As contribuições de Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros para os estudos do universo social e cultural do sertão nordestino
RESUMO: Este artigo tem o objetivo de tecer algumas reflexões sobre dois temas relevantes da obra de Luitgarde O. C. Barros: o catolicismo popular e o cangaço. Temas centrais para o entendimento do universo simbólico do sertão nordestino.
Palavras-chave: Luitgarde O. C. Barros; catolicismo popular; cangaço.
ABSTRACT: This article has the objective of weaving some reflections about two importants themes of word of Luitgarde O. C. Barros: the popular catholicism and the cangaço. Central themes for the understanding of symbolic of sertão Brazilian Northeast.
Keywords: Luitgarde O. C. Barros; popular catholicism; cangaço.
Introdução
A antropóloga alagoana Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, nascida em 22 de dezembro de 1941, faz parte da geração de estudantes universitários formados em plena Ditadura Civil-Militar. Num contexto político e social de
efervescênciaii, os estudos acadêmicos eram vistos por muitos alunos como parte da militância política. Sem fugir à “regra”, Luitgarde O. C. Barros se dedicou
aos estudos do universo social e cultural do sertão nordestino, remontando suas origens e buscando entender os movimentos insurgentes dos sertanejos.
Por isso, seus estudos durante o mestrado foram dedicados ao catolicismo popular nordestino. Seu mestrado foi concluído no ano de 1980, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), sob a orientação do Prof. Dr. Cândido Procópio Ferreira de Camargo. Nessa etapa da sua vida acadêmica, a antropóloga se debruçou sobre a religiosidade do sertanejo a partir da devoção ao Pe. Cícero. O título de sua dissertação foi A Terra da Mãe de Deus: Um Estudo do Movimento Religioso de Juazeiro do Norte, que teve sua primeira publicação, com o mesmo título, em 1988 pela editora Francisco Alves em coedição com o Instituto Nacional do Livro.
Ao retornar aos estudos acadêmicos na década de 1990, a autora continuou se dedicando ao universo sertanejo ao analisar o cangaceirismo como objeto de sua tese de doutorado. Sob a orientação da Profª. Drª. Josildeth Gomes Consorte, Luitgarde O. C. Barros defendeu a tese em 1997, pela PUC-SP. A tese
recebeu o título de A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão e foi publicada em 2000, pela editora Mauad em coedição com a FAPERJ. Assim, o presente artigo tem por objetivo traçar algumas considerações sobre dois dos temas mais relevantes na obra de Luitgarde O. C. Barros: o catolicismo popular e o cangaço. Temas centrais para o entendimento do universo simbólico do sertão nordestino. Esses estudos da antropóloga alagoana devem ser entendidos em conjunto, só assim é possível apreender o sertão do nordeste brasileiro na sua totalidade complexa e heterogênea.
“A mais gigantesca utopia”: a religiosidade popular do nordestino.
As pesquisas de Luitgarde O. C. Barros sobre a devoção popular ao Pe. Cícero foi desenvolvida durante a década de 1970, sendo concluída em 1980 quando defendeu sua dissertação de mestrado. Seus estudos não são uma etnografia típica, nem uma historiografia do Pe. Cícero, são, na verdade, uma antropologia historicista. A antropóloga reconstruiu o universo social e simbólico
do Juazeiro do Pe. Cícero a partir de uma vasta fonte documental (documentos
das esferas governamentais, documentos da Igreja Católica, literatura de cordel) e da memória oral dos devotos.
Em sua tese, o movimento religioso do Juazeiro do Norte é entendido como um movimento social, isto é, “como uma força social viva, expressão do possível histórico de camadas da população brasileira em suas relações sociais de produção da vida material e ideológica cotidiana, na construção de seu mundo material e espiritual, de seu universo simbólico” (Barros, 1988, p. 27). Seguindo o referencial teórico gramsciriano, a religião é entendida como uma forma específica de ideologia, sendo assim, é uma representação de mundo produzida pelos homens e mulheres em suas praxis cotidianas. “Enquanto ação essa praxis se volta para a produção material propriamente dita, ou para a explicação do todo vivencial” (Id, p. 93).
Numa sociedade dividida em classes, as ideologias construídas pelas classes dominantes são as ideologias dominantes. Assim, as classes dominantes podem exercer a hegemonia sobre a sociedade global. No entanto, as contradições sociais oriundas das relações de exploração e dominação
permitem, contraditoriamente, a emergência das ideologias das classes dominadas. No caso estudado pela antropóloga, o catolicismo é a ideologia dominante. “A Igreja no seu papel de direcionamento cultural e moral, mantenedor da forma vigente de organização social, exerce hegemonia defendendo (…) a sacralização da autoridade civil e eclesiástica” (Id, p. 94). Portanto, o movimento religioso do Juazeiro do Norte é uma expressão do catolicismo popular, ou seja, uma religião produzida no interior das classes sociais exploradas do sertão nordestino, distinta daquela produzida pela hierarquia da Igreja Católica.
Luitgarde O. C. Barros defende o conteúdo classista não só do movimento religioso do Juazeiro, mais também dos movimentos que originaram as comunidades de Canudos e Caldeirão. Suas pesquisas mostram que na segunda metade do século XIX o Padre Mestre Ibiapina inicia a sua missão pelo sertão nordestino, fundando a ordem dos beatos, responsável por decodificar as concepções de mundo do catolicismo popular, a partir do contato com as práticas e concepções religiosas da classe trabalhadora sertaneja.
