segunda-feira, 12 de agosto de 2013

“POR QUÊ, CALABAR?” (A RAZÃO DA TRAIÇÃO)



“POR QUÊ, CALABAR?”
(A RAZÃO DA TRAIÇÃO)

            A figura de Calabar se encaixa na história pátria colonial durante a época da invasão dos holandeses no Nordeste  (1630-1654).(1) Morador de Porto Calvo, Alagoas, passou para o lado holandês. Conseqüentemente é desprezado como maior traidor pela maioria, mas para outros, Calabar amava sua terra natal e fez uma escolha sábia.

1. Contexto

            Para entendermos o drama de Calabar temos de lembrar do contexto.histórico. Portugal e suas colônias estavam debaixo de domínio espanhol desde que Filipe II conquistou a coroa portuguesa em 1580, que, então, podia afirmar com razão que no seu império o sol nunca se punha. Somente sessenta anos depois, no ano 1640, Portugal se livraria de Castela e constituiria de novo um reinado independente debaixo de João IV. Mas a história de Calabar se desenvolve ainda completamente dentro do Brasil ibérico, e, por hora, não havia previsão de mudança política.
            Domingos Fernandes Calabar nasceu no atual Alagoas, na região de Porto Calvo, filho de pai português e de mãe indígena, de nome Ângela(2). Já homem feito, apareceram os conquistadores holandeses nas costas do Nordeste. Entre Portugal e a Holanda geralmente havia um bom relacionamento, inclusive por causa do seu inimigo comum, a Espanha. Mas naquele tempo do reinado unido ibérico, a invasão flamenga fazia parte da guerra dos oitenta anos que a Holanda travava contra o domínio espanhol sobre seus sofridos Países Baixos (1568-1648).(3) A Ibéria continuou tentando recapturar suas províncias perdidas e esmagar a reforma religiosa naquelas rincões. Europa sempre ficava maravilhada como os Filipes conseguiam colocar exércitos bem equipados longe das suas terras e sabiam que o segredo era a riqueza oriundo principalmente das colônias americanas, inclusive do Brasil. De lá não vinha ouro nesta época, mas sim grandes caixas de açucar delicioso, branco e mascavo, umas 35.000 caixas de 300 quilos cada por ano.(4) O paladar europeu estava se adocicando e o preço do açucar em alta. A Holanda procurava “fechar as veias do rei da Espanha” por onde fluia tanta riqueza, e muitos holandeses apoiaram os esforços da Companhia das Indias Ocidentais de coração, objetivando causar “prejuizo ao inimigo comum.”(5)
            O domínio holandês do Nordeste durou quase um quarto de um século, em tudo 24 anos (1630-1654) e abrange três períodos distintos. A primeira etapa é composta dos anos da resistência ibérica e do crescimento do poderio neerlandês (1630-1636). O segundo período compreende a resignação lusa e o florescimento da colônia holandesa (1637-1644). O último período é o da insurreição dos moradores portugueses com o fenecimento do domínio flamengo até a expulsão final (1645-1654). São períodos de aproximadamente sete, oito e nove anos, respectivamente. O florescimento da colônia holandesa coincide com a presença do Conde João Maurício de Nassau-Siegen como governador do Brasil holandês, e deveu-se em grande parte a sua pessoa. Especialmente naqueles anos nassovianos, mas de fato durante todo o período holandês o Nordeste era como uma enclave renassencista(6) no Brasil colonial com uma forte influência cristã reformada. A história de Calabar faz parte integrante do primeiro período da ocupação holandesa, a da resistência ibérica contra os recém chegados conquistadores.
            Olinda, a capital da capitania de Pernambuco, caiu nas mãos dos holandeses em fevereiro de 1630. Fazia parte da “primeira guerra mundial ... contra o rei do planeta.”(7) A composição das tropas refletia este aspecto global, parecendo Gideões internacionais, incorporando holandeses, frísios, valões, franceses, poloneses, alemães, ingleses e outras nações. Fazendo parte da guerra contra Madrid, todos se alegravam quando “os espanhóis” bateram em retirada.(8) Esta luta contra a Espanha tinha implicações profundamente religiosas. Embora a instrução do Almirante Lonck estipulasse que todos os padres jesuitas e outros religiosos teriam de abandonar o país, reafirmava a “liberdade de consciência, tanto para os cristãos como para os judeus, desde que prestassem juramento de lealdade ... assegurando-lhes que (Holanda) não molestaria ou investigaria as suas consciências, mas que a religião reformada seria publicamente pregada nos templos ...”(9) Um governo civil foi instituido; um dos membros deste Alto Conselho era o médico Servaes Carpentier.(10) O exército ficou debaixo do coronel Diederick van Waerdenburgh, presbítero da Igreja Reformada, homem querido pelas tropas.
            Em 1631 a Ilha de Itamaracá foi conquistada e o Forte de Orange construido sob a direção do capitão protestante Chrestofle Arciszewski, um nobre polonês.(11) Mas a expansão foi lenta, e outras tentativas de alargar a conquista falharam por causa da resistência dos lusos brasileiros, que eram grandes conhecedores da região e tinham adotado o método de guerrilha (“capitanias de emboscada”), o que deixou os holandeses praticamente encurralados. O próprio Almirante Lonck quase caiu numa emboscada no istmo do Recife a Olinda, mas o pastor Jacobus Martini foi morto no mesmo trecho.(12) O centro da resistência portuguesa estava localizado a uns seis quilômetros do litoral em terreno alegadiço no lugar denominado Arraial do Bom Jesus(13) sob a liderança do nobre Matias de Albuquerque. Ibéria enviou uma armada de mais de 50 navios para recapturar Pernambuco, a maior parte da contribuição de Lisboa vindo de empréstimos compulsórios de “cristãos novos” (judeus obrigatoriamente convertidos ao catolicismo romano).(14) Mas, em setembro, a batalha naval de Abrolhos no litoral pernambucano ficou sem vencedor. Em seguida, as tropas espanhóis, sob o comando do não muito bem quisto conde napolitano Bagnuolo, desembarcaram em Barra Grande, no Sul de Pernambuco, umas cinco léguas distante do maior povoado da região, Porto Calvo à margem do Rio Una. Entre eles estava Duarte de Albuquerque Coelho, o novo donatário de Pernambuco, autor das famosas Memórias Diárias(15) sobre os primeiros oito anos desta guerra colonial. A situação era de empate por enquanto, os holandeses dominando o mar, os portugueses as praias.

