e publicações sobre o tema experimentaram, nessas últimas décadas, um verda- deiro boom. Da mesma forma que a nova corrente crítica latino-americana, no entanto, esse movimento desenvolveu- se praticamente na esteira dos estudos de Literatura Compa- rada e dos recentes Estudos Culturais, o que certamente não foi uma exclusividade brasileira, mas parece mesmo ter sido um fenômeno comum a diversos centros acadêmicos oci- dentais. Aliás, já em 1993, Susan Bassnet chamava-nos a atenção para a necessidade de delimitarmos as fronteiras en- tre essas disciplinas, ou mesmo estabelecer formalmente suas inter-relações, uma vez que, como propõe a autora, suas posições na hierarquia dos campos de pesquisa devam ser invertidas de uma vez por todas:

Comparative literature has had its day. Cross-cultural work and women’s studies, in post-colonial theory, in cultural studies has changed the face of literary studies generally. We should look upon translation studies as the principal discipline from now on, with comparative literature as a valued but subsidiary subject area. (BASSNET, 1993, p. 161)

De qualquer modo, essa infância compartilhada de disci- plinas diversas contribuiu para que os Estudos de Tradução brasileiros se constituíssem de forma bastante peculiar. Os estudiosos brasileiros de maior destaque e consagração nes- se campo dedicam-se ao estudo quase exclusivo da tradução literária, ou, mais especificamente, da tradução poética, e to- mam por arcabouço teórico profundas considerações filosófi- cas que abordam, ainda que indiretamente, as questões do literário, valendo-se da lingüística apenas como ramo subsidi-

ário, quando chegam a tanto. Tal é o caso daquele que talvez seja nosso maior nome em tradução, Haroldo de Campos, estudioso da linguagem poética dentro da linha “messiânica” de Walter Benjamin e dos Românticos de Iena; ou até mes- mo de Rosemary Arrojo, pesquisadora de formação mais re- cente que já desponta como uma das mais respeitadas e conceituadas estudiosas do ramo, seguidora dos preceitos desconstrucionistas de Derrida. Por outro lado, uma rápida participação em seminários ou congressos realizados por fa- culdades e/ou cursos de formação de tradutores, ou mesmo uma olhada superficial em seus anais e livros de resumos pa- rece ser suficiente para percebermos que, nesses ambientes, o que predomina é a discussão de questões estritamente lin- güísticas que beiram o formalismo, tanto em relação à tradu- ção literária quanto à técnica, o que, sem dúvida, denota uma grande preocupação com a aplicabilidade prática da(s) teoria(s) e com a criação de moldes para a tradução, por mais discutí- veis que esses objetivos sejam. Parece haver, portanto, um certo descompasso entre o conhecimento teórico reconheci- do que o Brasil produz no âmbito dos Estudos de Tradução e aquele de que seus estudantes e futuros tradutores se valem em sua formação.
Uma das prováveis explicações para esse fato vem da própria Rosemary Arrojo ao tentar entender a pouca reper- cussão da Desconstrução de Derrida em nosso meio:

Nosso combalido mundo acadêmico, em grande parte ain- da imerso nas ilusões de sistematização prometidas por um estruturalismo de vocação positivista, tem, entretan- to, em pequena escala e em momentos isolados, acolhido outros teóricos que, como Derrida, são rotulados de ‘pós- estruturalistas’. (ARROJO, 1992, p. 10)