Numa região de cultura integrada, como o sertão nordestino, com sua especificidade estrutural, esse contato, quando vivido coerentemente pelo intelectual católico como pelo menos intelectualizado seguidor, desenvolveu, naquele período de profundo abalo das convicções centenárias, um posicionamento muito mais próximo das tendências autonomistas e voltadas para a vida prática da concepção de mundo do catolicismo popular. Essa foi a tendência que galvanizou muitos dos padres ordenados no recém-criado seminário de Fortaleza. Alguns deles, como o Padre Cícero e outros padres sertanejos, haviam sido alcançados pela pregação do conteúdo utópico religioso, isto é, haviam conhecido a potencialidade revolucionária da utopia cristã. Libertada do idealismo teórico, fora traduzida por um pregador que fala a linguagem e sofre o sofrimento de seus seguidores. Esse missionário é o Padre Mestre Ibiapina, ordenado em Olinda sem passar pela formação do seminário. (Id, pp. 99-100).
Em suas pesquisas, a antropóloga alagoana conclui que não existem apenas traços comuns entre Antônio Conselheiro, de Canudos, Pe. Cícero, de Juazeiro do Norte, e José Lourenço, de Caldeirão, na verdade, existe uma relação orgânica entre esses três personagens da história nordestina. Fazem
parte do mesmo movimento social, cuja ideologia e práticas são manifestações históricas do catolicismo popular.
O movimento dos beatos entrou em conflito com a sociedade capitalista e, consequentemente, com a alta hierarquia da Igreja Católica que exercia o papel de intelectual orgânico do sistema dominante. A bem da verdade, própria hierarquia católica tinha a sua posição no bloco no poder ameaçada com a emergência da Maçonaria e da ideologia positivista. Essa cisão no bloco ideológico ocorreu especialmente a partir da década de 1850.
É o período em que começa a se estruturar uma pequena burguesia, com a formação de uma elite intelectual já atuante com a criação da Escola Central em 1858, formando os engenheiros militares, de papel altamente significativo na criação e difusão de ideologia para as camadas urbanas nas décadas sucessivas. É o início do desgaste progressivo na criação da Igreja no seu papel monopolístico de aparelho ideológico de Estado. (Id, p. 95).
Em meio a essa crise de hegemonia, o catolicismo popular, difundido e praticado pelos beatos, invertia a teologia da Igreja Católica no que diz respeito às promessas do juízo final.
As classes dominadas, quando galvanizadas pela ação dos movimentos religiosos, tentam atualizar esse tempo escatológico, realizar no ‘agora’ as promessas do bem comum. Manipulam a categoria de tempo anunciando a chegada dos ‘tempos prometidos’, o fim do mundo. É interessante que, esperando esse ‘fim do mundo’, não se quedam num imobilismo transcendental, mas, muito pelo contrário, partem para a ação de ‘plantar’ o novo mundo, de ‘construir’ a utopia do mundo do espírito santo. Como se tivessem consciência teórica do papel histórico do homem na construção material e espiritual de seu próprio mundo, não esperam a chegada de Deus construtor dessa ‘existência inefável’, mas fazem eles mesmos as suas ‘cidades santas’, as cidades longe do pecado. (Id, p. 144).
Luitgarde O. C. Barros defende que a ruptura entre a missão dos beatos e suas cidades santas com o sistema capitalista era profunda e irreconciliável. A antropóloga reproduz um depoimento de uma senhora ligada àqueles que
sobreviveram à chacina do Caldeirão: “Ali ninguém passava fome; não senhora! Era tudo irmão. Tudo trabalhando junto, rezando junto (…). Era tanto homem na roça, os paió tudo cheio, uma fartura que fazia gosto” (Id, p. 146). Esse depoimento mostra que a oposição entre o projeto dos beatos e a sociedade global não estava apenas na esfera ideológica, mas também na organização do sistema social. A antropóloga recorre as categorias gramscianas para explicar tal oposição, mostrando que os beatos eram intelectuais orgânicos das classes subalternas do sertão nordestinos
Nesse tipo de sociedade a negação da ideologia dominante se faz a nível estrutural e superestrutural numa relação orgânica em que os beatos aparecem como o elo entre estrutural e superestrutura – intelectuais orgânicos das baixas camadas que emigram para as cidades santas (Id, p. 157).
A tese de Luitgarde O. C. Barros se opõe tanto às teses que recorreram às categorias weberianas, quanto àquelas que utilizaram de maneira simplistas
às teorias marxistas sobre religião e sobre o campesinato.
O trabalho de Maria Isaura Pereira de Queiroz, O messianismo no Brasil e no mundo (1976), é a principal interpretação da religiosidade nordestina do século XIX que utiliza as categorias da Sociologia da Religião de Max Weber. O conceito de messianismo é empregado para explicar como em momentos de “crise” social, anômica ou não, é comum nas “sociedades rústicas” o surgimento de lideranças religiosas carismáticas capazes de aglutinar multidões em torno de suas mensagens de salvação. Apesar que uma resposta das classes dominadas às suas condições socioeconômicas, o messianismo não é um movimento social classista, pois, segundo Maria I. P. de Queiroz, tais movimentos seriam desprovidos de ideologias que coloquem em conflitos os interesses das diferentes classes sociais e que pudessem aglutinar as classes populares em projetos políticos. A conclusão é de que o messianismo é um movimento eminentemente conservador, porque seriam conservadoras as classes sociais onde ele se origina,
os comportamentos tradicionais não são mais seguidos, a ruindade dos homens (e não a ruindade de uma camada social superior) desviou-os da senda segura divinamente estabelecida. Por isso o messias foi enviado: para fazer com que os homens retomassem os bons costumes, e não para que mudassem os pobres de posição social (Queiroz, 1976, p. 324).
