terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O enigma de Pedra Furada. Entrevista com a arqueóloga Niède Guidon


O enigma de Pedra Furada. Entrevista com a arqueóloga Niède Guidon

 


A teoria científica aceita inicialmente para explicar a chegada do homem a América se baseia na ideia de que grupos de Homo Sapiens entraram no Novo Mundo atravessando as terras de Beríngia, num período compreendido entre 14 e 10 mil anos atrás.
O que hoje é o estreito de Bering, entre Ásia e América do Norte, foi num tempo uma planície nevada, justamente porque o nível das marés era mais baixo do que o atual, devido à glaciação em curso.
Aqueles grupos de Sapiens, quiçá perseguindo manadas de animais ou buscando novas terras, atravessaram Beríngia e entraram, deste modo, no Novo Mundo. Alguns deles passaram pelo chamado “corredor livre de gelo”, outros marcharam ao largo da costa da América do Norte ou navegaram pelo litoral com embarcações rudimentares.
Essa teoria tem sido apoiada pelo estudo de 1932 do sítio arqueológico de Clovis, no Novo México, cujos restos humanos têm 13.500 anos de antiguidade. Os estudos genéticos das populações nativas americanas confirmaram a origem asiática da maioria dos povos do Novo Mundo, mas não de todos.
Com efeito, nos últimos anos se encontraram, sobretudo na América do Sul, sítios arqueológicos antiquíssimos, o que se leva a considerar outras teorias que expliquem a chegada do homem a América.
Se o fluxo de Homo Sapiens entrou pelo norte no Novo Mundo, por que as zonas arqueológicas mais antigas se encontraram no sul?
É possível elaborar a hipótese de que os grupos de Sapiens, ao começarem sua expansão pelo planeta, faz uns 130 milênios, dirigiram-se, além de Ásia e de Europa, diretamente a América do Sul, navegando através do Oceano Atlântico?
Com efeito, os achados em Pedra Museu (em Santa Cruz, Argentina, de 13 milênios de antiguidade), em Monte Verde (no Chile, de 33 milênios) e sobretudo, em Pedra Furada (Piauí, Brasil, de 60 milênios), fazem pensar em outras teorias para explicar a origem da população da América.
Em minha recente viagem ao Brasil, tive a oportunidade de visitar o parque nacional Serra de Capivara, no estado do Piauí, onde está situado o sítio arqueológico de Pedra Furada.
É uma zona árida, chamada Sertão, cuja vegetação é a Caatinga, nome dado a um particular tipo de flora adaptada a viver em ambientes secos. Nesta área viviam há 12 milênios vários animais pertencentes à chamada “megafauna”.
Entre esses animais estava o toxodonte (um hipopótamo enorme), o eremotherium (um bicho-preguiça gigante), o gliptodonte (um parente do tatu que pesava 1,4 toneladas), o tigre dentes de sabre, o leão americano, a macrauchenia (um grande camelídeo com tromba), um antepassado do cavalo (Hippidion bonaerensis), o mastodonte e uma espécie de lhama maior que a atual (Palaeolama major).
Todos esses animais se extinguiram, por motivos ainda desconhecidos, faz uns 12 milênios.
Alguns estudiosos têm pensado que se extinguiram depois da glaciação e da conseguinte mudança climática global, mas outros investigadores creem que seus desaparecimentos foram causados pelo homem. Com efeito, naquele período, a população humana da América aumentou, provavelmente depois da chegada dos Sapiens de origem asiática.
No entanto, na América do Sul e em particular no Brasil, exatamente na Serra da Capivara, encontraram-se evidências de uma ocupação humana mais antiga, de aproximadamente 60 milênios.
Quem eram os homens que viviam nas cavernas do Piauí? De onde vinham?
O parque nacional Serra da Capivara está situado não distante do povoado de São Raimundo Nonato, onde está o “museu do homem americano”, administrado pela arqueóloga Niède Guidon.
Os estudos na zona se iniciaram nos anos 70 do século passado e posteriormente, em 1991, o parque foi declarado patrimônio da humanidade pela Unesco. Dentro do parque, há centenas de sítios arqueológicos, onde se há encontrado esqueletos humanos, restos de fogueiras, cerâmicas, muitíssimos instrumentos de pedra e centenas de pinturas rupestres e de petróglifos que representam animais, corpos celestes e seres humanos (cenas de guerra, caça, sexo etc.).
A continuação, o texto integral da entrevista feita com a arqueóloga Niède Guidon.

