Discriminação e preconceito em migração qualificada para o Brasil: restrições relatadas por estudantes na Universidade de São Paulo
Discriminación y preconcepto em la migración calificada para Brasil: restricciones relatadas por Estudiantes em la Universidad de São Paulo
-RESUMO:
Cynthia Soares Carneiro1
O artigo analisa resultado de pesquisa com intercambistas no campus da USP em Ribeirão Preto. Discorre sobre suas dificuldades de acesso a direitos e à integração à vida universitária. As conclusões são baseadas em seis depo imentosfornecidos por estudantes de Angola, Egito, Jamaica e Peru, que frequentaram os cursosde Medic ina, Odon tolog c ar--maEt-a .minis tração e Direito. A exposição teórico-descritiva foi suscitadapara compreens pisódios narrados em sua história de vida. A invest igação permitiu
1 enfi-ffcâf"éiiscrim inação nos serviçosconsulares e na Políc ia Federal, além de racismo e violência em abordagensfeitas pela Polícia Mili tar no interior no campus universitário.Os relatos ainda permitiram inferir que o padrão econômico dos estudantes universitários brasileiros e o racismo t ornam o Brasil um lugar pouco at raent e para im igrant es que buscam qual ificaçõesacadêmicase profissionais.
Palavras-chave: migração qualif icada; estudant es; migração Sul-Sul; discr iminação; racismo
RESUMEN :
Este artículo analiza el resultado de una investigación con estudiantes de intercambio en el campus de la USP (Universidad de São Paulo) en Ribei rão Pret o. Investigamos las dificultades de acceso a derechos y de in tegración a la sociedad brasilena y a la vida universitaria. Las conclusiones se basan en seis testi monios proporcionados por estudiantesde Ango la, Egipto, Jamaica y Perú, quienes asistieron a los cu rsosde Medicina, Odontología, Farmacia, Adm inis t ración y Derecho. La exposición teórico -descript iva fue recopilada por su historia de vida. La investigación nos ha permitido identi ficar la discrim inación en los servicios consularesy en la Polida Federal, así como el racismo y la violencia en abordajes hechos por la Polid a Militar dent ro dei campus universitario. Los testimoniostambién han permitido deducir que el alto n ível económico de los estudiantes universitariosbrasilenosy el racismohacen que Brasilsea un luga r muy poco atractivo para los inmig rantesque buscan calificaciones académicas y profesionales.
Palabras clave : m igración cualificada; estudiantes; migración Sur-Sur; discriminación; racismo
1 Professorade Direito Internacional no curso de graduação e mestrado da Faculdade e Direito de Ribeirão Preto (FDRP/USP), ond e coordena o grupo de p esquisa e extensão universitária GEMTI (Grup o de Estu dos Migratórios e de Apoio ao Trabalhador Imigrante).
INTRODUÇÃO
A cidade de Rib eirão Preto, localizada no interio r do estado de São Paulo, é conhecida como importante centro agroindustrial e universitário.Destaca-se pela cultura da cana-de açúcar e produçãode álcool combustível destinado ao mercado interno brasileiro. Do final do século XIX até a década de1920,a regiãoconstituiu-seem um dos pri ncipais destinos de imigrantesi talianose japoneses, contratados para trabalha r na lavourade café. Na últ ima década, a cidade voltou a recebertrabalhadoresimigrantes e tem, igualmente,aumentado o número de estudantes internacionaisque, nos últimos anos, buscam qualificação em universidadesbrasileiras.
O número de intercambistasno campus da USP em Rib eirão Preto tem aumen tado em razão do credenciamento da un iversidade, no ano de 2011, ao Prog rama Estudante Convên io de Graduação e Pós-Graduação (PEC-Ge PEC-PG), do governo federal, pois passou a receber alunos provenientes da América Latina, Car ib e e África, estimulando a m igração Sul-Sul. O Acordo de Residência do Mercosul também promove a circulação de alunos dos Estadosbeneficiários. Atualmente,eles compõem a maioria dos estrangeiros no campus de Rib eirãoPreto•2
A p esquisa demonstrou que, apesar da condição de " imig rantes qualificados", os estudantes provenientes do sul hemisférico estão sujeitosàs discriminações historicamente impostas pelasleis m igrató riasbrasileiras e pelas práticasdos serviçosde imigração. É o que demonstram os relatosde experiênciasjunto a Consulados e Polícia Federal brasileira. Evidenciou, igualmente, que os estudantes sofrem com o racismo estrutural b rasileiro, fruto de quat rocentos anos de escravidão e da significativa participação do Brasil na formação do conceito moderno de negritude e african idade(Mbembe, 2014)3,fundamental
à consolidação do sistema-mundo capitalista(Braudel,1987; Balibar y Wallerstein, 1991).
A escolha dos alunos entrevistados foi baseada na técnica da " bo la de neve ": um estudante do projeto ou um aluno in tercambista ind icou alguém do seu círculo de amizades para relatar sua história. Apesar de termos cerca de 218 alunos estrangeiros no campus de Ribeirão Preto, em uma estimativa de 92 da Am érica do Sul e 24 da África, o desenvolvimento do trabalho foi inib ido em razãodas restriçõesformais, estabelecidas pela Resolução 466/2012 da Com issãoNacional de Ética em Pesquisa (CONEP)(Brasil, 2012), que impediam que o Conselho de Ética em Pesquisa (CEP)se p ronunciasse sobre sua aprovação.Comopercebemos que o desenvolvimentodo projeto implicavaem riscos aos participantes,a coleta de depoimentos foi interrompida.Tais restriçõessó viriam a ser corrigidas com a edição da Resolução 510/2016da CONEP, relativaàs Normas Aplicáveis a Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (Brasil, 2016), que adequou o protocolo a ser
seguido nas investigaçõesque contam com a participação de sereshumanos, até então reguladopor normasvoltadasà área de saúde, aos métodos empregadospor cient istas sociais,como é o caso deste trabalho, circunscrit o na esfera do Direito e da Antropo logi a
institucional.
PESQUISA QUALITATIVA COM SERES HUMANOS E O PAPEL DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA
No Brasil, as pesquisas que implicam riscos às pessoas devem ser insc ritas no sistema CEP-CONEP,vinculado ao Ministé rio da Saúde. O requ isito deve ser atendido, inclusive,
2Osdadosapresentados pela Seção Téc nica de Apoio ao Vis ita nte Estrangeiro do campus são relativosao número de atendimentos. No e ntanto,os números coincidem com o número de estudantes nocampus, pois ali compa recem a cada ano para agendame nto, junto a Polícia Federal, da renovação da autoriza ção de per manênc ia. Em 201S, ano da pesquisa , eram 218. Em relação àorigem, 42% eram de Esta dos da América do S ul, 27% da Europa, 11% da África, 9% da Asia; 6% da América do Norte e 5% da Amér ica Central.(US P,2015, 2016).
Segundo Mbembe, "a razão negra designa tanto um conj unto de d iscursos como de práticas - um trabalho quotidia no que cons ist iu em inventar, contar, repetir e por em circulação fór mulas textos, rituais, como o objetivode fazer acontece r o Negro e nquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem, passível,a tal respeito, de desqual ificação moral e de instr umentalização prática" (Mbe mbe, 2014, p. 58).
por pesquisadores que se util izam de metodo logiaspróprias às Ciências Sociais, cujas pesquisas importam em riscos substancialmente menores aos partic ipantes,em relação às pesquisas na área de saúde. Pelo regime da Resolução 466/ 2012, a única forma admitida para registrar a anuência do participante em colaborar com o projeto seria a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), red igido conforme os critériosali fixados (Brasil, 2012) garantindo o absoluto sigilo emrelação à identidadedos participantes para protegê-los de riscosinerentesao projeto. O banco de dados com os depoimentos,já em processo de formação quando da problematizaçãoda pesquisa esua submissão ao sistema CEP-CONEP é formadapor gravação em vídeos dos depoimentos, momento em que os estudantesgravam sua conco rdânciaem participar, autorizam o uso das informaçõesprestadas e das imagens obtidas para fins acadêmicos.
A part ir dos relatos de experiências vividas no Brasil, especialmente no ambiente universitário, foi possível analisar o papel das instituiçõespúb licas brasileiras na recepção dos imigrantese identificar os obstáculos interpostos por consulados e pela Polícia Federal e Mil itar desde o pedido de admissão, a chegada do estudante ao Brasil e durante sua permanência para estudos. A pesquisa, portan to, propõe-sea ser tanto um instrumento
de diagnóstico de situações violadoras de direitos, como forma de intervençãovoltada à
defesa dos imigrantes.