2. História

            Esta situação de empate virtual no Nordeste continuou até abril do ano 1632, quando um soldado de nome Calabar deixou o campo português e passou para o lado dos holandeses. Foi por um período curto somente, pouco mais do que três anos, mas com conseqüencias para toda a época flamenga. Calabar não era o primeiro, pois centenas de escravos tinham fugido das fazendas lusas e também vários clãs de índios tupis começaram a fazer contatos amigáveis. Mas Calabar seria o mais importante entre eles. Era um homem inteligente e forte, grande conhecedor da região. Já tinha se distinguido na defesa do Arraial, onde ficou ferido. O motivo da sua deserção não está claro, e inicialmente os holandeses não confiavam nele, mas, pouco tempo depois, provou o que podia fazer levando as tropas de Waerdenburgh a conquistar a cidadezinha de Igaraçu. Os meses seguintes muitas campanhas foram feitas pelas colunas volantes batavas sob orientação de Calabar que se tornou amigo do colonel alemão Sigismund von Schoppe.
            Em 1633, para o norte, Itamaracá e finalmente até a fortaleza Reis Magos e com isso Rio Grande do Norte, foram capturados, o que levou a contatos amigos com os tapuias, indigenos antropófagos daquela região. No sul, Pontal, a valiosa ancouradoura do Cabo Santo Agostinho, foi tomado, o que privou os portugueses do porto mais perto do Arraial dificultando o recebimento de reforços de Lisboa e o envio do açucar para Portugal. Nesta altura o colonel Sigismund, como o mais velho dos oficiais, assumiu o comando das tropas terrestres. No mar, o almirante Jan Cornelis Lichthart que sabia português, tornou-se amigo do Calabar, que lhe ensinava as entradas dos rios. Mais e mais Calabar se encaixava na sociedade dos invasores e se tornou uma pessoa estimada e respeitada, inclusive na “igreja católica reformada”.(16) Prova disto é quando nasceu um filhinho do casal, ele foi batizado na igreja reformada do Recife. O livro de batismo desta igreja registra que, no dia 20 de setembro de 1634, Calabar estava ali ao lado da pia batismal com um pequeno Calabarzinho nos braços. Foi, então, batizado “Domingo Fernandus, pais Domingo Fernandus Calabara e Barbara Cardoza.”(17) Como testemunhas estavam lá o alto conselheiro Servatius Carpentier, o coronel Sigismund von Schoppe, o coronel polonês Chrestofle Arciszewski, o almirante Jan Cornelisz Lichthart, e uma senhora da alta sociedade.(18) O pastor oficiante era provavelmente o rev. Daniel Schagen.(19)
            No fim de 1634 também Paraiba tinha se rendido aos invasores, recebendo inclusive a permissão de uns padres (menos os jesuitas) atenderem aos ofícios religiosos. Até o padre Manuel de Morais, S.J., passou (por enquanto) para o lado invasor. Desta forma ocuparam a faixa litoral desde o Rio Grande do Norte até o Cabo Santo Agostinho. A Espanha não podia ajudar muito devido grandes problemas na Alemanha (com o avanço do exército sueco para ajudar a reforma contra as tropas do imperador), perda de uma frota de prata de México (devido a um furracão), problemas em Ceilão, anos de seca em Portugal, etc.
            Orientado novamente por Calabar, os holandeses continuaram a expansão para o sul, e, em março de 1635, atacaram Porto Calvo, berço do próprio Calabar. Os defensores, sob Bagnuolo, fugiram para o sul e com a ajuda de Frei Manuel Calado do Salvador(20) os moradores da região se submeteram aos holandeses. Desta forma o Arraial ficou isolado e, depois de três meses, em junho, Arciszewski conquistou aquela fortificação lusa, os religiosos recebendo permissão a levarem suas imagens. Matias de Albuquerque tinha fugido para o sul com talvez 7000 moradores que preferiram acompanhá-lo do que ficar sob domínio flamengo. A única estrada pela região pantanosa de Alagoas que podia ser usado por carros de boi passava por Porto Calvo, mas nesta altura estava em poder do major Picard e de Calabar com uns 500 homens. Matias se viu forçado atacar a praça que teve de se render. Picard tentou salvar a vida de Calabar, mas infrutiferamente.(21) Um tribunal militar o condenou a ser enforcado e esquartejado como traidor. O frei Manuel o assistiu nas últimas horas e ao cair da noite do dia 22 de Julho de 1635 a sentença foi executada. Foi também enforcado um judeu, Manuel de Crasto, “homem de nação”, que estava aí a serviço dos holandeses. Poucas horas depois os portugueses continuavam sua retirada em direção à Bahia, levando consigo cerca 300 prisioneiros holandeses. Nenhum dos moradores cuidou de sepultar o soldado executado. Dois dias depois as forças combinadas do colonel Sigismund e de Arciszweski chegaram a Porto Calvo, e ficaram enfurecidos em achar os restos mortais do seu amigo Calabar empalados sobre as fortificações. Foram colocados num caixão e sepultados com honra militar. Querendo vingar-se na população lusa, foram dissuadidos disto por Calado,  “o frei dos óculos”, especialmente pelo motivo de que os holandeses precisavam dos “moradores da terra” para a plantação de açucar e da criação do gado.