Embora a pesquisadora não mencione, e, nos próprios dados para catalogação de seu livro, o termo Desconstrução conste como item da Lingüística, até onde pudemos obser- var, a limitada prática dessa nova proposta de leitura se dá preferencialmente no âmbito dos Estudos Literários e Cultu- rais, e não lingüísticos. Como resultado, o interesse de litera- tos na tradução (a própria Rosemary Arrojo é mestre em literatura e Ph.D. em Literatura Comparada) parece render

frutos bem mais consonantes com as pesquisas na área, em nível mundial, do que nossos Estudos de Tradução propria- mente ditos, de cunho fortemente lingüístico e voltados pre- ferencialmente aos chamados ramos aplicados da disciplina, como ensino e avaliação de qualidade da tradução. Não há dúvida de que tais pesquisas são interessantes e reveladoras, mas é inegável que tomam por base conceitos e abordagens já há algum tempo tidos como superados e ultrapassados no âmbito dos estudos literários voltados ao fenômeno tradutório.
A grande contradição interna de tudo isso, no entanto, reside no fato de, apesar de nossos estudiosos da tradução dedicarem-se preferencialmente ao estudo da tradução lite- rária, não haver um contato sistemático entre esse ramo e a nova corrente teórico-crítica da literatura latino-americana, cujas bases são essencialmente sociológicas. De um lado, te- mos o mais rico diálogo intercultural acerca de nossa identi- dade já visto na América Latina, um diálogo em que as rela- ções de influência e os contatos entre culturas são peças cen- trais. De outro, temos Estudos de Tradução eminentemente voltados às discussões quanto à natureza da linguagem poé- tica, à estruturação do texto artístico, e a qual é o papel do tradutor frente ao texto original e seu autor, mas raramente tomado em seu papel social de intermediário entre culturas.
Assim, apesar da nítida complementaridade das novas propostas teórico-críticas latino-americanas e os Estudos de Tradução, a ausência de um diálogo interdisciplinar entre tais campos persiste. Tanto que um dos mais aclamados nomes nas pesquisas da latino-americanidade, Ana Pizarro, propõe- se a sintetizar o pensamento de teóricos como Ángel Rama e Antonio Candido e, paralelamente, defende o ensino da língua espanhola no Brasil, assim como do português nos países da fala espanhola, solenemente ignorando o fato de que, por trás de todas essas propostas, certamente válidas, encontra- se o processo tradutório. Assim, muito embora sua proposta seja voltar-se para as questões do literário como processo (PIZARRO, 1985), tanto que retoma várias vezes a noção de formação de Antonio Candido, a autora acaba por reforçar uma visão de nossas literaturas como produtos, pois, ao desconsiderar o papel determinante das práticas tradutórias, está invariavelmente fadada às análises comparativas que delineiam retratos do “antes” e “depois”.

Obviamente, não estamos alegando que esses estudos são falhos ou enganosos, mas apenas apontando para o fato de termos, ainda, limitações a serem superadas, apesar de todos os progressos já alcançados. Entretanto, acreditamos que essa superação esteja bastante próxima, uma vez que André Lefevere já apresentou-nos uma série de reflexões que constituem, no mínimo, uma possibilidade de abrirmos nos- sos horizontes teórico-críticos. Partindo de uma visão da tra- dução como fenômeno cultural, ideológico e mesmo político, o pesquisador procura explicitar a ampla gama de relações de poder e hierarquias estabelecidas dentro dos (poli)sistemas literários (cf. Itamar Even-Zohar). É claro que, sendo Lefevere mais um estrangeiro cujas teorizações caem em nossas mãos (via tradução), devemos ter o cuidado de relativizar todas as suas colocações, julgando em que medida seus conceitos são aplicáveis à nossa realidade e até que ponto podem nos auxi- liar na tentativa de apreendê-la e explicá-la. Entretanto, con- siderando-se que o autor propõe que:

Dentre os seus papéis, a tradução preenche uma neces- sidade, pois o público terá acesso ao texto; permite a expansão de uma língua; confere autoridade a uma lín- gua; introduz novos recursos na literatura receptora; pode constituir uma ameaça à identidade de uma cultura; pode ser usada como subversão de autoridade; pode exercer um papel importante na luta entre ideologias rivais ou poéticas rivais; pode conferir uma certa imunidade na medida em que os ataques à poética dominante podem passar como traduções; pode conferir a autoridade ine- rente a uma língua de autoridade a um texto originalmen- te escrito em outra língua que não tem essa autoridade - por exemplo, o teatro de Strindberg não pertenceria à literatura mundial se ele não tivesse sido lançado em fran- cês, uma língua de autoridade; por um efeito cumulativo, ela estabelece um cânone translingüístico e transcultural. (LEFEVERE apud VIEIRA, 1996, p. 146)