Apesar de possibilitar a defesa de seus direitos,o que nos levou a presumir a inexistência de riscos significativos aos participantes, o desenvolvimento do projeto demonstrou sua pot encialidade em provocar danos, o que limi tou seu escopo inicial. Adema is, o consentimento formal foi conferido de forma diferente daquela estabelecidapela CONEP. Nesse sentido, a Resolução 510/ 2016, estabeleceu mudanças que possibilitaram a divulgaçãode seus resultados. O que veio em boa hora, pois cientistassociais brasileiros
evitavam submeter seus projetos à avaliação ética por conside rarem desproporcional o
rigor do CEP em relação às pesquisas baseadas em observaçãoparticipante ou realizadas por meio de relatos de hist ória de vida, em razão do baixo risco que oferecem aos participantes,principalmente quando seu objetivo relaciona-seà garantia de efetividade de direitosfundamentais e combate a discriminação e estigmatização. Consequentemente, os pesquisadores optavampor seguir, com a devida ponderação, o protocolo determinado
pelo CONEP, sem, contudo, submete r o projeto à Plataforma Brasil4, po is o procedimento
poderia embaraçar o desenvolvimento da pesquisa.
Apesar da Resolução510/ 2016prever"a garantia da confidencialidade das informações, da privacidadedos participantes e da proteção de sua identidade, inclus ive do uso de sua imagem e voz" (art. 3°, Vil), o que previne e minimiza possíveis riscos,passou a admitira possibilidade do participante manifestar sua anuência em participar da pesquisa por
outrasformas idôneas, além do TCLE e, inclusive, abrir mão do seu direito à p ri vacidade,
desde que se man ifeste de forma inequívoca nesse sentido (art. 17, IV) (BRASIL, 2016)5• Na sua vigência, optamos, então, por divulgar aspectos relevantes expostos nos depoimentos. Entretanto, optamospo r mante r a confidencialidade em relação ao nome e outros dados
que possam facil itar a identi ficação dos participantes,pois avaliamos que, de fato, há riscosque devem ser evitados. Mesmo assim, inferênciasrelativasà nacional idade, ao curso frequentado e ao gênero dos participantes,não excluem, de todo, a possibilidade
de serem identificados,e, sobre isso,foram alertados pelospesquisadores.
Após a análise circunstanciadado conteúdo das declarações p restadase ao observarmos a emoção que provocavam, constatamos, igualment e, que episódios narrados são suscetíveis de criar transtornos aos estudantes em razão de sua potencial gravidade,
especialmente quando implicam autoridades migratórias, detentoras de largo poder discricionário em relação à admissão e permanência de estrangeiros no Bra sil. Mesmo que todos os part icipantes gozem de situação regular no país e sejam detentores de qualificações especiais consideradasdesejáveis pelas normativas e programasestudantis
brasileiros, ainda assim estão sujeitos a um alto grau de vulnerabilidade, em razão de políticas invariavelmenterestri tivas em relação aos im igrantes,o que justifica adap tar o projeto inicial aos preceitos estabelecidospelo sistema CEP-CONEP.
A Plataforma Brasil é a base nacional e uni ficada de registrosde pesquisasenvolvendo seres humanos para todo o sistemaCEP/CONEP.Disponível em: <http: // plataformabras i l.saude.gov.br/l ogi n.jsf>. Acesso em: 13mar. 2018.
" Art . 17. O Registro de Consent imento Livre e Esclarec ido , em seus d i fer entes forma t os, deve r á conte r esclarecimentos sufic ientes sobre a pesquisa,incluindo: [...] a garantia de manutençãodo sigilo e da privacidade dosparticipantesda pesquisa,seja pessoa ou grupo de pessoas, durante todas as fases da pesquisa,excet o quando houver sua manifestação explícita em sentido contrário, mesmo após o térmi no da pesquisa" (BRASIL, 2016).
ACORDOS PARA RECEPÇÃO DE ESTUDANTES E RESTRIÇÕES AOS MIGRANTES SUL-SUL
Os estudantes que nos concederam seus depoimen tos são originá rios de "países de desenvolv imento insuficient e" ou "países em desenvolvimento", eufemismos que ident ificam Estados que se localizam na periferia ou sem iperife ria do Sistema-Mundo Moderno, na conceituaçãoque lhes confere lmmanuel Wallerstein em sua obra Modem World System {2011).
Com exceção de N.J, que custeou integ ralmente seus estudos no Brasil, mediante um planejamen to financeiro que envolveu três anos de trabalho extracurricu lar, feito à margem de suas obrigações acadêmicas na Faculdade de Medicinada Universidod Nocional de San Agustín, no Peru, os demais vieram em razãode prog ramasintergovernamentais ou med iante convênios inter institucionais firmados entre universidades,como é o caso de R.R.W.eS.A.N., que, como N.J,são originá riasdo Peru.
Os estudos de N.Jna Faculdadede Medicinade Ribeirão Preto só puderam ser viabilizados em razão do Acordo de Residência do MERCOSUL e após ter sido info rmado sobre seus requisitos pe lo Escritório de Apoio o Estudantes Estrangeiros do compus de Ribeirão Preto, pois, apesar de seus esforços, ao solicitar o visto de estudante junto aoConsulado brasileiro no Peru, esteve a ponto de desistir do intercâmbioem razão da cobrança de um seguro saúde em valoresincompatíveiscom suas economias,sem o qual, foi-lhe informado, não haveria a concessão do visto.N.J.relata o episódio:
Achei que as coisas fossem mais fáceis para um estudante, mas, àsvezes,complicam, e temos que fazer coisas muito chatas.Inclusive eu ti nha que pagar tipo mil, mil e quinhentosdólares, em dinheiro, para um seguro. Se eu não comprasse oseguro não medariam o vistode estudante. Quando eu meinteirei disso, queteria quepagar isso, aquilo, uma série de coisas, pensei: melhor não ir para o Brasil, porque não tenho o dinheiro. Eu não sou deuma situação social muito elevada.
A exigência e cobrançade um seguro-saúde é de todo desarrazoada, posto que o Brasil possu i um sistema universal de saúde disponíveltanto a brasileiros como a estrangeiros aqui residentes. Para o atendimento gratuito em qualquer posto de saúde, solicita se apenas a apresentação do Cadastro Nacional de Pessoas Físicas {CPF), documento prontamente obtido junto aos postos de atendimento da Receita Federal mediante a apresentação, pelo estudante intercambista, do p rotocolo de registro junto à Polícia Federal quando chega à universidade de destino.
A exigênciade pagamento do seguro-saúdena vultosaquant ia de USl.500,00, em dinheiro, possui caráter francamente restrit ivo e privilegia estudantes de alt o poder aquisitivo. Ademais,no caso relatado por N.J., ficou evidente que os serviços migratóriosbrasileiros não prestam informações devidas aos pretendentesde visto ao omi tir ou ao menos não esclarecer sobre os direitos dos beneficiários do Acordo de Residência ratificadopelo Brasil e Peru6•
Em termos jurídicos, o termo "visto Mercosul" é impróp rio, pois, na realidade,trata se de autorização de residência, outro insti tuto m igratório. A autorização de residência é concedida ao imigrante quando já se encontra no território nacional, dispensandoa solicitação do visto consular. É ju stamen te esta a diferença entre os dois tipos jurídicos:o visto deve ser obt ido, necessariamente, junto a uma representaçãodiplomática brasileira situada no Estado do p retendente ao ingresso,enquanto a autorização de residência é solicitadaem qualquer posto da Polícia Federal, na fronteira ou no interior do território naciona l. Apresentando os documentos exigidos, a autorização de residência é deferida independentementeda situaçãomigratória do requerente,se regular ou irr egular7•
OAcordosobreResidência para Nacionais dos Estados Partes doMercosul, Bolívia e Chile( Dec reto6975/ 2009) entrou em vigência regional no ano de 2009. A partir deentão,criou-seum espaço de livrecirculação para residência e trabalho aos origin ários dos Estados que o ratificaram,dispensando qualquer visto para ingressoem seu terri tório e admit indo a residência temporá ria, por até dois (2) anos, por requerimento direto junt o a qualquer posto da Polícia Federal, no caso do Brasil.