3. Motivos

            Porque Calabar teria passado para o lado do invasor? Com esta pergunta entramos no campo de especulação histórica, pois não há índices concretos nos documentos, além de alusões vagas. Deve ter tido motivos claros e outros ocultos, motivos diurnos e noturnos.(22) Além disto devem ter existido forças que o empurravam para fora do círculo português e outros que o atraíam para dentro do campo holandês, forças centrífugas e centrípedas. Lembremos ainda que uma decisão desta geralmente não se toma de um dia para o outro. Havia motivos que se cristalizavam com o tempo, até algo causou o barril de pólvora explodir.
            Pensando na traição deste soldado, temos de lembrar que a época conhecia muitos exemplos de “traidores”, e isto vice-versa. Os documentos dos dois lados testificam disto. Tinha soldados franceses a serviço da Companhia das Índias Ocidentais que passaram para o campo português devido à religião. E havia muitos judeus que fizeram a mesma viagem em direção oposta pelo mesmo motivo. O “vira-casacos” holandês mais conhecido talvez era o capitão Dirk van Hooghstraten que, em 1645, entregou a fortaleza no Cabo Sto. Agostinho aos portugueses por um bom dinheiro (que não tinha recebido ainda quatro anos depois).(23) Havia pessoas que trocaram de campo até duas vezes, e entraram na história com honras, como o padre jesuita Manuel de Morais e o próprio João Fernandes Vieira. O primeiro tinha liderado os índios na resistência contra o invasor, mas passou para o campo do inimigo depois da queda de Paraíba. Foi enviado a Holanda onde se casou com uma holandesa e, para ajudar nas despesas, cobrou a Companhia pela sua ajuda prestado no Brasil. Depois de alguns anos deixou mulher e filhos, voltou para o Nordeste e passou de novo para o campo católico romano. Quando foi preso pela inquisição defendeu-se habilmente diante dos seus inquisidores, insistindo que nunca tinha quebrado suas promessas sacerdotais, mas, não reconhecendo o matrimônio herético, somente tinha se amancebado com mulheres reformadas.(24) João Fernandes Vieira por sua vez ajudou um conselheiro holandês achar o tesouro interrado do seu antigo patrão português, e conseguia crédito e mais crédito da Companhia até, em 1645, proclamar a “guerra da liberdade divina” para livrar o Brasil dos heréticos a quem ele ficou devendo 300.000 florins, importância altíssima para a época.(25) De fato, em tempo de guerra, a traição está “no ar.”
            Revendo estes poucos exemplos, podiamos postular que a interpretação mais simples para  o caso de Calabar seria a econômica. Calabar teria passado por dinheiro. Mas tudo indica que ele não precisava disto, e que tinha propriedades e gado em Alagoas. Nem por isso, um bom dinheiro teria sido bem vindo. Porém, através dos anos, não há nenhum índice disto nos documentos, nem a mais ligeira referência como nos outros casos de peso. Quiçá, o Waerdenburch já tivesse ofertado título de major a ele em caso de passar, mas isto seria mais motivo de honra do que econômico.(26)
            Uma interpretação bem mais provável era esta questão de honra, especialmente na área étnica. Por ser mestiço, e não português “de sangue puro”, Calabar, de certa forma, era um “underdog”, embora que algumas pessoas teriam certa dificuldade de reconhecer isto atualmente.(27) Felício bem pode ter razão quando faz o napolitano Conde Bagnuolo, insultar Calabar, dizendo “negro ...”  Seria até o estopim que o fez sair do acampamento Arraial do Bom Jesus e passar para os holandeses. Por outro lado este mameluco deve ter observado como os holandeses tratavam melhor os seus escravos(28) e os índios mesmo com respeito, chamando-os até de  “brasilianos” como os primeiros moradores do vasto Brasil.(29)
            Ou teria sido inclusive por motivos religiosos? Representantes do pensamento reformado como o presbítero holandês Waerdenburch, reconhecidamente um homem de Deus, ou o alemão Von Schoppe, ou o polonês Arciszewski, devem ter tido uma influência neste sentido. Será que Calabar leu o livro de Carrascon, ou o “O Católico Reformado” de Perkins, livros que já estavam circulando no Nordeste e pelos quais o frei Calado avisava constantemente os seus fiéis? Anos depois ele se lembrava, que se não tivesse ficado em Porto Calvo “os pusilânimes haviam de ter titubeado na fé, e haviam de estar envoltos em muitos erros e heresias. Porquanto os predicantes dos holandeses haviam derramado por toda a terra uns livrinhos que se intitulavam O Católico Reformado em língua espanhola, composto por Fulano Carrascon, cheios de todos os erros de Calvino e Lutero, e persuadiam os ignorantes (e ainda aos que não eram) de que a verdadeira religião era a que naqueles livros se ensinava.”(30) O batismo do filho é um indicador nesta direção, pois Calabar podia ter passado para o lado holandês sem filiação à igreja reformada (o que não era possível na direção oposta). Pois, teria sido considerado amigo e aliado valioso da mesma forma como os tapuias ou os judeus.
            Ainda há o ponto da segurança. Calabar deve ter calculado o perigo que estava correndo. Será que ele teria tido medo de ser abandonado depois pelos holandeses? Creio que não. Intimamente ele deve ter tido certeza que não seria como Frei Calado sugeriu, que os holandeses “se servem (dos ajudantes deles) enquanto os hão mister, (mas) no tempo da necessidade e tribulação, os deixam desamparados e entregues à morte.”(31) A  proteção dado posteriormente aos seus aliados judeus e índios e a resistência de se render finalmente aos portugueses (atestado pelo próprio Calado),(32) não é provável que isto tenha acontecido. Mas, pela última vez em Porto Calvo, com lenha amontoada debaixo da casa forte pelos sitiantes para queimá-los, o próprio soldado Calabar sabia que era impossível de escapar com vida, e, querendo poupar as vidas dos seus amigos e subordinados, deve ter pedido que cuidassem bem da sua família, e que ia se entregar sozinho. De fato, o governo cuidou bem da família do seu nobre major, pois a sua viuva passou a receber para cada um dos seus três filhos menores o salário de um soldado, num total de 24 florins mensais, equivalente ao salário de um mestre-escola, o que não acontecia com a família de pastor tombado no serviço da Companhia.(33) Por outro lado, o próprio major Alexandre Picardt deve ter ficado arrasado com o triste fim do colega, e nós o encontramos depois se recuperando na casa do seu irmão pastor em Coevorden.(34)
            Pessoalmente creio que a descrição de João Felício dos Santos seja a mais perto da resposta que se esconde na neblina da história. É o motivo do amor à terra natal. Para Felício este amor à sua terra era patente em todas as fases da vida do soldado, quem sabe um desejo para realmente ver “Ordem e Progresso” no Brasil, um sonho de um servir, não a si mesmo, mas à comunidade com justiça e paz. Como menino, o romance faz Calabar estudar em colégio de Jesuitas onde se ensina uma obediência incondicional à coroa católica de Castela, mas faz-o responder que somente deve obediência à sua mãe e à terra brasileira. Como jovem, ele percebe que o holandês ama o Brasil pela construção e limpeza do Recife, (e podia ter acrescentado pelas idéias de melhoramentos como ensino primário generalizado, rios mais limpos, proibição da corte do pau-brasil e do cajueiro, etc.). E, finalmente, Felício faz Calabar adulto dizer ao frei Calado, seu confessor, defendendo-se do termo traidor: “São partidários dos flamengos todos os que querem esta terra farta e acarinhada, sejam eles de que nação forem”.(35)  Provavelmente era basicamente isto que Chico Buarque queria enfatizar, no ano 1973, com sua peça teatral musical “Major Calabar”.(36)
            Mas, na verdade, à pergunta “Por quê Calabar passou?” temos de responder finalmente com um “non liquet”. Até o grande Barlaeus não menciona nenhum motivo, mas diz somente que Calabar abandonou “o partido do rei pelo nosso” e menciona a morte terrível dele.(37) De fato, não sabemos. Na velha Roma os juízes podiam usar seu “NL” sem constrangimento. Era uma placa com duas letras, “NL”, quer dizer “non liquet”, isto é, o assunto não está claro (líquido). Se, depois de ouvir as testemunhas, o caso não estava claro ainda, eles erguiam as suas plaquinhas “NL” na hora da votação. Não era um atestado de ignorância, nem prova de indecisão, mas de juizo. Era um sinal humilde que estavam no limite da interpretação honesta dos dados conhecidos. Precisamos ter sabedoria e coragem para erguer o “NL”, pois o sábio conhece o tempo e o modo (Eccl. 8:5). No caso do major Calabar, não sabemos mesmo; provavelmente era um mixto de motivos com o amor à sua terra natal como Leitmotiv, pois “o coração tem razões que o próprio coração desconhece” (Blaise Pascal).