Parece não restar quase nada a ser acrescido em termos de papéis culturais e sociais da tradução, ainda que redimensionemos suas colocações com vistas a encaixá-las ao contexto latino-americano como um todo. Assim, com a aplica- ção dos conceitos teóricos de Lefevere, tais como os de refra-

ção reescritura, às diferentes realidades latino-americanas, poderemos obter um panorama mais detalhado das várias eta- pas de formação de nossas literaturas via tradução, bem como avaliar as conseqüências desses trânsitos culturais na constitui- ção de nossas culturas e sociedades atuais, regidas por relações de poder e hierarquias. Com isso, o papel social e cultural da tradução e dos tradutores já estará sendo resgatado, bem como nossa real identidade, pois, embora correntes recentes dos Es- tudos de Tradução apontem para a necessidade de valorizar- mos o papel do tradutor como agente cultural, propondo alter- nativas que vão desde a profissionalização de alto nível até a prática de traduções manifestas (overt translations), como de- fende Lawrence Venuti (1995), pouco se tem feito de efetivo no sentido de descrever qual é, de fato, a contribuição histórica dos tradutores e das traduções para nossos sistemas literários.
É em função dessa falta de estudos descritivos acerca de nosso (poli)sistema literário que se sabe tão pouco da situação atual do mercado tradutório e das dimensões que a tradução veio a tomar em nossa sociedade. O pouco conhecimento que se tem, a exemplo mesmo de nossos Estudos de Tradução, está divido em dois amplos campos de fronteiras tênues: tradu- ção técnica e tradução literária. Quanto à tradução técnica, tudo parece correr muito bem, não apenas no Brasil mas também em todos os países emergentes de regimes coloniais. Nesses tempos de pretensa globalização, as regiões em que se verifica o franco crescimento da atividade industrial e do comércio inter- nacional atraem tradutores que, incapazes de atender à exces- siva demanda, se aliam a colegas e/ou a supercomputadores, formando verdadeiras empresas de tradução que movimentam um mercado já gigantesco, mas, ainda assim, ascendente. Atrás desse filão, incontáveis cursos propõem-se a formar tradutores em tempo recorde, e daí o interesse em receitas de bem tradu- zir ser maior do que por questões filosóficas que, ao final, con- cluem sempre ser a tradução uma tarefa incompleta por defini- ção, algo um tanto desencorajador, sem dúvida.
Em relação ao mercado e verdadeiro papel social da tra- dução literária, no entanto, tudo são especulações. Sabe-se, por exemplo, que alguns dos mais conceituados tradutores de obras literárias de “peso” são também escritores consa- grados, como o próprio Haroldo de Campos, o que alimenta