Para obter o direito de residência temporária é necessário que o requerente apresente documento de identificaçãocivil ou passaporte válido, prova da nacionalidade, feita pela certidão de nascimento ou por diploma de natural ização, certidão negativade antecedentes crim inais obt ida no seu país de origem ou procedência e no
Essas informações, entretanto, não foram prestadas a N.J. pelos funcionários consulares, em violação ao princípio da publicidade administrativa co nsag rado p elo art. 37 da Constitu ição Federal, ao qual estão vinculados todos serv ido res públ icos8• Além disso, ao condicionarem a emissão do visto de estudante ao pagamento de um montante que poderia ultrapassaro valor de R$4.000,00, a depende r do câmb io, restringem a entrada ao impor onerosidade excessiva ao sol icitan te, que tem garantido o seu dire ito de ir e vir entre as fronteiras dos dois países, mesmo quando pretende prolongar sua estadia por até dois anos, o que não era o caso de N.J. Difici lment e, pessoas sem inserção profissional específica conhecem as normativas mercosulin as. Tais inform ações deveriam, ob rigatoriamente, ser p restadas pe los serv iços mig ratór ios aos benefi ciários do Acordo do Mercosul. Nesse caso, foi o Escritório de Apoio ao Visitante Estrangeiro do campus de Rib eirão Preto quem escla receu a N.J. sob re seus direi tos de trânsito e permanência, orientando-o sobre os documentos que deveria apresentar por ocasião de sua chegada.
Sobre a falta de i nfo rm ação, publicidade e transparência nos atos e práticas administra tivas, N.J. relata out ro ep isódio, desta vez presenciado na fronteira, quando policiais federaisinte rp elaram, de forma intim idatória, três jovensde origemcolombiana, quando declararam que pretendiam viajar pelo Brasil durante os próximos três meses. Após essa info rm ação, os p oliciais passaram a exigira exibi ção de todo dinheiro que traziam consigo e, ao serem atendidos, alegaramque o m on tan te era insuficiente para o tu rismo prolongado. N.J relata que foram apreendidos CD-ROM com gravação de músicas que os jovens traziam consigo. É o seu relato:
Havia três rapazes que eram colombianos, (...) eles tentavam falar em espanhol com gestos eficaram um pouco nervosos. Não os trataram bem.Osdeixaram ali um tempo, o ônibus não saía e elesficaram ali esperando vários minutos e eles ficaram nervosos, assustados, porque pensavam que não os iam deixar passar. Penso que era porque eles estavam passando como turistas, mas como turistas eles queriam ficar mais de 30 dias. Os policiais diziam: "Mas por que vocêquer ficar 90 dias?", " Quanto dinheiro vocês têm?".
Como Colômb ia também é Estado-parte do Acordo de Residência, o que confe re aos colombianos inclusiveo direito aotrabalho, a abo rdagem policial foi abusiva e igualm ente incompat ível com o dever de inform ar devidamen te sobre as prerrogativas mercosulin as e a forma adequada de acessá-las. Nem sua entrada como turistas poderia ser obstaculizada, pois os beneficiários teriam três meses em situação administ rativa regular para solicitar os documentos e certidões criminais junto ao seu Estado de residência e a órgãos brasileiro s.
De S.A.N., também ouvimos queixas relat ivas à burocracia do Consulado brasileiro no Peru na obtenção do vist o de estudante, mencionando, inclusive, a exigência de contratação de seguro -saúde. Da mesma forma, não recebeu inform ações adequadas e submeteu-se à
exigência pagando pelo seguro. Uma vez no Brasil, necessitando de atendimento médico, a companh ia segurado ra negou, inicialmente, o pronto atendimento e a estudante precisou recorrer ao serviço público de saúde. A info rmação de N. suscitou o seguin te diálogo:
Quando você veio para o Brasil, foi urna exigência fazer o seguro?- Sim, éurna exigência para ganhar o visto. - E é muito caro? -Sim, é caro(...) Para mim saiu mais barato pelo fato de eu seruniversitária. -[A falta de] Esse seguro pode impossibilitar aviagem? - Sim, sim, eu tenho uma amiga que quasenão conseguiu viajar, ela não tinha dinheiro e teve que fazer um empréstimo porque não tinha dinheiro para vir.
Tanto S.A.N. como R.R.W., peruanas, vieram po r in termédio de acordos interinstituciona is específicos firmados entre suas universidades e a USP. S.A.N. cursou Adm inist ração na Pontifícia Universidad Católica dei Perú (PUC) e R.R.W., Direito, na Universidad Nacional de Tumbes. Esses convênios facilitam a obtenção da Carta de Aceite jun to à unive rsidade de dest in o, embora não garantam, como regra geral, a concessão do visto de estudante, prerrogativa discricionária do Estado. Para o ing resso no Brasil, não cogitaram, por desconhecimento, utilizar-sedo procedimento simplificado e menos oneroso estabelecido pelo Acord o de Residênc ia, que deveria, inclusive, dispensar a apresentação das certidões
Brasil, comprovante de residência e duas fotos 3x4.Munido dessesdocumentos,obtém permissãode ingressoe estadia no Brasil por até dois anos (BRASIL, 2009 ).
CONSTITUIÇÃO FEDERAL.Art.37.A administração pública direta e indi reta de qualquer dos Poderesda União,dos Estados,do Distr ito Federal e dos Municípiosobedecerá aosprincípiosde legalidade, impessoalid ade,moralidade, publicidade e eficiência.(BRASIL, 1988).
negativascriminais em face à declaração de aceite da universidade em receber o estudante. A falta de cumprimento das normas migratórias do sistema de integração regional sul americano, a desconsideração de seus fundamen tos e dos direit os constituc ionais assegurados pelas Con stitu ições dos Estados -part e, resulta em trâmites consulares burocráticos e one rosos, uma polít ica contrad itó ria aos benefícios que o intercâmbio universitário proporciona aos Estados,às universidadese às pessoas envolvidas.
Os estudan tes K. F., de Ango la, e O.M., da Jamaica, vieram através do Programa de Estudantes Convênio de Graduação (PEC-G), desenvo lvido pelo Ministé rio da Educação (MEC), em parceria com o Ministério das RelaçõesExteriores {MRE)9• Vieram para cursar, in tegralmente, sua graduaçãono Brasil. K.F concluiu seu cu rso na Faculdade de Direito (FDRP) e O.M., na Faculdade de Odontologia {FORP).
Desde a criaçãodo PEC, a USP mantém com o programa uma relação instávele restritiva.O primeiro convênio USPP/ EC-G foi em 1967.Posteriormente,credenciou-se em 1985e1989. A partir de 1995, a participação da universidade foi mais frequente, porém, igualmente descontínua. No ano de 2018, a USP não se credenc iou e, portanto, deixará de receber
estudantes do PEC1º.
Os exames de ingresso são realizados sob coordenação das missões dip lomáti cas brasileiras no país de origem do estudante. Após a aprovação em concurso de provas e títulos -os pretendentes devem apresen tar cert ifi cado de conclusão do ensino médio e de proficiência em língua portuguesa (CELPES-BRA) - é firmado um Termo de Responsabilidade Financeira, em que asseguram ter meios para custear as despesas com deslocamentos e subsistência no Brasil durante o período de duração do seu cu rso (art. 6°,111, Dec.7948/2013).Embo ra o governo brasileiro não financiea estadia e os estudos, o aluno PEC pode se candidatar a bolsasou ajudas de custo junto a instituiçõespúblicas ou privadas brasileiras,nas mesmas condições que os nacionais.
Independentemente do tempo de duraçãodo curso, o estudante necessita comparecer anualmente nos postos da Polícia Federal para solicitar a renovação do seu direito de residência e deve fazê-lo antes do vencimento do período consignadoem seu passaporte. Caso não cumpra o prazo, estará sujeito à mult a. Trata -se de atos de cont role que importam na presunção de culpabil idade do aluno estrangeiro e demandam burocracia desnecessária e onerosa aos beneficiários de programasgovernamentais regidos por princípios e regras especiaisde cooperaçãoacadêmicaentre os Estadosconveniados. Em relaçãoa isso,quando perguntado sobre a acolhida junto à Polícia Federal, O.M. rela ta:
A única coisa que não gosto no meio do processo, mas é completamente culpa minha, é a multa que, às vezes, eu tenho que pagar, porque se você deixa de se registrar ou renovar seu visto, depois da data,diariame nte, você tem que pagar a multa. Eu acho que a última vez que eu tive que pagar a multa deu cento e poucos reais, e foi um pouco caro, porque foi no final do semestre, eu estava esperando a volta pra casa, eu estava no zero, no vermelho.
