sábado, 27 de dezembro de 2014

DUAS LANÇAS - 100 ANOS DE CAVALHADA EM CHÃ PRETA - *Olegário Venceslau da Silva



DUAS LANÇAS - 100 ANOS DE CAVALHADA EM CHÃ PRETA

*Olegário Venceslau da Silva



A quem, senão a Vós, Senhor, ei de dedicar uma obra, que só em vosso louvor foi feita? Pelejou Carlos Magno, e seus cavaleiros contra os infiéis só por aumentar a Vossa lei Santíssima e restaurar as vossas sacrossantas relíquias [...] É certo senhor, que o valor vós lhe destes, porque sem ele não podia tão pequeno braço vencer quase todo o poder do mundo.” Numa lídima demonstração de coragem e fé, marcada por percalços e não menos glórias, o império carolíngio sob a égide singular de um soberano destemido se impõe as demais civilizações ostentando seu pavilhão com a marca do Cristo – diga-se igreja Católica – nas áridas e longínquas terras pagãs do velho mundo. Sangrentas e ferrenhas batalhas eram travadas nos campos do Sacro Império Romano Germânico do século IX d.C. colocando em trincheiras opostas Cavaleiros cristãos e turcos otomanos, comumente conhecidos como Mouros que se opunham ao domínio espanhol e a tomada da Terra Santa em Jerusalém. A narrativa mais que eloquente do médico e físico –mor lusitano Jeronimo Moreira de Carvalho sintetiza num misto de confissão e emocionado agradecimento ao Criador, quando da tradução da obra Carlos Magno e os doze pares de França (1863) do castelhano para o vernáculo de Luiz Vaz de Camões (português) o poder do Imperador Carlos Magno na conversão dos povos orientais ao cristianismo, com irrestrita anuência eclesial e a bênção dispensada pelo então Sumo Pontífice para esta finalidade.


Os louros das vitórias alcançadas pelo imperador romano o tornou legitimo representante da Religião-Estado em cada plaga por ele conquistada, juntamente com o incontável número de soldados que compunham o que viria a ser um dos maiores exércitos até então existente. Por décadas seguidas as diversas civilizações erigidas e governadas por Carlos Magno vivenciaram o apogeu econômico e forte influência católica medieval, sendo esta última portanto a grande e quiçá única responsável pelo fortalecimento senhorial e bélico do império ocidental. O crescente número dos chamados infiéis que povoavam o oriente e parte da Europa nos primeiros séculos causaram temores dentro da Sé Romana que amiúde perdia seu reinado temporal-espiritual sobre os povos. E foi nesta cruzada prosélita que Carlos Magno se configurou como o maior defensor da fé cristã entre os povos. Seu desassombro e intrépida coragem foram narrados nos antigos escritos de escribas e poetas que com suas penas fulgurantes perenizaram no papel os causos e feitos de um homem que movido pela paixão e beligerância ousou enfrentar reinos poderosos em nome de uma causa.


A memorável batalha entre mouros e cristãos tornou-se uma verdadeira epopeia, dramatizada séculos depois no torneio denominado Cavalhada. Numa alusão fidedigna aos afamados pares de França – cavaleiros que lutaram ao lado do Imperador romano – tal episódio medievo transubstanciou-se na manifestação folclórica portuguesa e posteriormente latino-americana mais conhecida de e propagada pelos amantes deste torneio e não menos pesquisadores do assunto. O cortejo de cavalos sempre em marcha ascendente cujas parelhas exibem as cores de seus partidos – azul e encarnado – na escaramuça de cavaleiros que encenam o auto heroico vivido há mais de mil anos. Com a chegada dos colonizadores portugueses ao Brasil no século XV, com eles aportaram a tradição europeia das cavalhadas. De um lado os cavaleiros com elegantes e pomposos trajes na cor azul, representando os povos cristãos, no lado oposto os mouros – povo pagão turco, com vestuário não menos elegante fazendo irradiar o encarnado. Reza a história que tais cavaleiros eram conhecidos como os Doze pares de França, destemidos e afamados guerreiros. Devido sua lealdade e coragem foram sagrados como: Ricarte de Normandia, Urgel de Danôa, Guarim de Lorena, Guy de Borgonha, Hoel de Nantes, Oliveiros, Gaadeboa da Frigia, Nemê da Baviera, Jofre de Bordeos, Geraldo de Montifér, Roldão. 