                                                                                                          Frans L. Schalkwijk
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(1) A fonte principal deste periodo do lado português é Duarte de Albuquerque Coelho, Memórias Diárias da Guerra do Brasil, 1630-1638 (Madrid, 1654; Recife: Secr. do Interior, 1944). Do lado holandês J. de Laet, Iaerlijck Verhael (‘s-Gravenhage: Linschoten Vereniging, 1931-1937; trad. História ou Annaes dos feitos da Companhia Privilegiada das Índias Occidentais desde o seu começo até o fim do ano de 1636 (Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. 1916-1925, 2 vol.).
(2) Frei Manuel Calado do Salvador, Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade (Lisboa, 1648; Recife: Cultura Intelectual de Pernambuco, 1942; 2 vol.), I, p. 48. João Felício dos Santos, Major Calabar (São Paulo: Círculo do Livro, s.d. [1a. ed. 1960]; ed. integral); romance histórico com várias liberdades históricas (faz Maurício de Nassau filho do “stadhouder” da Holanda, etc).
(3) Naquela época, os Países Baixos, pertencentes à coroa da Espanha, englobavam Bélgica e Holanda, com capital Bruxelles. A palavra “flamengos”, freqüentemente usada para “holandeses”, se refere propriamente aos moradores do norte da atual Bélgica. Cf. a história sociológica do Dr José Antônio Gonçalves de Mello, Tempo dos Flamengos (Recife: Secr. de Educação e Cultura, 1978).
(4) C.R. Boxer, Os Holandeses no Brasil, 1624-1654 (São Paulo: Ed. Nacional, 1961; trad. de The Dutch in Brazil, 1624-1654 [London: Oxford University Press, 1957], p. 45. Em 1630 havia 137 engenhos de açucar, com uma produção de 700.000 arrobas, ou seja 10.500.000 quilos por ano. O livro de Boxer dá um ótimo resumo da história geral da época. Evaldo Cabral de Mello, Olinda Restaurada. Guerra e Açucar no Nordeste, 1630-1654 (Rio de Janeiro: Forense-Universitária/ São Paulo: Universidade de São Paulo, 1975).
(5) Pamfleto De Portogysen goeden Buyrman (O bom vizinho Português; Lisbon: Drucksael daer uyt-hangt het Verradich Portugael, 1649. Sic: Lisboa? Sala de Gráfica com a placa Portugal Traidor? ), p. 13.
(6) José Honório Rodrigues, Civilização Holandesa no Brasil (Rio de Janeiro: Ed. Nacional, 1940), p. 169: “capa cultural.” Cf. E.van den Boogaert, ed., Johan Maurits van Nassau-Siegen, 1604-1679. A humanist Prince in Europe and Brazil. Essays on the occasion of the tercentenary of his death (‘s-Gravenhage: The Johan Maurits van Nassau Stichting, 1979).
(7) C.R. Boxer, The Dutch Seaborne Empire (London: Hutchinson, 1965), p. 108.
(8) Pamfleto Veroveringh van de Stadt Olinda (Conquista da Cidade de Olinda; Amsterdam: J. Luyck, 1630). Rev. J. Revius, Biechte des Conincx van Spanjen (confissão do rei da Espanha mortalmente doente pela perda de Pernambuco; S.l.: s.e., 1630): “mea gravissima culpa.”
(9) Instrução do almirante Lonck de 1/8/1629 sobre “onze rechtvaardige oorlog” (nossa guerra justa contra a Espanha; na caixa 2 do arquivo da Oude West-Indische Compagnie guardada no Algemeen Rijks-Archief na Haya, depois: ARA-OWIC). Sobre a questão da liberdade religiosa durante esta época, veja Frans L. Schalkwijk, Igreja e Estado no Brasil Holandês, 1630-1654 (2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1989), p. 335-458.
(10) F.J. Moonen, Holandeses no Brasil (Recife: Univ. Federal de PE, 1968), p. 53.
(11) E. Fischlowitz, Christoforo Arciszewski (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1959).
(12) De Laet, Verhael, II, p. 143.
(13) Cf. F.A. Pereira da Costa, Anais Pernambucanas, III, 1635-1665 (Recife: Arquivo Público Estadual, 1952-1966, 10 vol.), p. 12-19.
(14) Boxer, Holandeses, p. 63, nota 27.
(15) Veja nota 1.
(16) Os protestantes, inclusive o pastor João Ferreira de Almeida, insistiram que não pertenciam a uma nova seita, mas à igreja “católica reformada”. Será que Calabar leu inclusive o livro deste nome por William Perkins ou o de Thomas Carrascon? Cf. Schalkwijk, Igreja e Estado, p. 230-235.