A buro cracia dos serviços migratór ios é agravada por sua in justi ficável morosidade, considerando os recursostrazidospela informatização entre os órgãos do Ministé rio da Justiça responsáveispela regularizaçãoda estadia do imigrante.A demora constitui-seem fator de transtornospara os inte rcambistas e esse aspecto é frequentemente levantado pelos imigrantes.Foi, inclusive, um dos aspectos destacados du rante a realização da/ Conferência Nacional sobre Migração e Refúgio (COMIGRAR), desenvolvida entre outubro de 2013 e junho de 2014 nas pri ncipaiscidades brasileiras de destino migratório (BRASIL, 2014,
p. 5, p. 17). O problema é que, a cada ano, deve ser emitido um novo Registro Nacional de
Estrangeiro (RNE)11, um documento semelhante à Carteira de Iden tidade (Registro Geral, para nacionais).Em razão da demora a ser entregue, o im igranteporta apenas o protocolo do seu requerimento,emitido em¼ de folha de papel A4. Por não guardar semelhança com
O PEC-G é regido pelo Decreto Presidencial n. 7.948/ 2013(BRASIL, 20 13). Apág ina do programa abrigada pelosite do Ministério dasRelações Exteriores (MRE) do Brasil informa que a África é o continente de origem da maior parte dosestudantes, com destaque para Cabo Verde,Guiné-Bissau e Angola. Na América Latina, a maior part icipação é de paraguaios, equatorianos e peruanos;e na Ásia,o Timor Leste. Oscursos com o maior número devagasoferecidas são Letras,Comunicação Social, Administração, CiênciasBioló gicase Pedagogia.Disponívelem: <http:// www.dce. mre.gov.br/ PEC/G/ histor ico.php>. Acesso em:6 mar. 2018.
lOAs informações foram prestadaspeloEscritóriode Apoio ao Estudante Estrangeiro do campus de Ribeirão Preto.
Atendendo às recomendaçõesapresentadas pelos imigrantes na COMIGRAR, o Ministério da Justiça alterou o nome do documento paraCarteira deRegistro Nacional Migratório.
documentos oficiais, o protocolo, geralm ente, não é aceito po r órgãos públicos e privados, como cartórios e bancos, o que dificu lta, aos imigrantes, o acesso a dire itos públicos e civis
K.F. relata:
A minha filha precisou sair do Brasil e eu tive que autorizar a saída dela. Só que quando a gente foi ao cartório reconhecer a assinatura, eles acabaram por não me ate nder, porque eu não estava com o documento pessoal. Ele não estava vencido, mas o processo acontece da seguinte forma: a gente vai, sempre que chega a data para renovar e eles dão um protocolo. Esse protocolo tem validade atéque o vistoseja deferido pelo Serviço deJustiça. SÓ que atrasa quase sempre. Neste momento vai fazer exatamente um ano que eu pedi a prorrogação do visto, mas até hoje não saiu a RNE.
M.A.E.S., que cu rsa o douto rado, é o único beneficiado com bolsade estudos no Brasil. Sua estadia é subsidiada por convênio firm ado entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), brasileiro, e TheWorldAcademic Science (TWAS), fundação
sediada na cidade de Trieste, Itália, voltada ao financiamento à formação de pesquisadores originários de países em desenvolv im ento em p rogramas de doutorado e pós-doutorado 12•
M.A.E.S. é pro fesso r assisten t e no Departamento de Farmacologia da Universidade de Al exand ri a, onde se graduou em Farmácia, e destaca sua origem acadêmica, pontuando, provavelmenteem razão de preconceitos por parte de brasileiros em relação à sua origem,
que Ahmed Hassan Zewail, laureado com o Nobel de Química,em 1999, também foi aluno, professor e pesquisador em sua universidade.
A HISTÓRICA DISCRIMINAÇÃO JURÍDICA CONTRA IMIGRANTES NO BRASIL
Para a devida compreensão e contextualizaçãodos fatos narrados pelos estudantes de ve se levar em conta a po lít ica m igratória vigente no Brasil desde a década de 192013•
Apesa r das m igrações internacionais terem sido essenc iais à formação econômica do Brasil, elas se caracterizaram, p ri ncipalmente, pelo cruel deslocamen to forçado de povos africanos durante os três primeiros séculos de domínio português. A part ir de meados do século XIX, europeus e asiát icos at raídos pelas propagandas e subsídios oferecidos pelo governo brasileiro e pro du tores de café, inclusive da região de Ribeirão Pre to, passaram a consti t uir as camadas popula res do povo brasil eiro . Vulne ráveis às cr ises nos seus Estados de origem, esses imigrantes labora is encontraram no Brasil condiçõesigualmente restritivas.
O caráter das migrações a trabalho e o perfil dosmigrantesque chegavam ao Brasil, constituído por pessoas de baixo poder aquisitivo, pode explicar as reações xenófobas dos brasi leiro s o rig iná rios, que este reot ipavam as m in orias étn icas com ad jetivos deprec iativos. Explica, igualmente, o cont role migratório vol tado especialmente cont ra afr icanos e asiát icos em normas editadas a part ir da Proclam ação da Repúb li ca. Este viés
ni tidam ente racista foi aprofundado nas décadas de 1920 e 30, quando leis migratórias proíbem a entrada de im igran tes or iginá ri os desses contin entes e a contratação de estrangeiros passa a sofrer restri ções nas leis trabalhistas p rom ulgadas no pe ríodo. A im ig ração de negros é especialm ent e rep elida pelos representantes da elit e branca brasileira, presença exclus iva em todas instâncias de poder, inclusive nas universidades brasileiras. Os debates sobre essa ques tão, registrados nos Anais do Congresso Naciona l,
·
evidenciam a profunda dimensão dessa xenofobia (Geraldo, 2009, pp. 181-184>1 4
A TWAS foi fundada em 1983 por i niciativa de Abdus Saiam, pesquisador paquistanêse Prêmio Nobel em Física. 1nicia[mente recebeu o nome Third World AcademyofSciences.Atualmente, seu fundo é subsidiado pela contr ibuição de out ros laureados.
13 No Brasil, apesar do t erri tóri o ter sido ocupa do por im igrantes, o caráter restritivo dasnormas migratórias vem
desde asprimeirasleis editadaspelogoverno de D.JoãoVI,em 1817.A partir de 18S0,com a pro ibição do trá fico de escravos e em face à necessi dade de trabalhadoresimigrantes, o governo brasileiro optou por originários da Áustria,
Alemanha, Suíça e It áli a, em franca políti ca eugenéti ca que adotará restriçõesainda mais discriminatórias a part ir da década de 1920 (Sprandel, 2015; Carneiro, 2018).
A Constitu ição de 1934, § 6"do art. 121estabelecia:"A en tra da d e im igr antes no t erri tó ri o nac ion al sofrerá as restriçõesnecessárias à garant ia da in tegração ét nica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo,
No entanto, em relação à migração qualificada , constituída por pessoas com habilidades autenticadas por títulos acadêm icos ou por talentos objetivamente reconhecidos, as leis migratórias brasileiras têm sido flexíveis, até mesmo o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980) recém-revogad,ode caráter altamente restritivo e criminalizante15• O Estatuto, fundamentado no paradigma da segurança nacional, estabeleciacomo preferencial ao visto de permanência o im igrante portador de habilidadesadequadas e necessárias ao desenvolvimento da infraestrutura industrial do país, prioridade dos governos m ili tares da época em que a lei foi edi tada16•
A nova Lei de Migração, resultado da participação de imigrantes, representantes de associações de acolhida e de órgãos administrativos e juríd icos, como o Ministé rio da Justiça, o Min istério do Trabalho e Emprego e a Advocacia Gera l da União, consolidou essa prioridade e ampliou o benefício, facilitando a concessão do visto temporár io e a autorização de residência aos imigrantes portadores de diploma universitário ou com intensãode desenvolveratividadesde ensino, pesquisaou extensão acadêmica no Brasil17.
De qualquer forma, leis não são garantia de efetividadede direitos,nem quando decorrem de amp lo processo participativo,como é o caso da nova Lei de Migração, se aplicadas por órgãos com tradição persecutória ao imigrante. Aliás, o Regulamento Admini strativo da Lei de Migração(Decreto 9.199/ 2017) foi elaboradoemmomento político distinto daquele de sua redação e aprovação. Assim, reedita e revigora o caráter restritivo que a nova lei pretendia revogar. Trata-sede insólito caso de decreto regulamentar contra legem.
ESTUDANTES NEGROS E A DESCONSTRUÇÃO DO MITO DA "DEMOCRACIA RACIAL" BRASILEIRA
Leis que pena lizam o racismo existem no Brasil desde1950, po rém, até as últimas décadas, não tinham qualquer efeito prático. É o caso da denominada Lei Afonso Arinos (Lei 1.390/1951) (BRASIL1, 951)18• Somente com a vigênciada Lei 7.716/1989,de autor ia do deputado negro Carlos Alberto Oliveira,posteriormente ampliada pela Lei nº 9.459/1997, do deputado Paulo Paim, igualmente negro, o racismo deixou de ser qua lificado como
contravenção para ser tipif icado como crime. Somente à partir de então, tem sido possível
obter resultados jurídicos no combate à discriminação e racismo.