Por sua vez, Rui Facó, na obra clássica Cangaceiros e Fanáticos (1965), recorre à teoria marxista para estudar a religiosidade popular do sertão nordestino, entretanto, fica preso ao dogmatismo das interpretações do PCB sobre a sociedade brasileira. Por isso, apesar de Facó identificar o caráter de classe dos movimentos religiosos da população sertaneja, ele considera que a religiosidade popular como formas primárias de consciência, sendo os movimentos camponeses de Canudos e Contestado tipos de rebeliões inconscientes contra a “servidão da gleba”, contra o latifúndio.
Rui Facó entende as estruturas sociais e econômicas da sociedade sertaneja até as primeiras décadas do século XX eram pré-capitalistas, onde predominavam as relações semisservis e o latifúndio semifeudal. Essa perspectiva da história em etapas denuncia seu marxismo economicista, responsável pela sua desconfiança em relação aos movimentos religiosos e camponeses. Para Facó, seguindo as linhas de interpretação do PCB, somente o operariado urbano-industrial poderia ter uma verdadeira consciência de classe, restando aos camponeses movidos por sua religiosidade revoltas inconscientes. Ao afirmar que os beatos eram intelectuais orgânicos das classes populares do sertão nordestino (e também catarinense, no caso do Contestado) e considerar que os movimentos religiosos sob os auspícios do catolicismo popularam eram movimentos sociais, Luitgarde O. C. Barros rompe com a tese do messianismo de Maria I. P. de Queiroz, segundo a qual esses seriam movimentos policlassistas, e supera os limites da tese economicista de Rui Facó, onde o movimento religioso do camponês aparece como uma revolta inconsciente.
Munida do aparato teórico-conceitual gramsciano, Luitgarde Barros explica a Questão Religiosa de Juazeiro analisando a categoria de santidade do catolicismo popular, que, por suas características, diverge da noção de santidade da hierarquia católica. Em seu trabalho de campo ficou
evidente a relação entre santidade e a praxis do evangelho. O trabalho, o respeito ao homem, a proteção aos que sofrem, a igualdade, a ausência da fome, desprendimento de dinheiro, respeito às donzelas, boa convivência, humildade, equilíbrio de conduta, são essas as características da santidade. A prática dessa ética, isto é, uma vida nessas práticas, eis a decodificação da categoria de santo. (Barros, 1988, pp. 168- 169).
A antropóloga alagoana mergulha no universo cultural e religioso para explicar o título e “meu padrinho”, atribuído ao Pe. Cícero e a outros beatos, como José Lourenço, relacionando essa categoria com a de santidade.
O Padre Cícero foi padrinho de milhares de sertanejos, ‘meu padrinho’ para milhões de nordestinos. Antes de tudo ele foi o sertanejo que viveu os códigos de sua cultura, encarnou o protótipo, o modelo do padrinho protetor, reivindicando até a interferência divina para sê-lo. (…) Vivendo integralmente o papel cultural, recebeu dos afilhados o título honorífico, foi o “meu padrinho”. (Id, p. 173).
Começando sua missão no Juazeiro do Norte em 1872, Pe. Cícero passou a aglutinar multidões de sertanejos na terra da Mãe de Deus. Por isso, antes mesmo do milagre de 1889, Pe. Cícero já era considerado um “santo homem” pela população das classes subalternas do sertão nordestino; já tinha recebido o título de “Padim Ciço”.
O milagre ocorrido no Juazeiro tornou a missão do Pe. Cícero nacionalmente conhecida tendo, inclusive, repercussão no Vaticano. O milagre ocorreu durante as celebrações da Semana Santa de 1889, quando a beata Maria de Araújo recebeu a comunhão das mãos de Pe. Cícero a hóstia se transformou em sangue. A notícia do milagre corre o mundo e no Juazeiro cresce o culto ao Sangue Piedoso.
Para Luitgarde Barros o culto popular ao Sangue Piedoso deflagrou o conflito entre as concepções de mundo do catolicismo popular e a teologia da hierarquia católica. O alto clero, representado pelo então bispo do Ceará, Dom Joaquim José Vieira, se opõe ao culto popular e exige explicações do padre bem como o afastamento da beata do Juazeiro. Pe. Cícero ignora as ordens do bispo e ao fazê-lo deixa explícitas as diferenças nas concepções de santidade da religiosidade popular e da hierarquia eclesiástica: enquanto a santidade para o catolicismo popular significa a prática do evangelho, para a Igreja Católica significa subordinação e obediência à hierarquia do clero.
A tese da antropóloga alagoana sobre a Questão Religiosa do Juazeiro se difere da consagrada interpretação do sociólogo estadunidense Ralph Della Cava, cuja obra Milagre em Joaseiro foi publicada no Brasil em 1976. Para Della
Cava a Questão Religiosa se explica pelos conflitos no interior da própria Igreja Católica, que passava pelo processo de reforma – a romanização – em resposta à crise ideológica provocada pela ascensão da maçonaria e do liberalismo. Como os primeiros divulgadores do milagre foram padres e depois a alta hierarquia católica nega o milagre e condena o culto popular, isso mostraria, segundo Della Cava, uma cisão no interior da Igreja.
Apesar de Luitgarde O. C. Barros considerar o processo de romanização uma importante variável para explicar a Questão Religiosa do Juazeiro (Barros, 1988,
p. 99), ele é um fator secundário. Pois o conflito ocorre entre concepções de mundo antagônicas; conflito que fica cada vez mais nítido com a decisão da alta hierarquia católica de condenar as crenças populares.
O cerco ao catolicismo popular se fechava. As autoridades eclesiásticas, ciosas de seu mando, intransigentes, não admitem a existência de pregadores autônomos, de outros intérpretes do evangelho – os beatos. (Id, p. 235).