a tão repetida e controversa máxima de que “é preciso ser poeta para traduzir poesia”, outra notícia desalentadora para estudantes e futuros profissionais. Sabe-se, também, que a tradução sistemática e profissional de literatura, em nosso país, não é tão antiga quanto a importação de obras estran- geiras já que, ainda no século passado, a leitura de originais em língua estrangeira ou mesmo de traduções para as línguas de prestígio (especialmente o francês) era uma forma de status. Hoje, por outro lado, temos acesso às literaturas de inúme- ros países, e mesmo o fenômeno Amazon.com e seus pares não parecem ter sido suficientes para manter o interesse do público pelo esforço intelectual da leitura em outras línguas.
Mesmo sem as estatísticas, portanto, podemos facilmente observar que a tradução literária teve, em apenas um século, um crescimento avassalador, bem como nosso país e nossa imagem no exterior. Por que a crítica e teoria literárias corren- tes não atentam, então, para a obviedade de que esses fatos não ocorreram simultaneamente por mera coincidência? Tra- duzir não apenas literatura, mas consumir todas as manifesta- ções das culturas e ideologias dominantes e de prestígio, das artes plásticas ao cinema, foi o meio encontrado (ou imposto) para garantirmos nosso ingresso efetivo na cultura ocidental. Como ignorar, portanto, que a tradução é, antes de tudo, um fator constituinte de nossa cultura e de nossa sociedade? Como falar em identidade cultural sem levá-la em consideração? Por fim, como pensar em transculturação, hibridez e sincretismo sem partir da premissa básica de que qualquer trânsito entre culturas se dá por meio de um processo tradutório, não neces- sariamente via tradução interlingual, mas sempre por meio de um movimento de busca de referenciais próprios para a com- preensão de novas formas significantes.
Para nós brasileiros e latino-americanos como um todo, portanto, teorizar acerca das relações estabelecidas pela tradu- ção em nossos polissistemas literários e culturais é condição sine qua non para se buscar entender os mecanismos pelos quais fomos colonizados, “alfabetizados”, e, mais recentemente, pós- colonizados, já que muitos dos questionamentos e inquietações acerca de nossa condição atual ainda nos são trazidos de fora de nossas fronteiras geográficas e lingüísticas. Entretanto, haverá aquele pesquisador que, procurando debruçar-se sobre socieda-

des de origens pré-colombianas que ainda persistem e mantêm vivas suas culturas e tradições na América Latina, refutará tais colocações, alegando, provavelmente, que, sobre essas comuni- dades, o impacto da colonização foi menos avassalador e que, na medida em que conservam suas línguas ancestrais, os Estu- dos de Tradução pouco têm a lhes oferecer. A esse pesquisador, no entanto, poderíamos contra-argumentar que, ainda que ele desenvolva toda sua pesquisa na língua da comunidade em estu- do, seu olhar já não é autóctone, pois a própria necessidade de pesquisar, catalogar e sistematizar nossos modos de vida e cultu- ras foi-nos trazida de fora, via tradução. Assim, nem mesmo a busca de nossos antepassados locais, nem mesmo o estudo das condições de vida na América Latina antes do contato (oficial) com os europeus foge ao escopo dos Estudos de Tradução, pois a própria tentativa de compreensão de outras realidades por meio de nossa língua e de nossa concepção de mundo (ambas impor- tadas) é um processo tradutório por excelência que em nada difere das leituras estrangeiras de nossa realidade. Aliás, essa con- tradição de seguir os modelos que se quer substituir é bastante recorrente na história do pensamento latino-americano, como examina Eduardo Coutinho:

(…) as literaturas dos diversos países latino-americanos revelam, ao longo de toda a sua formação, grande preo- cupação com a busca da própria identidade, com a confi- guração de seu verdadeiro perfil. Entretanto, esta preo- cupação (…) sempre se instituiu, até inícios do século XX, como termo de oposição a uma mentalidade dominante, formando paradoxalmente com esta uma díade, represen- tada como a seguir: de um lado, todo um conjunto de obras marcado pelo mero anseio de transplante e adapta- ção dos valores culturais do colonizador às condições de vida do novo mundo, e de outro, uma linhagem localista, de cunho eminentemente antitético, e caracterizada pela tentativa de afirmação nacional. (…) Contudo, é preciso reconhecer que, ao instituir-se como elemento de oposi- ção, tal processo encerra em si mesmo uma contradição, que funciona como atenuante de sua própria premissa básica, pois serve-se como referencial do modelo euro- peu, alienígena, configurando-se a partir de dados dife- renciais, que nada são do que a outra face de uma mesma moeda. (COUTINHO, 1986, p. 15)