A disc ri m inação expressa em leis migratórias e sugerida na existência de leis antirra cistas no Brasil encontra forte ressonância na sociedade e tem se manifestado de forma veemente no am biente universitário brasileiro, tanto em relação a professores acadêmicos,como a estudantes com determinados estereótipos étnicos e sociais,vít imas desse preconce ito.É o que relata S.A.N., estudante de Administ ração,origináriado Peru, que sent iu dificuldade em se relacionar com alunosbrasileiros:
porém, a corrente imigrat ória de cada paísexceder, anualmente, o limitededoispor cento sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os Últim os cinqü en ta anos " (BRASIL, 1934).
Em no vem b ro de 2017 entr ou em vigência a nova Lei de Migração (Lei 13.445/ 2017), revogando o Est atu t o do Estrangeiro,queestabelecia como tipopenal condutasque, em relaçãoaos brasileiros, constituíam direitos, comoa liberdade de expressão e sindical ização.O seu art.125,XI com inava com a pena de detenção de 1 a3 anos,seguida de expulsão, quaisquer dascondutas descritas nos artigos 106 e 107 (BRASIL, 1981 ).
Lei 6.815 / 80 . Art. 16. O visto p er manente p oderá ser conced ido ao estrangei ro que pretenda se fixar defin itivamente no Brasil. Parágrafo Ún ico. A imi gra ção objetiva rá, prim ordia l mente, p ropiciar mão- de-obra especia li zada aos vários setores da economia nacional, visando ao aumento da produtividade, à assimilação de
tecnologia e à captação de recursos para setores específicos.
Éo q ue estabeleceo§ 5o do art. 14, o art. 30 e 31 da Lei 13.445/2017 (BRASIL, 2017 ).
A Lei foi a resposta d o deputa do conservador que lhe emprestou o nomeem faceà repercussãointernacional do episódio que envolveu a bailarina norte-ameri canaKatherine Ounham impedida de sehospedarno Hotel Serrador, no Rio de Janeiro durante excursão no Brasil.A mídia brasileira não deu qualquer impo rt ância ao caso, que foi, entr etanto, amplamente criti cado pela imprensa estrangei ra. A lei nunca foi efetivamente aplicada em razão das artim anhas para contorná-la. Ao invés de discrimi naçõesexplícitas contr a pessoas não brancas, exigia-secomo requisito a " boa aparência".
Não sei se é em toda faculdade, mas houve um problema com os outros alunos, que era o de trabalhar em grupo, porque aísim, eu mesenti discriminada, porque por você ser estrangeira eles acham que você não sabe o terna, então eles ficam duvidando de você e não interagem tanto com as pessoas. Porém o terna do trabalho e o grupo são coisas bem separadas.
Quando perguntamos se sentia dife rença de tratamento em relação a alunos de outras nacionalidades, respondeu: "Sim, por exemplo, temos o grupo iTeam19, vejo que sempre organizam viagens, organizam passeios com os alunos europeus, mas não conosco".
M.A.E.S, apesar de cursar o doutorado e ter contatos m ais restritas em compa ração aos alunos de graduação, também notou essa di fi culdade de integ ração entre estudantes brasileiros e estrangeiros. Em sua fala, pontua:
Eu seique todo estudante tem muitos amigos, mas a amizade aqui cresce somente fora dauniversidade,nãodentro. Vocês preferemsair dela,mas nós,na nossa universidade, tentamosfazercom que os estudantes amem a universidadee permaneçam nela para se conhecerem dentro da universidade. A vida de estudante ganha pontos no meupaís, para ser honesto com voce.
A p er cep ção de R.R.W. coincide com a de SAN.e M.A.E.S. Quando perguntada se a integração do in tercamb ista que vem ao Brasil é satisfatória, nega e explica os motivos:
Nunca imaginei que houvesse tanta discriminação entre brancos e negros. No meu país não se discrimina tanto por isso. Isso me impactou muito.Isso mudou a idéia que eu tinha sobre o Brasil.[...) Uma experiência que tive: fui a São Carlos com dois amigos africanos e quando voltamos o motorista pediu a um deles o passaporte, porque era urna pessoa de cor,a mim não me pediram.
Nesse ponto, ao perguntarmos se também sofreu alguma atitude preconceituosa, respondeu:
Nos primeiros dias de aula, nos primeiros meses, cheguei e me senti muda e invisível. Meus compa nheiros não falavam comigo e eu não podia falar com eles. Foram se passando as aulas e trabalhos.Quando ti nha que fazer trabalhos em grupo era difícil. Ninguémme chamava para participar e eu tinha que fazer o trabal ho sozinha. Foi difícil. Eu penseique isso era porque os brasileiros amamtanto sua cultura, que não querem compartilhar com outra pessoa. Quando ia "bandejar", sempre me sentava sozinha, pois ninguém me chamava. Mas umdia havia uma pessoa, que era da França, e ela ti nha muitos amigos ao redor. E eu pensei que a causanão era aquela, porque a menina da França tinha amigos e eu, do Peru, não tinha. Uma vez me encontrei com um brasileiro, e estava com dois amigos africanos, que nos perguntou de onde éramos. Quando disse q ue era do Peru o brasileiro não se mostrou interessado, uma coiso normal.
A f ina ironia de R.R.W. qualifica como " normal" a discri m inação,po r brasileiros,de alunos provenientes de Estados Sul- Americanos, e essa " normalidade " é, justamente,natura lizada pelo fato de se tratar de atitude instituc ionalizada. Reflete uma polít ica m igratória que tem sido traduz ida em leis e práticas administrativas de longa duração, pautadas po r uma "cultu ra acadêmica" que justifi ca a necessidade de se depu rar, no Brasil, qualquer resquício de sociedades cu jo "at raso" é em pir icam ente evidente. Nesse sent ido, a m iscigenação e as m igrações eugenét icas ser iam instr um en tos a possibilitar que as "virtudes" e a "superioridade" branca predominem sobre as " m ácu las" da negr itude, " salvan do" a sociedade brasileira de seu inexorável atraso. Tais idéias, defendidas por muito tempo entre acadêmicos brasileiro s, foram insti tucionalizadas politicamente e continuando afetando práticas sociais " legit imando e reproduzindo um cotid iano [...]de desigualdade e humilhação" (Souza,2015, p. 31). Jessé Souza denomina esse fen ômeno de " sociologia espontânea do senso comum", isto é, quando imperat ivos inst it ucio nais são internal izamos como naturais (Souza,2015, p. 40).
K.F., angolano, pontua, com base em episódios vivenciados no Brasil:
Grupo formado p or estudantes do campus de Ribeirão Preto vol tado à integração de alu nos estrangeiros e apoio a brasileiros que desejam realizar intercâmbios fora do país. A foto decapa da página do iTeam na inte rnet é in tegralmen te comp osta por estudantes brancos e podeser acessada no endereço:<https:// www.iteamusprp. com.br/>.
É interessante falar da política migratória brasileira, porque o Brasil tem sido país de destino demuitos imigrantes africanos, da própria América Latina e temo caso do Haiti. Por essa razão, pelo fato do Brasil ser um país que os imigrantes têm escolhido, acho que está a altura do poder público sentar à mesa para debatera políti ca migratória, de modo que os direitos humanos dos imigrantes sejam, de alguma forma, garantidos. Até para garantir os serviços mais básicos: emprego, saúde, educaçãoe moradia. Muitos estão ao relento, nem sequer tem um lugar para dormir. Então, é interessante que o Brasil pense sobre isso. No fundo, a humanidade é isso: o futuro da humanidade é a imigração. Os países que estiverem economicamente bem estruturados serão, imediatamente, o destino de qualquer pessoa que queira melhorar sua qualidade de vida.
A cultu ra racista e discr im inató ri a da sociedade brasilei ra, resu ltado da inserção do Brasil no eixo Atlântico do escravismo moderno (Mbembe, 2014, p. 90), expressamente identif icada na eugenia das normas relativasà imig ração (Geraldo, 2009), é materia lizada em práticas adminis trat ivas e juríd icas ainda persistentes.Na qualidade de úl tim o país a reconfigurar a econom ia colonial e extinguira escravidão, a sociedade brasileira foi formada
sob o estigma da negritude e africanidade, em sua forma ideológica e historicamente forjada(Mbembe,2014, 40-43),o que explica sua busca pelo ideal Branco (Mbembe, 2014,
pp. 84-87)20•
Na América, a escravidão não foi estabelecida pela subjugação dos vencidos no processo de ocupação europeia, pois aprisionou povos que viviam em região determinada do planeta, a África Ocidental e Meridiona l. Somente a partir dessa escravidão de mercado, os Negros ou Africanos passaram a ser sinôn imos de escravos (Guimaraes, 2003, p. 99). Trêsséculos e meio derelações de trabalho escravagistas cravaram na sociedade brasileira valores negativos que, até o presente, predominam nas relações púb licas e civis, e fo ram percebidas po r K.F, que ratif ica os conceitos apresentados po r Mbembe 21:
Acho que, no geral, o que vive na consciência coletiva do brasileiro com relação às pessoas negras é tudo isso que a mídia passa, queo negro éladrão, o negroéqualquer coisa, menos pessoa. Masé interessanteouvir esse negro, ouvir essa pessoa, pois todo mundo tem algo para passar, por mais insignificante que seja. Eu, pessoalmente, não concordo que algumas pessoas sejam consideradas insignificantes e outras melhores. Mas, aqueles que, a um primeiro olhar, é julgado insignificante talvez tenha a passar alguma coisa e (quem discrimina) não entende que as pessoas não aprendemsozinhas.