Com a proclamação da República a Igreja Católica se reposiciona no bloco no poder. Mantem seu papel enquanto aparelho ideológico, mas por outro lado perdeu espaço com a laicização do Estado brasileiro. Nesse novo contexto, a hierarquia católica concentra seus esforços para conter o catolicismo popular, isto é, para manter o seu papel na direção moral e ideológica das classes subalternas.
Como no movimento da contra-reforma, após esse abalo a Igreja busca uma reestruturação interna, um comando ainda mais efetivo de seus seguidores, uma homogeneidade mais palpável entre as diferentes camadas de seu universo de atuação. Nesse momento se apresenta como obstáculo maior à consecução desse objetivo, a tradição arraigada no povo, do catolicismo popular. Neste, predominando a praxis dos beatos como o principal fator de valorização da ideologia católica subvertedora do catolicismo oficial, é contra eles que se voltarão os cuidados, a ira e a repressão das autoridades eclesiásticas. (Id, p. 234).
Luitgarde Barros sustenta a tese de que as concepções e práticas do catolicismo popular, decodificadas pelos beatos e materializadas nas cidades santas do sertão, não eram uma ameaça apenas para a Igreja Católica e seu esforço de romanização, como defende Della Cava, mais sim uma ameaça ao sistema de exploração e dominação imposto pelas classes dominantes. Por isso, a reação e repressão não são ações isoladas do alto clero católico. O que se viu
foi a unidade do conjunto das classes dominantes, hierarquia católica, latifundiários, empresários urbanos, industriais, oficiais das forças armadas, positivistas, maçons, liberais, republicamos, grande empresa, políticos, enfim, uma ofensiva do conjunto das classes dominantes com o objetivo que conter os “fanáticos”. Os sertanejos adeptos do catolicismo popular foram transformados em ameaças à República pelos relatóriosiii do clero católico sobre a missão de Antonio Conselheiro. Assim a Igreja forneceu os argumentos para legitimar os massacres de Canudos, Contestado e Caldeirão.
A incapacidade do bloco no poder de solucionar os problemas do país, levava-o por seu lado, a buscar responsáveis pela situação angustiante da nação. (…) O relatório apontou um inimigo comum à Igreja e ao Estado, ameaçado pela população de fanáticos rebeldes – “um Estado no Estado”. (Id, p. 239).
A documentação reunida e analisada por Luitgarde Barros mostra que os conflitos armados foram resultantes do antagonismo inconciliável de diferentes concepções de mundo: o catolicismo popular dos beatos e o sistema capitalista. A comunicação entre o Pe. Cícero e Antonio Conselheiro mostra as relações orgânicas entre os beatos, do mesmo modo que a reação das elites quando o padre deixou Juazeiro do Norte, acusando-o de marchar para socorrer o Conselheiro, mostram o grau de consciência das classes dominantes de que estavam enfrentando uma ameaça ao seu status quo.
Mas o afastamento do Pe. Cícero de sua cidade foi movido pelo medo do
padre de que Juazeiro tivesse o mesmo destino de Canudos. Seu ato foi uma tentativa de mostrar obediência as ordens eclesiásticas, evitando a excomunhão e se mantendo como funcionário da Igreja. Com isso a profecia do Conselheiro se concretizou: Canudos sofreria três ataques federais e iria sucumbir, mas Juazeiro iria sofrer um “foguinho estadual” e sobreviver (Id, p. 239).
Diante da ofensiva sangrenta das classes dominantes, Pe. Cícero inicia a construção de uma ampla rede de alianças, se aproximando de irmandades religiosas que gozavam de relativa autonomia e prestígio eclesiástico, como os Padres Salesianos, faz alianças com chefes políticos, se filia ao Partido Conservador, torna-se senhor de terras. Assim, conclui Luitgarde O. C. Barros
os ataques não serão mais desfechados contra um pobre e humilde pároco suspenso de ordens, mas contra um poderoso senhor de terras e dinheiro. O Juazeiro não será apenas um reduto de fanáticos, fácil presa dos choques de ambição, será o lugar símbolo de um extenso universo de crenças, a capital de um país cultural incluso na sociedade mais ampla. (…) Pela nossa perspectiva essa ação é produto de um planejamento do padre. Consciente da recusa da Igreja em aceitar os milagres,
do risco que corre juntamente com seus seguidores, procura elaborar um esquema de sobrevivência que lhe garanta ao mesmo tempo a permanência de Juazeiro como terra escolhida por Deus para a concentração dos crentes de baixa camada – na linguagem atual, o polo de concentração e sobrevivência do catolicismo popular, protegido contra a fúria da alta hierarquia católica, a salvo das investidas do Estado. (Id, p. 255).
De fato a estratégia do Pe. Cícero teve resultado: o Juazeiro do Norte assume o papel de centro de peregrinação de romeiros movidos pela fé no seu santo popular. Não é por menos que se pode ler notícias nos meus de comunicação no a seguinte manchete: “Juazeiro do Norte (CE) atrai número recorde de romeiros – Segundo secretário, 2,5 milhões de romeiros visitaram a cidade em 2011. Parte da população quer que cidade se chame ‘Juazeiro de Padre Cícero’” (G1, 22 de janeiro de 2012).iv Ou seja, apesar de todos os esforços violentos promovidos pelas classes dominantes, as crenças populares permanecem e possuem um centro de resistência.