Tal manifestação cultural teve seu lugar em terras da Chã Preta, no ano de 1915. Por iniciativa do então folclorista viçosense e senhor do engenho Ingazeira Joaquim Estevão dos Passos Vilela, que a convite do seu primo Coronel Pedro Teixeira de Vasconcelos veio ensaiar e orientar os filhos deste, à tornarem-se cavaleiros, no antigo engenho Bom Sucesso. Correram a cavalhada daquela época: Coronel José Teixeira de Vasconcelos, Dr. Francisco Teixeira, Aureliano Teixeira, Júlio Teixeira, Izidro Teixeira, Antônio Teixeira de Vasconcelos, Cosme Canuto de Souza , Antônio Canuto, Apolinário Teixeira, José Firmino Teixeira de Vasconcelos, José Gomes, Manoel Roberto Brandão, Sergio Fernandes de Aguiar, Simplício Olavo da Silveira, Pedro Torquato Brandão.


Na passagem do primeiro centenário, a cavalhada da Chã Preta mantém viva a tradição herdada de seus antigos cavaleiros e matinadores. Montados em seus cavalos, com o punhal atado à sua cintura e uma faixa recaída por sobre o ombro na cor azul ou encarnada, passam em desfile numa demonstração de apanágio e ostentação pelas velhas ruas rumo à matriz de Nossa Senhora da Conceição, para prestarem reverencias a mãe de Deus e dos homens. Toda essa encenação tendo à frente a banda de pífano, que ao som da zabumba e da flauta do mestre conduz o tropel e ao barulho dos foguetórios anuncia o majestoso cortejo dos doze pares de França em terra alagoana.






Merece registro a velha guarda que por anos à fio, não deixou desaparecer esta tradição de nossa terra, cavaleiros da estirpe de Agripino Albuquerque, Mauro Teixeira de Vasconcelos, Tilgathpilnezer Fernandes Lima, Firmino Teixeira Neto, Benedito Soares de Vasconcelos, Cantidiano Passos, Oséias Teixeira, José Ponciano Silveira, José Souza, Valdemar Holanda, Onildo Teixeira de Vasconcelos, Perciliano, Jorge Rebelo de Vasconcelos, José Maria Teixeira, Cantidiano Teixeira Pimentel. Nos dias atuais tal encenação tem a garantia de sua perenidade pela ousadia de alguns poucos, que lutam para não ver perecer o bem maior da cultura chãpretense – Áureo Mazony Teixeira de Vasconcelos, Celso Rebelo, Davi Carnaúba dentre outros.






Sob o chão de terra empoeirada o espetáculo medieval segue, sendo percebido pelo eco dos guizos atados aos peitorais dos cavalos e dos mais vibrantes e sonoros aplausos quando de cada argola retirada do alto do poste. Os retalhos de panos multicoloridos adornam as cinturas dos cavaleiros e a lança que em riste percorre seu alvo, demostram portanto que o lendário Imperador Carlos Magno e seus cavaleiros ainda vivem em cada apresentação da Cavalhada como sinônimo de força, fé e devoção sob o orago perpétuo de Nossa Senhora da Conceição, Santa Luzia e São Sebastião [a primeira Excelsa Padroeira de Chã Preta e os dois últimos co- padroeiros].











*Escritor, membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste; membro da Academia Alagoana de Cultura; membro da Comissão Alagoana de Folclore e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
















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