Tomando o caso do Indianismo romântico, o pesquisador fluminense vai mais além na exploração dessa contradição históri- ca em que a crítica, a teoria e até mesmo a criação literárias latino- americanas incorreram por muito tempo e que, aparentemente, continuarão a incorrer sistematicamente enquanto recusarem-se a assumir, sem culpas ou preconceitos, o inegável fato de sermos uma adaptação, talvez ainda inconclusa, do pensamento e modo de vida europeus aos trópicos. Negar o papel determinante da tradução, em sua mais abrangente concepção, em todas as fases de nosso desenvolvimento cultural é fingir que surgimos como uma “combustão espontânea”, e é somente ao aproximarmo-nos dos poucos sobreviventes das sociedades autóctones da América Latina que percebemos que já não nos identificamos com eles, que somos “estranhos em uma terra estranha”.
Ao final, talvez sejamos todos como o povo mexicano, retratado de forma poética e perspicaz por Octavio Paz em O Labirinto da Solidão: um povo que, em não querendo ser espanhol nem índio, vive o eterno dilema de “la Malinche”, considerando-se uma raça de traidores, de entreguistas, e ensimesmando-se em sua orfandade perene. Quando enten- dermos e aceitarmos a tradução como natural e inevitável em um mundo plurilingual e pluricultural, talvez consigamos, então, compreender que nossa condição de culturas trans- plantadas não implica dívida nem resignação, mas a verdadei- ra sabedoria de “dançar conforme a música”.
Independentemente de nossos desejos e crenças, por- tanto, não somos uma cultura “pura”, mesmo porque esse ideal um tanto nazista não será jamais alcançado, pois, no momento em que uma cultura se isola e deixa de dialogar com outras com que coexiste, ela invariavelmente morre. Assim, devemos encarar, de uma vez por todas, que qualquer questionamento acerca da formação e constituição de nos- sas literaturas, culturas e sociedades tem em suas bases, ex- plícita ou implicitamente, o processo tradutório.
Pode-se concluir, portanto, que ainda que a busca por uma identidade cultural comum a todos os brasileiros ou mesmo a to- dos os latino-americanos já não seja um objetivo tão arduamente perseguido por calcar-se na falaciosa noção de unidade, é fato que ainda desejamos saber quem somos e o que fazemos dentro deste mundo pós-colonial. Uma vez que a dicotomia política me-

trópole-colônia parece ter dado lugar a outra de bases eminente- mente econômicas, é preciso identificar os agentes e seus papéis nesta nova ordem. Assim, o ideal da globalização, certamente não unânime, não deve acarretar o apagamento das individualidades e das idiossincrasias de cada nação. Há que se manter as fronteiras até para que tenhamos o prazer de cruzá-las.
É nesse cenário, portanto, que advogamos o emprego dos Estudos de Tradução como ferramenta na busca por uma (ou mesmo várias) identidade cultural latino-americana. Uma ferramenta que, somada, aos esforços de Ana Pizarro, Ángel Rama e Antonio Candido, entre outros, procurará desvendar nossas semelhanças, e, acima de tudo, nossas diferenças.

INDRUSIAK, E.B. The role of Translation Studies in the search for Latin-American cultural identity. Revista de Letras, São Pau- lo, v. 45, n. 2, p. 121 - 134, 2005

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ABSTRACT: The present paper addresses the collaborative role of Translation Studies in the search for a Brazilian and Latin- American cultural identity and analyzes to what extent such a collaboration can be felt in our academy. Our analysis stems from a variety of readings, some of them even apparently contradictory, and concludes that although the Brazilian Literary Studies and Translation Studies share many themes, they have kept a somewhat unfulfilling dialogue with regard to the issue of our cultural identity, as there seems to be none of the steady or deep interchange between the disciplines that one might expect. Therefore, this paper proposes an overview of such studies and, despite its superficiality, stresses the points of contact and the real prospects of research yet to be explored. Consequently, we reassess the role of Translation Studies as a basic tool in the search for an alleged Latin-American cultural identity, which will certainly be neither uniform nor definitive, but as provisional and partial as any translation.

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KEYWORDS: Comparative Literature; Identity; Latin-America; translation.

Referências:


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