(17) Frei Calado chama Calabar de “mancebo mameluco, mui esforçado e atrevido” que travou amizade com Von Schoppe tomando-o “por compadre de um filho que lhe nasceu de uma mameluca, chamada Bárbara, a qual levou consigo e andava com ela amancebado.” Calado não reconheceu o matrimônio protestante (Calado, Valeroso Lucideno, I, p. 32, seguido por J.B.F. Gama, Memórias Históricas da Província de Pernambuco [Recife: Secr. da Justiça/Arquivo Público Estadual, 1977, 2a ed. 2 vol.], t1, p 239).
(18) Magtelt Daays. “Doopboek”, Livro de Batismo da Igreja Reformada do Recife (1633-1654), no Gemeente-Archief Amsterdam, arquivo do Presbitério de Amsterdam (GAA-ACA 52), publ. por C.J. Wasch, Nederlandsch Familieblad, 5 e 6 (1888-1889). Engana-se o romancista em fazer a Bárbara e o filho morrer em 1631 (J.F. dos Santos, Major Calabar, p. 97 e 102).
(19) Pastores no Recife no ano 1634: Christianus Wachtelo 1630-1635; Daniel Schagen 1634-1637, este mais ligado ao exército.
(20) Sobre Calado, J.A.G. de Mello, “Frei Manuel Calado do Salvador”, Restauradores de Pernambuco (Recife: Impr. Universitária, 1967). Religioso da ordem de S. Paulo.
(21) Engana-se frei Raphael de Jesus, Castrioto Lusitano (Lisboa, 1679; Recife: Ass. Legislativa de PE, 1979 [repro. da ed. Paris: Aillaud, 1844]), p. 115: “não fez o flamengo grande diligência para defender o traidor.” Salvá-lo era impossível.
(22) Ruy dos Santos Pereira, Piso e a Medicina Indígena (Recife: Inst. Histórico Pernambucano e Univ. Fed. de Pernambuco, 1980), p. 23.
(23) Pedidos de Hooghstraten ao Conselho Ultramarino em Lisboa para pagar o soldo prometido (Lisboa, Arquivo Histórico Ultramarino, cod. 14:88 e 278:230v, de 28/9/1647 e 25/2/1649).
(24) Boxer, Holandeses, p. 380-382. Muitas referências nos documentos holandeses.
(25) J.A.G. de Mello, João Fernandes Vieira (Recife: Impr. Universitária, 1967, 2 vol.), I, p. 105-127.
(26) J. F. dos Santos, Major Calabar, p. 107, 113-115.
(27) C.R. Boxer, Race Relations in the Portuguese Colonial Empire, 1415-1825 (Oxford: Clarendon, 1963), p. 86-130.
(28) Compare sobre o tratamento dos escravos as instruções por João Fernandes Vieira e as por Nono Olferdi para os novos colonos no Sergipe, Schalkwijk, Igreja e Estado, p.74, nota 81.
(29) Talvez fosse bom usar de novo este nome honorífico como coletivo para todas as nossas tribos indígenas em geral. “Brasilianen”, passim nos documentos holandeses para as tribos tupis (como tupinambás, potiguaras, sergipes, etc.), distinguindo-os dos tapuias (nhanduis, cariris). Os (luso-) “brasileiros” eram chamados “portugueses” ou “moradores”.
(30) Calado, Valeroso Lucideno, I, p. 168s.
(31) Calado, Valeroso Lucideno (1648), I, p. 46. Opinião copiada ao pé da letra por Diogo Lopes Santiago, História da Guerra de Pernambuco (1660?; Recife: Fundarpe, 1984), p. 92.
(32) Calado, Valeroso Lucideno, II, p. 241: “se não foram os judeus ...”. Pamfleto Portugysen, 13.
(33) Nótulas Diárias do Governo no Recife, 13 de abril de 1636. Cf. a viuva Stetten e seu filhos, ajuda provisória (Nótulas Diárias 12/7/1647), suspendida em Junho 1650 (carta da dona Raquel à Stetten ao pastor P. Wittewrongel de Amsterdam, Recife, 18/5/1652 (GAA-ACA 88,4, p. 167-169).
(34) G. Groenhuis, De Predikanten (Groningen: Wolters-Noordhoff, 1977), p. 36.
(35) J.F. dos Santos, Major Calabar, p. 99, 101 e 205.
(36) A peça “Major Calabar” de Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra, foi proibido em 1973 pelo governo militar, mas liberta em 1980. O alvo era ridiculizar a propaganda política do sesquicentenário da independência, e debater o nome de “traidor” (Veja, 14/5/1980, p. 60ss.).
(37) Gaspar Barlaeus, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil (Amsterdam, 1647; Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980), p. 39.