Cangaço e antropologia da honra
Em mais um mergulho no universo social e simbólico do sertão nordestino, Luitgarde O. C. Barros desenvolve uma pesquisa de cerca de 30 anos sobre o cangaço, que no final de 1990 se tornou sua tese de doutorado. A obra A derradeira gesta – Lampião e Nazarenos guerreando no sertão foi construída seguindo metodologia semelhante aquela utilizada nos estudos sobre o catolicismo popular, recorrendo à memória oral, à literatura de cordel, aos documentos da época e à imprensa, mas a antropóloga introduziu a literatura como uma fonte de interpretação do universo simbólico estudado. Assim, o entendimento do sertão conflagrado passa tanto pelo geógrafo Josué de Castro, quanto pelo escritor Guimarães Rosa e pelo poeta Ulysses Lins de Albuquerque. O tema do cangaceirismo foi abordado pela academia brasileira a partir, especialmente, das teorias do banditismo social, com destaque para os trabalhos de Rui Facó, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Abelardo Montenegro. A teoria do banditismo social ganhou mais força com a publicação no início da década
de 1970 da obra Bandidos de Eric Hobsbawn, que define o banditismo social nos seguintes termos:
O ponto básico a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais, encarados como criminosos pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa e são considerados por sua gente como heróis, como campeões, vingadores, paladinos, justiceiros, talvez até mesmo líderes da libertação e como homens a serem ajudados e apoiados. É essa ligação entre o camponês comum e o rebelde, o proscrito e o ladrão que torna o banditismo social interessante e significativo. (Hobsbawn, 1976. p. 11).
Assim, Lampião e Pancho Villa são interpretados a partir dos mesmos parâmetros – banditismo social – , tendo o mito de Robin Hood como referência. Foi construído um mito que Luitgarde Barros desconstrói ao longo de sua obra.
Na acadêmica brasileira a tese de Facó (1965) é a principal interpretação do cangaceirismo como banditismo social. Em Cangaceiros e Fanáticos o banditismo e a religiosidade popular são entendidos como as duas fases da mesma moeda: a revolta das classes camponesas à exploração do latifúndio, num contexto de crise do sistema de produção e de relações de trabalho pré- capitalistas. Nas palavras do autor:
E eram eles – cangaceiros e “fanáticos” – os elementos ativos de uma transformação que prepara mudanças de caráter social. Eles subvertem a pasmaceira imposta pelo latifúndio durante séculos, provocavam choques de classes, lutas armadas, preparam os combates do futuro. Não são ainda a revolução social, mas são o seu prólogo. São os elementos regeneradores daquela sociedade estagnada, em processo de putrefação. Revivem-na, dão-lhe sangue novo, põem-na em movimento, preparam-na para o advento de uma nova época. São ainda o elemento unificador por excelência de uma região – mais do que o Nordeste, todo um imenso território interiorano – que se desagregava dentro de si mesma, em feudos quase fechados e paralisados. (Facó, 1965, p. 37).
José de Souza Martins, importante estudioso do campesinato brasileiro, reproduz essa linha de interpretação de Facó:
O banditismo e misticismo não se excluíram. Um líder messiânico, como o Padre Cícero de Juazeiro do norte, Ceará (1870-1934), uma região que produziu muitos jagunços, tornou- se célebre pela ascendência sobre camponeses pobres e sobre jagunços e cangaceiros. Foi ele quem em 1926 tentou armar Lampião para lançá-lo contra a Coluna Prestes. (Martins, 1986, p. 61).
Como sertaneja e militante da causa sertaneja, Luitgarde O. C. Barros não poderia aceitar tal afirmação. Por isso, a antropóloga estuda o cangaço a partir da guerra entre Ferreiras, os irmãos Antonio, Virgulino e Levino que ingressaram no cangaço, e Nazarenos, moradores do povoado de Nazaré (Pernambuco) que se dedicaram ao combate ao cangaço. De lado opostos, Ferreiras e Nazarenos são protagonistas numa guerra sertaneja que se estendeu entre 1919 e 1938, são símbolos de um sertão fragmentado e conflagrado.
Iguais na produção da vida material, diferenciados na orientação e no rearranjo de valores dos códigos culturais, Ferreiras e Nazarenos representam, alegoricamente, as transformações vividas pela sociedade sertaneja no período recortado, espaço e tempo do palco de suas lutas. (Barros, 2000, p. 50)
Protagonistas da derradeira gesta sertaneja, Ferreiras e Nazarenos personificaram valores e padrões de comportamento do universo cultural do sertão nordestino, ora reafirmando-os, ora rompendo-os. Trata-se de valores como honra e defesa da honra; valentia e coragem; destreza e astúcia; o “bem viver” e a “arte do bem guerrear”. Ocupam, portanto, lugar de destaque entre tantos outros personagens que fazem parte do universo simbólico e da memória coletiva dos sertanejos. Assim, Luitgarde Barros procura decodificar esses
símbolos da cultura sertaneja para em seguida apresentar Ferreiras e Nazarenos não como mitos, mas sim como um agentes sociais, produtos de seu meio e sujeitos da suas próprias histórias.
Para desmistificar Lampião, a antropóloga alagoana começa desmistificando as visões sobre o sertão e o sertanejo, sobre as classes sociais que formavam o sertão daquele período e sobre o cangaço. O sertão, tanta vezes interpretado como uma realidade homogênea, assume nas páginas da obra a Derradeira Gesta as formas e o conteúdo de uma realidade heterogênea e dinâmica, bem como o sertanejo aparece em toda a sua diversidade e complexidade.
Cientificamente analisando o sertão enquanto realidade geo- climática, tem-se um panorama do locus natural, o cenário onde se constróem histórias-dramas, tragédias e tragédias e comédias; lutas-vitórias e frustrações, sonhos de homens singulares numa sociedade original. Por isso não falo do sertanejo abstração teoricamente construída, mas de homens e
mulheres, crianças, jovens, adultos e anciãos, que viveram uma saga numa época, nesse lugar. Esse é ao mesmo tempo um
espaço analisado pela ciência e trabalhado materialmente pelo homem, e um mundo construído pelo imaginário, guardado na memória, permeando o cotidiano, povoando o presente com
vívidas ou esmaecidas imagens do passado (Id, pp. 66-67).