Para comp reender o contexto discrimina tór io narrado pelos estudantes, o racismo e o preconceito que dominam as relações sociais brasil eiras, é necessár io levar em conta que esse sent im en to tem sido fort alecido e retro alim entado jus tam ente no amb iente acadêmico, local de elabo ração das teo rias b iológicas e sociológicas que buscam conferir
status científ ico ao mito racial.Nesse sentido, à Escola Eugenética, produção teórica
das p rim eiras faculdades brasile iras do sécu lo XIX, seguiu-se, a partir de 1930, a Escola Sociológica, cuja característicaé a negação da questão racia l e do racism o brasile iro pela " ideologia da mestiçagem", tenta tiva evidente de apagar ou ocu lta r o h istó rico op róbr io Negro (Mbembe, 2014, p. 35). Para Abdias Nascimento, acadêmico negro rejeitado pelas universidades b rasileiras, ta l ideo logia promoveu um verdadeiro genocíd io, m aterializado no estupro e na objet ificação da mulher negra apresentada no ext erio r como nosso
principal bem de consumo e exportação (Nascimento, 1978).
O desejo de ocu lta r o passado escravagista e a negritude africana para ressaltar o caráter
Branco do bras il eir o é des tacado por K.F.:
Segundo Mbembe: "O Negro não existe enquanto tal.Éconstant em ent e produzido. Produzir o Negro é prod uzir um vínculo social de submi ssãoe um corpo de exploração,isto é,um corpo inteiramenteexposto àvontade do
um senhor, e do qual nos esforçamos para obter o máximo de rendimento. Mercê de tra balhar a corveia, o Negro é também de injúria, o símbolo do homem que enfrenta o chicote e o sofrim ento num campo de batalha em que se opõem grupos e facções sociorracialmentesegmentadas (Mbembe,2014, p. 40).
"Ao longo do século XVII, um im enso trabal ho legislativo vem selar o seu destino. A fabricação das questões de raça no cont in ent e americano começa pela sua destituição cívica e, portanto, pela consequente exclusãode privilégios e de direitos assegurados aos outros direito de apelar aos tribunais faz do Negro uma não pessoa d o ponto devista jurídico". (Mbemb e, 2014,p. 42).
Por meio dessa herança histórica comum que existe entre a Angola e o Brasil, sempre pensei que o Brasil fosse uma espécie de país africano fora da África, por conta do fato de terem vindo várias pessoas do continente africano para cá. Mas aí, q ua ndo eu cheguei aqui, essa impressão se desfez rapidamente, porque no Brasil q uas e nada se sabe sobre sua herança africana. Eu já cruzei com vários brasileiros que diziam que eu falava bem a líng ua portuguesa e acabavam por me perguntar onde é que eu tinha aprendido. Nem sequer sabiam que a Angola fala português, que Angola foi uma colônia de Portugal, assim como o Brasil. Então, há uma igno rância muito grande em relação a essa parte africana que o Brasil nega o tempo todo. Ao negar essa parte africana o Brasil acaba eleva ndos eu lado euro pe u. Já conversei com vários brasileirosque ao falar da árvore genealógica de cada um, você percebe, falam com muito orgulho quando tem pessoas que vieram da Europa.
•
Constituir -se em um "país africano fora da Áfr ica" era, justamente, a máculoque os proprietários e intelectuais brancos procuravam extirpar no período de constitu ição da "nação brasileira": a sociedade precisava ser embranquecida e seu passado escravista, esquecido22
Com o aumento dos fluxos migratórios globais,neste início de século, temos assistidotanto o recrudescimento do biologismo racial do século XIX, desta vez ancorado nos estudos do genoma parajustificar distinções entre grupamentos humanos {Mbembe, 2014, p. 45), como o culturalismo abstrato, estampado na xenofobia manifestaem relação aos povos árabes e islâmicos(Balibar y Wallerste in, 1991).
Gilberto Freyre foi o fundador acadêmico do mito da democracia racial brasileiro. A partir de Coso Grande e Senzala (Freyre, 2003)23, a escravidão do negro e sua presença entre o povo brasileiro deixam de ser entendidascomo tragédia inarredável e incapacidade de desenvolvimento para converter-se em possibil idade de superação da negritude pela miscigenação, em esperança de desenvolvimento pela formação de uma nacionalidade livre do estigmaNegro.
Segundo a conhecida tese de Freyre,o Brasil possui relações raciais igualitárias,apesar da estrutura aristocrática de sua sociedade,ideia que promoveu uma simpatia internacional aos brasileirosao contrapor-noscom o racismo dos Estados Unidos. A fantasia acadêmica da democracia racial foi abraçada pela sociedade brasileira, além de repercutir fortemente fora do Brasil, como pudemos depreender dos depoimentos dos intercambistas que, invariavelmente,se referiram a ela para pontuar a surpresa com a realidade efetivamente vivenciada.
Sobre esse aspecto, O.M., que é jamaicano,expõe sua impressão acerca da invisibilidade ou da ausênc ia do negro em locais que costumam ser frequentados, quase que exclusivamente, por brancos, como nas viagens aéreas, por exemplo:
A imagem do Brasil, antes de vir para cá, é aquela imagem típica de qualquer gringo: praia, fute bo l, carnaval, porque realmente no Caribe a gente não tem muita (informação), não se fala muito dos países da América do Su l. (...) Agora que es to u aqui, tenho uma imagem completamente difere nte . A image m que e u tenho agora é um pouco negat iva. Antes a imagem que eu sempre vi, que às ve zes eu via na televisão, os jogadores, a maioria deles, negros. AÍ, eu lem bro que minha primeira imagem, a que tive dent ro do avião, quando estava chegando aqui, foi de pessoas não negras. Eu até pensei estar em um avião errado. Pouco a pouco, eu comecei a e nte nde r que existe, infe lizme nte, espaços, onde fico a maioria das ve zes, como o espaço universitário, que não te m tantas pessoas que tem a cara da maioria da população. Existe essa desigualdade social. Essa é a imagem que eu ten ho agora do Brasil.
Neste sentido, emblemático o ato de Rui Barbosa, qua ndo Ministro das Finanças, que emitiu aCircular n. 29, de 13 de Maio de 1891,no aniversário de dois anos da denominada Lei Áurea, que aboliu a escravidãono Brasil, determinando a destruição pelo fogo de todos os documentos históri cos e arquivos relativos ao comércio de escravos e escravidão em geral (Nascim ento, 1979, p. 49).
O livro CasaGrande e Senzala, de Gilbert o Freyre, publicado em 1933, é o marco institucional do mito fundador da " identi dade singular" do "povo brasileiro" e da ilusãode uma "sol idariedade social" mani festa no "encont ro de raças" e no seu "p ersonalismo emotivo", pensamento que ultrapassou nossas fron teiras e, internament e, " naturalizou" a profunda desigualdade de classes no Brasilpela ideia de que "certo estoque cultural é acausa e também a legit imação da desigualdade entre indi víduos e nações" (Souza,2015, p. 47).
O mito da democracia racial brasileira, entretanto,não foi inventado po r Freyre24, pois os movimentos negros da época também participaram desse projeto de formação de uma nacionalidade mestiça (Guimarães, 2003, p. 101). Lívio de Castro (1880) escreveu sobre o " impu lso democrático natura l", que permeia a interação racial no Brasil. Evaristo de Moraes aponta os Estados Unidos como "expressão máxima do preconceito racial dos tempos modernos" em comparaçãocom a "fusão pacífica e produtivadas duas raças"no Brasil (Andrews,1997,98-99). Nesse aspecto, mostram como descendentes de escravos
adotaram,de forma perversa,a razão negro cri t icadapo r Mbembe (Mbembe, 2014), tema
posteriormenteanalisado por Aniela Maia Ginsbeng, no campo da psicologia,nos estudos patrocinados pelo Projeto UNESCO (Cunha y Santos, 2014, p. 321)25•
As histórias relatadas pelos estudantes inte rcambistassão unânimesem apontar, num primeiro momento, que também foram capturadospela fantasia da democracia racial e da cordialidade do brasileiro. Se no iníc io referem-sea essas ide ias,em seguida, passam a relatar seu processo de desconstrução, especialmente K.F e O.M, que são negros, ao descreverem episódios violentos de racismo e suas dificuldades de integraçãoem um ambiente universitário elitista, Branco e historicamente enviesado pela discriminação do Negro.