A COLONIZAÇÃO HOLANDESA NO BRASIL

Os holandeses só se fixaram à força no Brasil, e ficaram por aqui colonizando o Nordeste de nosso país durante 24 anos, devido a alguns acontecimentos históricos que acabaram transformando os antes principais aliados comerciais de Portugal, em inimigos que travaram grandes batalhas pelo domínio da Bahia, Pernambuco, Maranhão e Rio Grande do Norte.

Os holandeses participavam ativamente do transporte da cana produzida nas colônias portuguesas, como também do seu refino e a comercialização do produto final no rendoso mercado europeu. A Espanha dominava o que hoje são os Países Baixos (Holanda e Bélgica), regiões da Itália (Sardenha, Nápoles e Sicília), além de colônias nas três Américas, na África e no oriente.

Em 1578, o rei de Portugal Dom Sebastião morreu na Batalha de Alcácer-Quibir, na África, onde os portugueses foram derrotados pelos Árabes. Dom Sebastião não tinha filhos e, por esse motivo, seu tio-avô, o já idoso Cardeal Dom Henrique, assumiu o trono português. Dom Henrique morreu dois anos depois, em 1580, deixando novamente sem dono a Coroa Portuguesa.



Surgiram vários pretendentes querendo ocupar a posição de rei de Portugal, entre eles, figuravam em destaque os dois principais candidatos, que eram o poderoso rei da Espanha, Felipe II, e um certo Dom Antônio, unânime preferido do povo português. O rei Dom Henrique, em seu leito de morte, não quis coroar Dom Antônio, facilitando o caminho para que o rei espanhol Felipe II passasse também a ser o rei de Portugal.


Pouco antes do rei Dom Henrique morrer, o povo português cantava o seguinte corinho nas ruas: “Viva el-rei Dom Henrique, no inferno muitos anos, por deixar em testamento, Portugal aos castelhanos”.
Felipe II chegou ao trono português porque era neto, pelo lado materno, do rei português Dom Manoel, conhecido também como O Venturoso. Pelo lado paterno, Felipe II descendia da casa real da Áustria, ou família Habsburgo, que realizou uma série de casamentos no século 16 visando interesses políticos. Dessa forma, os Habsburgo conseguiram reunir um imenso território que abrangia porções de terra em todos os continentes. Com a nomeação de Felipe II para ocupar o trono lusitano, Espanha e Portugal formaram a União Ibérica (1580 – 1640), dominada pela Dinastia Filipina.
O poderoso rei espanhol Felipe II, que acabou anexando Portugal por meio da União Ibérica, ...
e o escudo de sua família real, os Habsburgo, que dominou regiões em todo o Globo. No brasão, é possivel observar em sua parte superior, o leão holandês, o Brasão de Portugal, as águias germânicas e a bandeira da casa real da Áustria, além de símbolos de outros territórios do imenso reino de Felipe II
A Holanda, que também era dominada pela dinastia Filipina, declarou-se independente em 1581. Em represália, Felipe II proibiu todas as relações comerciais entre os holandeses e as colônias espanholas e portuguesas em todo o mundo, incluindo o Brasil.

Essa medida representou um forte golpe na economia holandesa, baseada em grande parte nas relações comerciais com a colônia brasileira. Para a nova classe social dominante holandesa, formada pelos ricos comerciantes de Amsterdã que ascenderam ao poder depois que a Holanda se libertou da Espanha, a principal prioridade foi recuperar o domínio do monopólio comercial do açúcar produzido no Nordeste brasileiro.
Foi nesse cenário que aconteceram as invasões holandesas no Brasil. Muitos historiadores consideram como a primeira tentativa de invasão holandesa no Brasil, a investida da expedição do almirante Olivier Van Noort, que em 1599, ao passar pelos arredores da entrada da Baía da Guanabara, na então Capitania do Rio de Janeiro, pediu apoio para obter suprimentos frescos e higienizar seus 4 navios, já que enfrentava um surto de escorbuto entre sua tripulação de 248 homens.


O governo da Capitania do Rio de Janeiro, obedecendo as ordens da metrópole luso-espanhola, não permitiu a aproximação dos quatro grandes navios holandeses, que foram repelidos por tiros de canhão da artilharia da Fortaleza de Santa Cruz da Barra.


Os holandeses comandados por Van Noort só conseguiram atracar mais ao sul, na praticamente deserta Ilha Grande/RJ, onde puderam finalmente higienizar suas embarcações.
O holandês Olivier Van Noort, que deu a volta ao mundo e enfrenttou um surto de escorbuto entre seus homens, quando passava pelo litoral do RJ, em 1599
A Holanda era uma das potências marítimas das Grandes Navegações nos séculos 16 e 17

Partiram do RJ e, já em 6 de fevereiro de 1600, cruzaram o Estreito de Magalhães e navegaram pelo oceano Pacífico, ao longo das costas do Chile e do Peru, onde saquearam e queimaram várias embarcações, algumas espanholas inclusive. Depois de cruzarem todo o Pacífico, chegaram às Filipinas, onde afundaram umas das principais embarcações espanholas da época, o galeão mercante San Diego, que naufragou pesando trezentas toneladas. Os destroços do navio foram encontrados em 1995, ainda carregados com um imenso tesouro em moedas de ouro e peças de porcelana.


O holandeses ainda saquearam as Filipinas e visitaram Java, antes de contornarem o Cabo da Boa Esperança, no Sul da África, e seguirem de volta para a Europa. Atracaram finalmente de volta a Roterdã, em 26 de agosto de 1601, só com um dos quatro navios iniciais, tripulado apenas por 45 sobreviventes dos 248 integrantes que começaram a expedição em 1598. Alguns historiadores atribuem a Olivier Van Noort a descoberta da Antártida nesta viagem.


A primeira invasão oficial holandesa no Brasil aconteceu em 1624. A poderosa Companhia das Índias Ocidentais, criada pela rica classe de comerciantes holandeses para dominar as colônias espanholas nas Américas, preparou uma imensa e poderosa esquadra para atacar a Bahia, porém, a notícia sobre os planos da invasão chegaram ao Brasil muito antes do fato acontecer.


O governador geral da Bahia, Diogo de Mendonça Furtado, tentou organizar uma resistência antecipada, mas a demora da chegada dos holandeses fez os preparativos para a defesa serem negligenciados.

Em 9 de maio de 1624, 26 navios comandados pelo holandês Jacob Willekens, com 1700 soldados e 1600 tripulantes abordo, entraram na Baía de Todos os Santos e tomaram Salvador em menos de 24 horas, diante de uma modesta e inútil tentativa de resistência. Muitos dos soldados portugueses que defendiam a costa brasileira abandonaram os combates na ocasião. Os holandeses tomaram 8 navios e atearam fogo em outros 7


O governador Diogo de Mendonça Furtado foi preso e embarcado para a Holanda. Os portugueses, mesmo com a ocupação Holandesa, fizeram questão de não reconhecer a perda do território. Dom Marcos Teixeira, então quinto bispo do Brasil, foi nomeado pelos portugueses como o novo governador da Capitania invadida.