A estratificação social do sertão nordestino é normalmente simplificada em interpretações presas à oposição entre senhores e escravos e/ou entre o latifúndio semifeudal e o camponês semisservil, com uma presença incipiente de trabalhadores livres (Id, p. 104). Tais interpretações, segundo a autora, acabam negligenciando a complexidade das classes e frações de classes em conflito na sociedade sertaneja. Luitgarde Barros destaca o papel das frações intermediárias, formadas pelos pequenos proprietários, comerciantes e artesãos. Sendo que Ferreiras e Nazarenos são oriundos dessa camada social de “remediados” (Id, p. 105).
Também é comum a academia afirmar ser o cangaço um fenômeno social típico do semiárido nordestino, que perdurou mais ou menos da segunda metade do século XIX até a década de 1940. Entretanto, a antropóloga encontrou registros do cangaceirismo em Minas Gerais e em Goiás, ou seja, para além das fronteiras da caatinga nordestina.
A principal crítica de Luitgarde Barros é direcionada às abordagens do cangaço como banditismo social. A já citada tese de Facó coloca o cangaço ao lado do “fanatismo”, como expressões do conflito entre as classes antagônicas do sertão nordestino num contexto de crise do latifúndio semifeudal. Todavia, defende Luitgarde Barros, o catolicismo popular e cangaço são incompatíveis, constituindo práticas e concepções de mundo opostas. O catolicismo popular, levado às últimas consequências pelo projeto dos beatos, forjou o ethos do trabalho e do “bem viver”, longe da miséria e da violência impostas pelas classes dominantes (Id, p. 125). Por sua vez, o cangaceirismo constituiu uma forma individual de ascensão social pela violência (Id, p. 244), ao mesmo tempo que fez parte dos mecanismos de acumulação e dominação das elites nordestinasv. “A sustentação logística, bélica, de apoio de imprensa, que o cangaço recebia, era fornecida pelos chamados setores avançados, homens progressistas da classe dominante” (Id, p. 268).
No episódio do confronto com a Coluna Prestes, a antropóloga comprova que ,que a decisão foi de organizar os cangaceiros para enfrentar os rebeldes foi do então Presidente Arthur Bernardes e do Ministro da Guerra, Marechal Setembrino de Carvalho, e a estratégia foi pensada pelo General Góes Monteiro (Id, pp. 288-291). Portanto, não se pode atribuir essa responsabilidade ao Padre Cícero.
O cangaço foi um dos fatores responsáveis pela desagregação da cultura e da sociedade sertaneja, juntamente com a seca, a fome e o latifúndio (Id. pp. 68-69). O cangaço, especialmente aquele sob a liderança de Lampião, promoveu constantes saques direcionados aos pequenos e médios proprietários, arruinando as suas economias (Id, p. 133); generalizou a violência, instrumento há muito utilizado pelas classes dominantes, e introduziu novas formas de tortura rompendo códigos de conduta da cultura sertaneja (Id, pp. 72- 74).
O mito de Virgulino que se tornou o cangaceiro Lampião para vingar o assassinato do pai, José Ferreira, foi em grande medida fortalecido pelos estudos acadêmicos e pelos meios de comunicação de massa. Mas, para Luitgarde Barros, aceitar a narrativa mítica significa retirar de Lampião sua condição de sujeito social, responsável pela suas escolhas e pela construção da sua história (Id, p. 117). Ao contrário, a antropóloga defende que Virgulino foi um agente ativo na construção do mito de Lampião. Conhecedor da cultura sertaneja, Lampião procurou construir um “escudo ético” para legitimar sua entrada no cangaço.
Confundindo datas, sequências de fatos, e acima de tudo recorrendo ao código sertanejo da vingança de sangue, Lampião justificou, para si próprio e o mundo, sua entrada no cangaço, para matar Zé Saturnino e José Lucena, como decisão tomada diante do pai e da mãe mortos. Esta legitimação dos próprios atos utilizando elementos da cultura sertaneja como valentia e obrigação de vingança para limpar manchas desonrosas ou corrigir injustiças, foi amplamente utilizada por todos os cangaceiros, principalmente Lampião (Id, p. 127).
Com o objetivo de encontrar o “homem” por detrás do mito, Luitgarde Barros entrevista homens e mulheres que conheceram Virgulino ainda na juventude, na década de 1910. Cruzando os depoimentos com a documentação disponível, a autora chega as seguintes conclusões sobre os fatos que precederam a transformação de Virgulino Ferreira em Lampião. Os Irmãos Ferreiras, atuando como volantes na região de Serra Talhada (PE), se desentendem com José Saturnino (Zé Saturnino) e iniciam uma saga para vingar sua honra com sangue. Para afastar os filhos dessa sina de sangue, José Ferreira se muda com a família, sendo acolhido pelos Nazarenos. Já no ano de 1919 Virgulino é reconhecido como membro de um bando de cangaceiros, liderados pelos Irmãos Porcinos. No mesmo ano, ele e seus irmãos Antonio e Levino se desentendem com os Nazarenos, acusando-os de aliança com os Nogueiras, que eram aliados de José Saturnino. No conflito estava em disputa bens simbólicos como honra e valentia.
De um lado estão os jovens Ferreiras e o velho Nazareno João Gomes Jurubeba, exibindo uma raiva irracional de brios feridos, ameaçando degenerar num conflito sangrento, sem que estivesse em disputa qualquer bem material (Id, p. 119).