N.J., que não é negro, mas possui típicos traços and inos, também foi discriminado, evidenciando o que Mbembe chama de"tendencial universalização da condição negra", ou seja, quando toda a "humanidadesubalterna se torna negra" (Mbembe, 2014, p. 16, p.21). Ele relata sua dificu ldade em se integrar no ambiente universitário, nos seguintestermos:
Vou falar algo que me marcou negat ivamente e foi com relação aos meus colegas: eu note i muita diferença em relação aos estudantes de Medi cina. Quando cheguei aqui as pessoas me disseram que eleseram ricos. Eu estudo em uma universidade pública e há pessoas que têm dinheiro, mas aqui q uase todos têm bastante (dinheiro).Por isso têm bons carros e por isso não comem no "bandejão". Por isso se vestem bem, e isso me chocou um pouco. Onde estudo, somos de classe média, mas também de classe baixa, mas todos somos estudantes de Medicina. Todos. Quando cheguei aqui e comecei as aulas no hos pital me senti incomodado. Eles disseram: "vamos sair em um fim de semana, pra comer no centro." Eu fui e gastei RS 90,0 0. Para eles é normal, pega vam seus cartões e iam passando. Eu nunca usei um cartão de crédito. Somente no Bras il, fiz um cartão de débito para poder fazer a transferência de dinheiro (do Peru), mas eu sempre pagava com minhas notas. RS 90, 00! E o trato também.Alguns eram legais, mas outros eram muito fechados. Já fui, em outra o portunidade, ao Chile e os est udantes de lá me receberam muito melhor que aqui [...] Até agora, há poucos q ue se relacionam comigo. Is so me marcou negat ivamente.
M.A.E.S., que também não é negro, mas é árabe e muçulmano, descreveu episódios de racismoque presenciou contra seus colegas de origem africana.Quando perguntado se sofreu algumadiscriminação por ser estrangeiro, relata:
Na verdade, eu acho que tive so rte porqueeu não sou um caranegro, porque as pessoas neg rassofrem bastante discriminação aqui no Brasil. Especialmente vindos da África. Eu tenho amigos da Nigéria e de o ut ros lugares da África, mas no Egito boa parte das pessoas é branca.Mas eu percebi que no Brasil tem bastante neg ros e eles sofrem discriminação.Mas é um problema quando alguém descobre que sou mulçumano. Algumas pessoas aceitam, outras não.Você tem que conhecer as pessoas, se envolver com as pessoas mulçumanas, para conhecer a realidade. Eu sei que qua ndo você ouve sobre pessoas mulçumanas, a primeira coisa que você pensa é "homem bomba", como se eu fosse fazer uma bomba aq ui na frente da câmera. Mas isso não é verdade. Mas a mídia produz essa imagem, então algumas pessoas começam a se afastar de mim.
Antô nio Sérgio Guimarães aponta que, embora o ma rco seja a obra de Gilberto Freyre, p ub licada em 1933, d urante a década de 1920, este discurso já se apresentava como dominante na Semana de Arte Mo d e rna de São Paulo, em 1922,"pois todos os mode rnismos vão perseguir exatame nte uma ideia nova de Brasil e de povo brasileiro" (Guimarães , 2003, p.100).
Arthu r Ra mos, contemporâneo de Gilberto Freyre, teve papel significat ivo no desenvolvimento d a Escola Sociológica ao divulgar inte rnaciona lmente o Brasil como um "laboratór io de c ivilização " a se r anal isado. Sua missão foi frutífe ra e resultou no Projeto UNESCO, q ue instit ucio nalizou, no país, uma sociologia das relações raciais. Oprojetofoi dese nvolvido na década de 1950e promoveu a formação de centros de pesquisa em un iv e rs idades do Rio, São Paulo, Bahia e Perna mbuco (Guima rães, 2004, pp.13-18; Heringer, 2002, p.59). Empreen didos por brasileiros e estrangeiros, os estudos, entretanto, a briram ca minho para a desconstr ução do mito da relação harmoniosa entre raças, ao se debruça r, d e forma crítica , na realida de d as relações sociais brasileiras.
O.M., neg ro, filho de médicos, emociona-se ao relatar experiênc ias de discrim inação, inclusivequando se vê na necessidade de explicar aos demais colegas as cond ições que possibilitaramseus estudosno Brasil e defender seu direito de cursar Odontologia na USP:
Eu já se nt i que as pessoas duvidam do processo que me trouxe aqui. Principalme nte, no meu primeiro ano, fiz questão de explicar pra todo mu ndo da minha sala, que sempre vinham me perguntar como é que eu consegui a minha vaga aqui,que não tirei a vaga de ninguém, de nenh um brasileiro... A vaga que eu consegui é corno se fosse uma vaga a mais para estrangeiros, prá contr ib uir com a inte rnac io nalização da US P. Eu sempre sentia que a pessoa questionava a minha presença em uma das melhores universidades
do Bras il, na qual muitosamigos deles estudaram muitopara conseguir uma vaga enão conseguem... E eu chegode outro país, e elesduvidam da minha capacidade. Então, muitas vezes, eu te nho que provar p' ra eles que sou capaz, que sou igua l, que eu não sou nenhum coitado, entendeu? Também já senti que fui tratado diferente por ser... Como é que eu vou dizer? Po r ser minoria. Eu não sei se negros são minorias aqui, mas eu já senti isso. Agora, que já faz 4anos que estou no Bras il, eu percebo todo dia, um pouquinho de racismo institucional,essa hierarquia racial que é aceita pela grande maioria, ou por muitas pessoas... uma situação em que você entra numa salae a grande maioria não é parecida com você porque é branca. Essa é uma coisa que eu senti: estou numa instituição em que sou diferente, e que muitas pessoas parecidas comigo não tiveram a oportunidade de entrar.
O.M. relataque também foi vítima de ofensas racistase, inclusive, de abordagempolicial violenta dentro do campus. Narrou taisepisódios sob forte emoção.
Nodia,estava fazendo minha prova de recuperação. Lembro que ia começar às 09h00 e antes quis ir no banco para sacar dinheiro, mas eu vi que meu ônibus estava passando e comecei a correr. Assim que e ntrei na calçada, a polícia me viu, e eu não sei porquê, foi uma coisa que não consigo entender, me abordou e falou:"Mã o na cabeça,vagabundo". Eu tive que provar que sou aluno da USP e que ia pegar aquele ônibus... Felizmente, co nsegui chegar a tempo de fazer minha provae passar, mas, infe lizmente, isso é urna coisa que, acho que p'ro resto da minha vida, não vou esquecer.
K.F., como O.M., também foi abordado, de forma agressiva,por policiaismilitaresdentro do campus universitário:
Eu estava no banco, dentro da US P. Era de noite, eu precisava sacar din heiro para carregar o celular. A po lícia chego u, assim, do nada. Chegaram armados,com armas grandes, e pediram que eu saísse do banco. Eu saí e eles estavam a questionar o que estava a fazer ali.Os a rgumentos que traziam é que "era tarde", "que eu não podia estar ali". Pediram minha documentação, [perguntaram)o que esta va lá fazendo, o que estava fazendo no Bras il, tive que explica r que era estuda nte de Direito, e acabei confrontando a polícia, eu falei para eles:"Como eu faço em relação à liberdade que te nho de ir e vir, onde bem entendo, e no momento que eu ente ndo?" Mas, enfim, elesfalaram que hav ia muitos assa ltos a banco e que era perigoso eu estar lá, mas a gente sabe que, no fundo, a polícia só apareceu porque era uma pessoa negra. Eu estava apenas no caixa, como qualquer outra pessoa poderia estar. A única explicação convincente é justamente toda esta questão sobre preconceito e disc riminação racial.
Da mesma forma que o racismo, no Brasil, foi prob lematizado por acadêmicos brancos, representantesda elite econômica brasileira, as universidadespúblicasaindaconst ituem se, igualmente, em um ambiente branco e elitista,pois é raro encontramos um professor ou estudantenegro em suas dependências. Esta situaçãoapenas começou a ser minorada na última década com a instituição, nas universidadesfederais, do regime de cotas para alunos brasileirosnegros, em uma inédita política governamental de democratizaçãodo ensino púb lico un iversitário.
No entanto, emrazão do princípio constitucional da autonomia universitária e pelo fato da USP tratar -se de un iversidade estadual, ela é regulada,além de suas resoluçõesinternas, po r leis próprias do estado de São Paulo. Resistente em adotar o sistema de cotas, da mesma forma que resiste em credenciar-seao PEC-G e PEC-PG, a USP introduz iu somente a partir de 2018um sistemamisto de cotas sociais.