Dom Marcos organizou a resistência contra os invasores. Como as forças portuguesas e brasileiras não tinham condições de travar uma batalha frontal com os holandeses, foi adotada a tática de emboscadas. O emprego do fator surpresa nos ataques possibilitou sucesso aos defensores locais. Morreram os holandeses Johan Van Dorth, comandante dos soldados invasores, e seu sucessor, Willem Schouten. Salvador passou a ser um cenário de confinamento para os holandeses completamente cercados. Os suprimentos chegavam pelo mar.


Em 1625, no fim de março, a Espanha enviou 52 navios ao Brasil (30 espanhóis e 22 portugueses), com cerca de 13 mil homens. Os holandeses foram obrigados a assinar a rendição. O governante holandês Hans Kijff aceitou as condições impostas: entrega da cidade de Salvador com toda artilharia, armas, munições, bandeiras e navios que estavam no porto; entrega de todo dinheiro, ouro, prata, jóias e escravos que estivessem na cidade ou nos navios; restituição de todos os prisioneiros; exigência de que os vencidos não lutariam contra a Espanha até chegarem à Holanda. Aos holandeses, foram prometidos navios, armas e mantimentos suficientes para o retorno à sua pátria.

A derrota na invasão da Bahia gerou imenso prejuízo aos cofres da Companhia das Índias Ocidentais, porém, as vultosas perdas econômicas foram compensadas quando o almirante holandês Pieter Heyn aprisionou uma esquadra espanhola com um dos maiores carregamentos de prata da História, durante viagem entre o México e a Espanha.


Todo o lucro obtido foi investido para financiar uma nova expedição invasora ao Brasil. O alvo foi a Capitania de Pernambuco, que era o maior centro açucareiro do Brasil Colônia.

O governador de Pernambuco, Matias de Albuquerque, preparou suas forças para resistir aos invasores, apenas com os recursos existentes em Pernambuco na época. A tropa de defensores era formada por apenas 27 soldados. Em 14 de fevereiro de 1630, uma esquadra de sessenta embarcações holandesas, com um total de 7 mil homens, chegou para colonizar Olinda.
Foram enviados reforços portugueses e espanhóis para a região. O governador Matias de Albuquerque tentou resistir em Recife, dando a ordem para queimar os armazéns e os navios que se encontravam no porto. Mesmo assim, Recife também foi dominada pelos holandeses. A aproximadamente seis quilômetros de Recife e Olinda, foi edificado um foco de resistência batizado de Arraial do Bom Jesus. Do local, partiam combatentes que, usando as mesmas técnicas de guerrilha empregadas anteriormente em Salvador, também conseguiram sitiar os holandeses em Recife.
A Espanha preparou uma esquadra para apoiar a resistência pernambucana. A Holanda também enviou reforços ao Nordeste brasileiro para intensificar a resistência. As duas forças navais se encontraram próximo à costa brasileira, e o combate terminou empatado, com grande perda de homens dos dois lados.
Ao fim desta batalha, os holandeses incendiaram Olinda e recolheram-se exclusivamente em Recife, onde permaneceram encurralados por dois anos, impossibilitados de ampliar seus domínios pelas emboscadas pernambucanas.
Os holandeses já cogitavam a desocupação de Recife, quando Domingos Fernandes Calabar, que até então havia lutado do lado pernambucano, passou a integrar as tropas holandesas. Calabar conhecia os pontos fracos da resistência pernambucana, como também todos os caminhos da região onde ocorria a luta. Era o trunfo que os holandeses precisavam para a virada nos rumos da batalha pelo rentável e valioso Nordeste açucareiro brasileiro.
O guerrilheiro mulato Domingos Fernandes Calabar, que mudou de lado, passando a apoiar a ocupação holandesa
Vitórias seguidas deram aos holandeses o controle sobre a Vila de Igaraçu, o Forte do Rio Formoso e até o Arraial do Bom Jesus, que era o quartel general da resistência portuguesa, e só foi conquistado pelas forças da Holanda após três meses de cerco e intensos combates.


A Espanha não enviou os recursos que os pernambucanos precisavam para impedir a edificação dos domínios holandeses. As forças defensoras de Pernambuco, formadas por cerca de 8 mil homens entre portugueses, índios e até espanhóis, recuaram para Alagoas. O holandeses só perderam a batalha de Porto Calvo, mas com ela, também se foi seu maior trunfo, Domingos Fernandes Calabar. Preso, Calabar foi enforcado e esquartejado alguns dias depois.
Calabar finou-se, mas os holandeses agora eram os senhores absolutos de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Nessa região, a Companhia das Índias Ocidentais idealizava a criação de uma imensa colônia de povoamento, como ocorreu nos Estados Unidos. A capital da denominada Nova Holanda seria a cidade de Recife.

Mapa do litoral nordeste brasileiro. A região em rosa foi dominada pelos holandeses. É curioso notar que algumas cidades da "Nova Holanda" tinham nomes diferentes daqueles que foram dados pelos portugueses: Natal RN, se chamaria Nova Amsterdã; João Pessoa PB seria Frederícia, e Aracaju possivelmente teria hoje o nome de São Cristovão

Pintura que retrata o Recife histórico, ...
onde as caracerísticas marcantes da arquitetura holandesa são facilmente observadas
Recife é consederada patrimônio artístico nacional, e patrimônio histórico cultural da humanidade
Em 1637, a Holanda enviou outro grande reforço a Pernambuco. Várias embarcações trouxeram o novo governador do Brasil Holandês. O conde João Maurício de Nassau-Siegen teve seu nome escrito para sempre na História do Brasil, graças ao melhor período da colonização holandesa por aqui, ocorrido durante seu governo.


João Maurício de Nassau-Siegen, administador holandes que idealizou a colonização inicial do Nordeste brasileiro nos mesmos moldes daqueles adotados nas colônias que se tornaram países ricos e desenvolvidos hoje em dia

Os territórios ocupados pelos holandeses tiveram Maurício de Nassau como capitão-general, almirante das forças de terra e de mar e governador. Nassau praticamente aniquilou a resistência dos pernambucanos, venceu as forças portuguesas de Alagoas, e atacou o Ceará e Sergipe. A Bahia só não foi ocupada outra vez porque seu governador, Pedro da Silva, resistiu desesperadamente auxiliado pelas forças do índio Antônio Felipe Camarão.