Na interpretação da antropóloga alagoana, no conflito com os Nazarenos os Irmãos Ferreiras romperam importantes códigos da cultura sertaneja: o respeitou aos mais velhos, pois desacataram João Flor que interveio pedindo calma; a relação entre padrinho e afilhado, uma vez que João Flor era padrinho de São João de Virgulino, e a autoridade paternal, porque continuaram com as ofensas e desafios mesmo depois a interferência do pai José Ferreira.
Naquele confronto, tanto quanto disposição de pegar nas armas, Virgulino demostra significativa ruptura com os códigos da cultura sertaneja, inclusive a obediência ao pai. Desacatando dois respeitados ‘homens de bem’, desfazendo o compromisso de afilhado de São João, ofendendo-lhes a honra (‘fossem homens’), e desmoralizando a autoridade paterna de José Ferreira, os três irmãos ficam numa ponta de rua dizendo xistes até à noite, quando se retiram (Id, p. 120).
16 Depois desse grave episódio, José Ferreira se muda com a família para Alagoas. Os três irmãos se unem aos Matildes e fazem incursões contra o inimigo Zé Saturnino. Nesse mesmo período a mãe de Virgulino adoece e morte. Os Irmãos Ferreiras passam a ser perseguidos pela volante comandada por José Lucena, que numa ação mata o pai deles. No passo seguinte, Os Ferreiras entram no grupo de cangaceiros liderado Sebastião Pereira e Silva, o Sinô Pereira, cangaceiro famoso e respeitado que estava em uma guerra antiga com os Carvalhos. Quando o Sinô Pereira abandona o cangaço, em 1921, Virgulino Ferreira assume definitivamente o papel de Lampião, o rei do cangaço.
Na reconstrução desses fatos e na interpretação da antropóloga, decodificando o sistema simbólico da cultura sertaneja, Virgulino e seus irmãos já atuavam como cangaceiros antes da morte da mãe e do assassinato do pai, inclusive rompem com a autoridade paterna antes de se dedicarem exclusivamente ao cangaceirismo. Sua inserção no cangaço significou romper com importantes valores e padrões de comportamento da sociedade sertaneja,
exaltando apenas uma: a valentia. Lampião manipulou os códigos de honra e vingança para justificar sua opção pela violência como forma de ascensão social, não tendo, portanto, nenhum objetivo de lutar contra os poderosos, pelo contrário, encontrará nas elites dominantes do nordeste importante rede de proteção.
Se os Ferreiras entraram no cangaço rompendo com a cultura sertaneja, os Nazarenos se dedicaram ao combate do cangaço para defender suas concepções e práticas do bem viver. O povoado de Nazaré, hoje Carqueja (PE), foi fundado no final da década de 1910 por homens e mulheres que queriam viver a utopia da paz num sertão conflagrado pela guerra sangrenta entre Pereiras e Carvalhos.
O arruado era muito novo mas o povo que ali se juntou, pelo procedimento de honra e trabalho, respeito e defesa dos códigos sertanejos, gozavam de reconhecimento de todos que a ele se referiam. Nascidos em diferentes lugares, os moradores do povoado logo passaram a ser identificados, designados genericamente como “Nazarenos”. (Id, p. 137).
Quando a guerra do cangaço chega ao povoado e a violência imposta por Lampião se torna uma ameaça a sua existência, os camponeses se convertem em guerreiros presos aos seus códigos de honra, dedicando suas vidas ao combate. Os “homens de bem” de Nazaré buscavam nas suas concepções de mundo justificar sua luta contra o cangaço. O relato de um informante transcrito pela antropóloga é elucidativo do significado da guerra contra o cangaço:
Lampião tinha por que lutar, embora muito lamentável como objetivo: a vingança, o sangue, a destruição, a morte. Os trabalhadores sertanejos tinham apenas uma meta: preservar os frutos do árduo trabalho no campo, seus pertences, sua famílias. (Manoel Flor apud Barros, 2000, p. 170).
No depoimento de Manoel Flor identifica-se o ethos do trabalho como um elemento central na concepção de mundo dos Nazarenos, semelhante às concepções e práticas do catolicismo popular dos beatos daquela época. Assim, munidos de uma firmeza que dava sentido às suas próprias vidas, “os homens de Nazaré se recusavam a abandonar o ‘campo da honra’. Cada vez mais afeitos à guerra e às táticas dos cangaceiros, endurecem nas catingas, pouco a pouco ‘se espalham pelo mundo’ lutando por um símbolo” (Barros, 2000, p. 171).
Portanto, a antropologia da honra foi a chave de interpretação utilizada por Luitgarde O. C. Barros para decifrar os códigos culturais que orientaram as ações dos sujeitos sociais que protagonizaram a guerra sertaneja entre 1919 e 1938. Mas isso não significa que antropóloga optou por uma interpretação de tipo idealista, pois ela continua considerando que as concepções de mundo são inseparáveis das práticas concretas. Dessa forma, a honra não é um valor abstrato, mas sim um bem simbólico que se concretiza em determinados padrões de conduta presentes inclusive nas batalhas.
Lampião e os Nazarenos desenvolveram todas as artes da guerra sertaneja, dominado as catingas, espalhando o terror, enterrando os que tombaram nos confrontos, criando e aperfeiçoando as artes marciais de uma guerra sem quartéis e sem fronteiras. Durante quase vinte anos, velhos, moços e adolescentes das duas famílias morreram em confrontos sangrentos quando cada parte disputava a fama de mais destemido, conhecedor do mundo sertanejo e da arte do bem guerrar. (Id, p. 324).