Por meio da Resolução 7.373, de 2017, aprovada pelo Conselho Universitário, passou-se a reservar37%das vagas de cada curso a alunos que cursaram integ ralmente o ensino médio em escolas púb licas, incluindo, nessa seleção,o recorte de raça na proporçãoda popu laçãode negros, pardos e indígenas residentesno estado de São Paulo, segundo
dados do Inst ituto Brasile iro de Geografia e Estat ística (IBGE). O novo modelo de ingresso será imp lantado de fo rma escalonada até 2021, quan do o sistem a de cotas abarcará 50% das vagas na universida de (USP, 2017).
Por isso, encontrar um aluno negro, nos diversoscursos da USP, ou mesmo um professor negro, pode causar estranhe za en tre br asil eir os e pro m over at itu d es discrim inatórias como as que foram relatadas pelos estu dantes ent revistados, que se sent iram isolados e estranhos em um ambiente onde vivenciaram situações que lhes provocaram traumas e constrangimentos.
Estes estudantes levarão para seus países de or igem a pri ncipal lição assim ila d a no Brasil, a de que aqui negros sofrem restriçõesde direito e de possibili dades de ascensão econômica, pois são, invariavelm ente, vistos como " pobres" e, inclusive, subm eti d os à vio lência e to da sorte de hum il hações. Nesse aspecto, os depoimentos ressaltaram a estroneidade do p reto b rasileiro, estrange iro em sua próp ria pát ria, além de evidenciar que a assimilação, a integração do imig rante negro à sociedade brasileira, é também feita pela violência e subordinação.
Deixemos que K.F. conclua:
Bom, eu acho que o Brasil precisa crescer muit o a nível humano, a nível deste reconhecimentodo outro que, muitasvezes, só é inimigo nossoporque a gent e nada sabe sobre ele. Quer dizer,o indivíduo é inimigoporque ainda não ouvimos a história d ele. Acho q ue é fundamental que haja essa troca de experiências, essa t roca de histórias,é preciso que a pessoa se abra de algumaforma para que o outro conte um pouquinho desi, euma vez contada a história da pessoa, aísim...Não seiseé legítimo, se é sensato emitir julgamentos daqu ilo q ue você desconhece,você po de se tornar carrasco de urna pessoa simplesmente porque nada sabe dela. Agora, quando você sabe, você tem esse ou tro lado. É muito importante saber o outro lado da história.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A p esqu isa com estudantes intercambistas no campus da USP em Ribei rão Preto foi desenvolvida pelo Grupo de Estudos Migratórios e Apoio ao Trabalhador Im igrante (GEMTI), sediado na Faculdade de Direito. O grupo de pesquisa e extensão foi cria do em 2012 para desenvo lver anál ises sob re dir eitos dos im igran tes no Brasil, além de presta r assessoria jurídica para trabalhadores imigrantes residentes nesta região do interior paulista.
Um dos pri meiros pro jetos desenvolvidos foi, justamen te, a criação de um banco de dados com depoimentos prestados por im igran tes sobre sua histó ria de vida. Preten díam os registrar em vídeosna rrativas sob re a vida no país de or igem, as razões que os levaram a migrar e escolher o Brasil como país de destino, além de identificar possíveis difi cul dades no p rocesso de adm issão, pe rmanência e integ ração à sociedade e merca do de t rabalho bras il eiro. Pretend íam os, com esse banco de dados, subs id iar invest igações dos m ais var iados campos do conhecimento, em razão da trans disci pl in arida d e dos est udos m igratórios.
Pesquisas que envo lvem a part icipação de pessoas, por sua vez, podem import ar em riscos àque les que concordam em dar sua cont rib uição, e todo cuidado deve ser emp reend ido par evi tá-los, minim izá-los. Os ri scos po dem decor rer do p róprio desenvo lvim ento da invest igação: des pertar traumas superados, reviver sentim en t os negativos, recordar dores sublimadas. Podem tam bém decorrer da divulgação de seus resultados, em razão da exp osição dos part icipant es. É, justamente, o caso desta pesquisa. No seu desenvolvimento, deparam o-nos com riscos signif icativos aos part icipan tes, riscos que foram comp letam ente desconsidera dos no in ício da formação do banco de dados.
Quando iniciamos a investigação, não tínhamos a dimensão desses efeitos pelo fato dos estudantes serem im igrantes qualif icad os, especia lm ente benefic iados por tratados ou acordos intergovernamentais e interinsti tucionais, além de gozarem da situação regula r no Brasil. No entanto, durante a coleta de depoime nt os, a reação emot iva dos participantes ao narrarem experiênc ias negativas e a ident ifi cação do tipo de restrições que lhes foram opostas por órgãos migratórios brasile iros, cuja narrativa assemelhava-sea verdadeiras denúncias -embora os estudantes não tenham se dado con ta disso, na ocasião em que ocorreram - demonstrou a possibilidade da investigação causar danos aos depoentes.
Ao nos depararmos com tais aspectos, problematizamos as questões levantadasnos relatosfornecidos, de forma a aprofundar sua análisee investigar suas razões, e o projeto de pesquisa foi inscrito no sistema CEP-CONEP para que se submetesse à avaliação de um dos Comi tês de Ét ica da universidade. Na ocasião, entretanto, o projeto ainda estava
sob regênciada Resolução466/2012 do CONEP, e seu desenvolvimento foi obstaculizado pelos seguintes motivos: a formação do banco de dados já estava em curso, o que impossibili tava a análise do CEP; a manifestação da concordância em participar da pesquisa e a autorização do uso de imagem conferida pelos participantesforam feitas em documento que não continha todos os termos exigidos pela resolução - não havia, por exemplo, sido redigida em forma de convite, e alguns participantesjá tinham deixado o Brasil im possibi lit ando sua convalidação;alémdisso,a gravação da imagem dos depoentes compromet ia a ob rigatoriedade do sigilo sobre sua ident idade.
Enfim, compreendíamos que o desenvolvimento da pesquisa importava em riscos consideráveis aos participantes,pretendíamos contorná-los, mas a invest igaçãoestava inviabil izada pelo rigor dos critérios estabelecidos pelo sistema CEP-CONEP,voltado, especialmen te, para pesquisas na área médica. Posteriormen te, a publicação da Resolução 510/2016 possibilitou a con tinu idade do projeto, posto que a norma, voltada exclusivamente para pesquisas em ciências sociais, admite a constituição de bancos de dados antesda problematizaçãodo tema da pesquisa;dispensa o termo deconsentimento por escrito, admitindo que seja gravado ou que a anuência seja manifesta por outros meios idôneos, além de possibilitar que os participantesautorizem a quebra do sigilo sobre sua identidade.
Após esses im passes, podemos afirmar que o principal resultado desta pesquisa fo i, justamente, a percepção acerca dos riscosa que os imigrantes estão sujeitos no Brasil, até mesmo no desenvolvimento de uma pesquisaacadêmica, e mesmo quando qualificados e, portanto, "desejáveis"e protegidos por tratados e acordos que os beneficiam.
Constatamos, igualmente, que, mesmo sendo destinatários de direitos, os estudantes intercambistasnão são informados sobre isso pelas autoridadesque teriam obr igação de fazê-lo e seu ingressotem sido obstaculizado,pois nosConsulados e na Polícia Federal lhessonegam informações,inclusive onerando, in justi ficadamen te, sua vinda ao Brasil. Essa prática reflete e perpetua uma tradição de controle e rejeição em relação aos imigrantes proven ientesde Estados cuja maioria da população não é branca, dificu ltando a materialização de normas m igratórias receptivas,como o Acordo de Residência do Mercosul e o Programa Estudante Convênio para Graduaçãoe Pós-Graduação (PEC-G e PEC-PG).
Uma vez no território brasileiro e na universidadede destino, sentem dif iculdade em se integrar, sofrem racismo velado, quando discriminados pelos out ros estudantes, e não se ident ificam com seus colegas, todos brancose de alto poder aquisitivo. Quando negros, o racismo torn a-se explíci to, estão sujeitos a injúrias e a alt o grau de violência física, especialmente por parte da Polícia Mil ita r, que tem permissão para entrar nos campi da USP e constrangerestudantes que conside ram "suspeitos", episódios que provocaram traumasque foram expressosnas lágrimasvertidasao narraremos episódiosde agressão.
Ao final, ficou evidente que as expectativasgeradas quando escolheram o Brasil pa ra estudar, esperando encontrar um lugar alegre,acolhedor, solidár io e democrático, foram frustradas.A impressão que ficou para estesestudan tesé de um país com universidades racistas, elitistas e excludentes,o que desconstruiu suas ilusões fundadas no mito da "democracia racial" brasileira.
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