Em 1639, enquanto a Espanha enviava cerca de 1200 soldados como reforço, que desembarcaram no Rio Grande do Norte e percorreram cerca de 2400 quilômetros até a Bahia, Nassau e suas qualidades natas de administrador firmavam o domínio holandês em quase todo o litoral do Nordeste Brasileiro.


As guerras, porém, não permitiram que a Companhia das Índias Ocidentais lucrasse com a produção de açúcar, já que o conflito fez as produções dos engenhos caírem consideravelmente.

Os holandeses passaram a investir na conquista econômica plena da região. Maurício de Nassau estabeleceu ótimo relacionamento com os senhores dos engenhos, ao oferecer facilidades para a produção e o comércio do valioso açúcar. Os fazendeiros também tinham interesse em manter o funcionamento pleno de seus engenhos e comercializar facilmente seu açúcar produzido. Nassau facilitou tudo isso, criado condições para atender os interesses dos donos de engenho, concedendo-lhes créditos que possibilitaram a compra e a reativação de engenhos abandonados.
As primeiras moedas brasileiras foram cunhadas pelos holandeses em Pernambuco, no século 17
Na gestão de Nassau, Olinda foi reconstruída e, em Recife, foram erguidos os palácios de Friburgo e da Boa Vista, além de pontes, hospitais e orfanatos. Era um rumo de administração bem diferente daquele adotado pelos portugueses antes da ocupação flamenga. Nassau trouxe sábios, filósofos e estudiosos para desvendarem os segredos da flora e da fauna brasileiras. Pintores famosos como Franz Post e os irmãos Pieter também vieram e deixaram quadros que retratam a paisagem brasileira da época. O primeiro observatório astronômico do Brasil também foi construído no palácio de Friburgo.

A zona urbana de Recife no século 17, ...

assim como as riquezas da nova colônia, ...

foram retratadas nas obras dos mais famosos pintores holandeses da época, ...

trazidos por Nassau ao Nordeste brasileiro para registrarem o cotidiano da "Nova Holanda", num tempo em que ainda não existia a fotografia

Apesar de protestante, como todos os holandeses, Nassau deu liberdade de culto religioso aos católicos e aos judeus, e garantiu a participação política de brasileiros e portugueses por meio das Câmaras Municipais nos moldes holandeses, chamadas de Câmaras do Escabinos.

Em 1640, o domínio espanhol sobre Portugal caiu, e a Dinastia de Bragança passou a governar um território português novamente independente. Portugal e Holanda assinaram um acordo de não agressão por 10 anos. Ainda assim, Nassau atacou o Maranhão e o incorporou aos territórios holandeses no Brasil.


Nassau era contra a política administrativa da Companhia das Índias Ocidentais, e não concordava com a imposição de juros altos e a cobrança rigorosa dos empréstimos concedidos aos senhores de engenho. Nassau acabou afastado do cargo de administrador da “Nova Holanda” e voltou para a Europa em maio de 1644.


Sua ida pôs fim ao melhor período da ocupação holandesa no Brasil. A administração posterior fez renascer o ódio dos moradores do litoral nordestino contra os invasores, devido às cobranças sem piedade das dívidas dos senhores de engenho. Quem não pagava, tinha seus bens confiscados pelos holandeses.

Nassau se foi e, um ano depois de sua partida, a reação contra o domínio holandês recomeçou em Pernambuco. Em 1645, João Fernandes Vieira, um dos mais ricos habitantes de Pernambuco, liderou a insurreição formada por brancos, negros, índios, brasileiros e portugueses, a fim de expulsar os invasores.

O governo português, respeitando o acordo de não agressão contra os holandeses, não ofereceu, pelo menos oficialmente, apoio aos revoltosos brasileiros. O primeiro combate importante, que marcou o início da virada no cenário do conflito, aconteceu no Monte das Tabocas, onde os holandeses foram derrotados. Os pernambucanos também venceram em Serinhaém, Nazaré e Porto Calvo.


Em 19 de abril de 1648, os pernambucanos venceram a primeira batalha dos Montes Guararapes. Os holandeses, cercados em Recife, voltaram a receber seus abastecimentos exclusivamente por meio de navios que vinham da Holanda.

Em 19 de fevereiro de 1649, os holandeses tentaram romper o cerco a Recife, mas foram derrotados novamente na segunda batalha dos Montes Guararapes. As lutas duraram quase cinco anos, e a situação dos holandeses só piorou, até culminar com a necessidade de rendição.

Pintura de óleo sobre tela de Victor Meireles, onde a batalha final e decisiva ocorrida no Monte dos Guararapes é retratada
Brasão holandês da Batalha dos Guararapes

Em 26 de janeiro de 1654, o comandante holandês Sigismundo Von Schkopp assinava a rendição na Campina do Taborba. Terminava a ocupação holandesa no Nordeste brasileiro, depois de 24 anos.
O Brasil pode não ter tido a chance de que, em seu litoral nordestino, fosse desenvolvida uma colonização de povoamento como aconteceu nos Estados Unidos. Porém, o domínio holandês por duas décadas e meia, e a luta para expulsá-los tiveram significativas conseqüências para o Brasil:
Colaboraram para a urbanização na região litorânea. O Recife holandês tornou-se um dos mais importantes centros urbanos em todo o Brasil.
Favoreceram a manutenção da unidade territorial da colônia, e contribuíram decisivamente para o desenvolvimento do sentimento nacional.
Promoveram uma união mais efetiva entre os elementos étnicos formadores do povo brasileiro, unidos na causa comum de combater os invasores, e permitiram a realização de uma experiência social, que foi o nascimento da sociedade urbana de Recife, bem diferente da sociedade rural típica do Nordeste canavieiro.
De uma forma ou de outra, se a ocupação holandesa não conseguiu criar por aqui uma nação separada do Brasil, que hoje poderia ter os moldes dos países desenvolvidos do primeiro mundo, ela foi eficaz para o surgimento de um sentimento de unidade nacional que se solidificou e originou o que hoje se observa nos mapas como a expressão territorial geográfica unida que consolidou o Brasil.


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