Yuri Leveratto: Doutora, qual é a maior antiguidade dos restos ósseos humanos encontrados na região?

Niède Guidon: 12.000 anos. A datação se obteve com o método do Carbono 14.

Yuri Leveratto: Entretanto, em seu museu se fala de datas mais antigas, de até 60.000 anos. Como chegaram a tais resultados?

Niède Guidon: Na zona do parque encontramos vários restos de fogueiras que remontam a 60.000 anos atrás. Os restos carbonizados da lenha foram analisados com a prova do carbono 14 em alguns laboratórios de Texas (U.S.A.). Outras análises que se fizeram utilizando o método da termoluminiscência provaram que tem havido assentamento humano neste lugar desde há 100 milênios.

Yuri Leveratto: Segundo você, como é possível que não se tenham encontrado restos ósseos humanos com antiguidade maior a doze mil anos?

Niède Guidon: Nessa zona o solo é ácido e por desgraça, não permite a preservação dos restos ósseos mais antigos.

Yuri Leveratto: Li que alguns arqueólogos estadunidenses sustentam a falsidade de seus descobrimentos. Em particular, alguns estudiosos creem que as fogueiras que datam de 60.000 anos foram naturais, isto é, ocasionadas por raios, o que você pensa disso?

Niède Guidon: As fogueiras foram estudadas por vários arqueólogos e todos confirmaram que se tratava de fogos causados e controlados pelo homem, porque estavam situados em zonas pequenas e delimitadas. Ao redor desses fogos se encontrou material lítico, ou ainda pedras trabalhadas pelo homem.

Yuri Leveratto: Segundo você, quem eram os antigos habitantes da zona? E sobretudo, de onde vinham?
 
Niède Guidon: Eram homens Sapiens arcaicos e vinham diretamente da África. Não se trata de descartar a teoria da migração humana através de Beríngia de uns 14.000 anos atrás, senão de complementá-la com outras teorias. É impensável que o continente americano, com uma extensão de milhares de quilômetros de norte a sul, tenha sido colonizado só pelo norte.
Em minha opinião, o Homo Sapiens saiu da África faz 130 milênios. Como se sabe, o continente antigo já havia sido colonizado pelo Homo Erectus, mas o Sapiens o suplantou e se dispersou por todo o planeta (exceto pela Antárdida).
Alguns deles se dirigiram em direção a Ásia e Europa, enquanto outros, provavelmente pescadores, foram arrastados pelas correntes e chegaram a América do Sul, empurrados pelos ventos alísios.

Yuri Leveratto: Está sua tese apoiada nos estudos de Antropologia somática ou morfológica?

Niède Guidon: Sim. Efetivamente, os pesquisadores Walter Neves e Danilo Bernardo da Universidade de São Paulo (Departamento de Genética e Biologia Evolutiva), efetuaram análises morfológicas dos crânios encontrados na zona da Serra da Capivara e chegaram à conclusão de que pertenciam ao tipo humano australóide-negróide e não ao tipo humano asiático. Na prática, tratava-se de Sapiens arcaicos, cujas características somáticas não estavam ainda de todo especializadas.

Yuri Leveratto: Segundo você, quantos eram estes primeiros americanos? Como viviam? Podiam caçar animais da megafauna?

Niède Guidon: Em minha opinião, o número de Sapiens de origem africana era muito baixo, não superava os dez mil homens. Não podiam caçar animais da megafauna, senão que se limitavam a matar os mais velhos e os que
estivessem em apuros. Caçavam pequenos animais e viviam da colheita.

Yuri Leveratto: O que sucedeu quando a América foi invadida pelos Sapiens provenientes da Ásia? Encontraram-se os dois grupos?

Niède Guidon: Sim, é provável que se encontraram e se mesclaram. Os Sapiens provenientes da África já haviam se espalhado por todo o continente e possivelmente também pela América Central e do Norte.

Yuri Leveratto: Agradeço-lhe infinitamente por seus estudos e suas pesquisas. Você divulgou uma teoria revolucionária, que tem as datações como fundamento científico. Seus descobrimentos constituem uma das chaves importantes para compreender a verdadeira história da origem da chegada do homem a América.

Niède Guidon: Obrigada a você, até logo.
YURI LEVERATTO
Copyright 2009
Artigo traduzido por Victor Kawakami


Yuri Leveratto personal web site
http://yurileveratto.com/po/index.php






Niède Guidon (Jaú, 12 de Março de 1933), é uma arqueóloga brasileira descendente de francese.

Biografia

Formada em História Natural pela USP, trabalhou no Museu Paulista, quando tomou conhecimento do sítio arqueológico de São Raimundo Nonato no Piauí, no ano de 1963.
Especializou-se em arqueologia pré-histórica, pela Sorbonne, e especialização pela Universidade de Paris I.
Desde 1973 integra a Missão Arqueológica Franco-Brasileira, concentrando no Piauí seus trabalhos, que culminaram na criação, ali, do Parque Nacional Serra da Capivara. Atualmente é Diretora Presidente da Fundação Museu do Homem Americano.

Ideologia

Os achados arqueológicos de Guidon1 levam a crer que o povoamento do continente americano se deu muito antes do que se acredita de ordinário. Enquanto a teoria mais comumente aceita do povoamento das Américas postula que os primeiros humanos chegaram no continente há 15.000 anos, alguns dos sítios arqueológicos de Guidon contém artefatos que datam de 45.000 anos atrás. O problema de sua hipotése é que o que é tido por Guidon e sua equipe como sendo "artefatos" é tido por outros como sendo "geofatos" - os primeiros sendo produtos do trabalho humano e os últimos sendo produtos da ação de forças naturais. Antropólogos estadunidenses - entre os quais estão os mais ferrenhos críticos das teorias de Guidon - se encontram em ambos os lados da questão: alguns aceitam as evidências arqueológicas sem contestá-las; outros pensam que elas não são sólidas o suficiente para derrubar as antigas hipotéses. Enquanto isso, os achados se acumulam.
Com uma grande equipe trabalhando para si e com inúmeros projetos em andamento, Guidon espera reescrever a versão corrente da história demográfica do homem. Embora sua teoria tenha lacunas, o acúmulo de evidências arqueológicas fortalece cada vez mais suas hipóteses.

Premiações nacionais

  • Em 1997 foi uma das finalistas do prêmio Mulher do Ano da Revista Cláudia, da editora Abril;
  • Em 2005, no dia 2 de março, ganhou o Prêmio Faz Diferença, entregue pelo jornal O Globo;
  • Em 2010, no dia 8 de março, ganhou o Prêmio Tejucupapo da Revista Nordeste VinteUM;

Premiações internacionais

  • Em dezembro de 2010, recebeu a medalha comemorativa pelo aniversário dos 60 anos da UNESCO concedida em Joanesburgo, África do Sul (Esta comenda só é entregue às pessoas que tem relevantes trabalhos prestados na área da pesquisa, divulgação e preservação dos patrimônios culturais da humanidade);
  • Em dezembro de 2010, recebeu pela Fundham, para o Parque Nacional da Capivara, a medalha de ouro pelo primeiro lugar na premiação para a Cultura do Herity Italia (Organizzazione per la Gestione di Qualità del Patrimonio Culturale - Commissione Nazionale Italiana).

Referências

  1. Descobertas de brasileira mudaram a história da ocupação das Américas G1. Visitado em 3 de fevereiro de 2013.

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