Aproximando-se de Pierre Bourdieu, a autora destaca o papel estruturante dos sistemas simbólicos, de maneira que valores como honra, coragem, homens de bem e valentia estruturavam a sociedade sertaneja estudada. Sendo as sociedades realidades dinâmicas, forças sociais atuavam como agregadoras e outras como desagregadoras. O cangaço, ou melhor, os cangaceiros enquanto agentes sociais atuavam como forças desagregadoras. “Pela força, os cangaceiros impunham uma nova ordem de conduta, representada pela
violência descontextualizada da fórmula ‘lavar a honra’, promovendo a reordenação combinatória dos elementos ideológicos presentes naquela sociedade” (Id, p. 72).
Portanto, a conclusão a que se chega com a leitura de A derradeira gesta é que o cangaço, enquanto fenômeno social e histórico, constitui uma alternativa de vida que elegeu a violência como meio de ascensão social, utilizado como um dos mecanismos de acumulação por setores da classe dominante, sendo, consequentemente, um dos fatores responsáveis pela desestruturação do sistema simbólico da cultura sertaneja.
As contradições típicas das relações capitalistas colocaram, na década de 1930, os mesmos setores da classe dominante em conflito com o cangaço, quando esse último começou a ser um obstáculo aos interesses burgueses. O bloco no poder, liderado pelo setor sucroalcooleiro, se voltou contra o cangaceirismo, assim Lampião perdeu sua rede de protetores, sem a qual se tornou preza fácil das forças de repressão. A morte de Lampião pelas volantes corruptas foi o ponto final da derradeira gesta, no “último embate de homens em defesa da honra enquanto elemento determinante dos códigos culturais”, e o início da pistolagem como instrumento privilegiado de violência das elites contra as classes subalternas (Id, p. 325). A violência foi efetivamente privatizada, estando a serviço dos interesses políticos e econômicos dos latifundiários e da burguesia urbano-industrial.
Considerações finais
Um dos aspectos marcantes na obra de Luitgarde O. C. Barros é a incrível capacidade de articular e analisar seu objeto de estudo com o contexto social e histórico mais amplo. Assim, sua obra sobre a devoção popular ao Pe. Cícero é também uma obra sobre a política, a cultura e a economia do sertão nordestino no contexto histórico da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX.
Nos estudos sobre o cangaço a antropóloga foi ainda mais longe, pois não apenas contextualizou seu objeto de análise, mais mergulhou profundamente no universo simbólico da cultura sertaneja, para poder decodificar os significados dos seus valores e das suas práticas. Na polêmica sobre as questões epistemológicas que envolvem o trabalho de campo, Clifford Geertz afirma que a compreensão daquilo que os informantes realmente são “depende de uma habilidade para analisar seus modos de expressão”, ou seja, seus “sistemas simbólicos” (Geertz, 2001, 107). É exatamente isso que Luitgarde Barros fez nas suas pesquisas sobre o nordeste, conseguindo de maneira original decodificar aquele sistema simbólico.
Outro aspecto marcante de sua obra é o domínio da linguagem. Seu texto, cujo rigor científico é inquestionável, rompe com os limites do academicismo e, como numa obra literária, transporta o leitor para o contexto estudado. Com sua construção textual, o catolicismo popular não é apresentado como misticismo ou fetichismo; o cangaceirismo não é apresentado como a violência própria de uma cultura rústica. Ela abandona linguagem pejorativa e estereotipada utilizada, inclusive pela a academia com todo o seu refinamento, para se referir aos camponeses, aos sertanejos e aos nordestinos.
Também destaca-se a perspectiva de considerar os homens e mulheres estudados não como objetos passivos diante das estruturas socioeconômicas e dos contextos históricos. Mas sim, recorrendo a Sartre e a Balandier, como sujeitos sociais que fazem suas escolhas, atuantes na construção de suas histórias e responsáveis pela dinâmica da sociedade a que estão inseridos.
Não por acaso José Marques de Melo afirma que a obra de Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros contribuiu para o “território da folkcomunicação” (Melo, 2011, p. 66), ou seja, para o processo de comunicação criado e desenvolvido por aqueles setores marginalizados da sociedade brasileira. Na sua obra não é só antropóloga que fala, pois ela dá voz também às classes subalternas, aos camponeses, aos sertanejos do Nordeste, aos beatos, aos valentes, mas, principalmente, aos homens de bem.

“A mais gigantesca utopia”: a religiosidade popular do nordestino.
As pesquisas de Luitgarde O. C. Barros sobre a devoção popular ao Pe. Cícero foi desenvolvida durante a década de 1970, sendo concluída em 1980 quando defendeu sua dissertação de mestrado. Seus estudos não são uma etnografia típica, nem uma historiografia do Pe. Cícero, são, na verdade, uma antropologia historicista. A antropóloga reconstruiu o universo social e simbólico
do Juazeiro do Pe. Cícero a partir de uma vasta fonte documental (documentos
das esferas governamentais, documentos da Igreja Católica, literatura de cordel) e da memória oral dos devotos.
Em sua tese, o movimento religioso do Juazeiro do Norte é entendido como um movimento social, isto é, “como uma força social viva, expressão do possível histórico de camadas da população brasileira em suas relações sociais de produção da vida material e ideológica cotidiana, na construção de seu mundo material e espiritual, de seu universo simbólico” (Barros, 1988, p. 27). Seguindo o referencial teórico gramsciriano, a religião é entendida como uma forma específica de ideologia, sendo assim, é uma representação de mundo produzida pelos homens e mulheres em suas praxis cotidianas. “Enquanto ação essa praxis se volta para a produção material propriamente dita, ou para a explicação do todo vivencial” (Id, p. 93).
Numa sociedade dividida em classes, as ideologias construídas pelas classes dominantes são as ideologias dominantes. Assim, as classes dominantes podem exercer a hegemonia sobre a sociedade global. No entanto, as contradições sociais oriundas das relações de exploração e dominação
permitem, contraditoriamente, a emergência das ideologias das classes dominadas. No caso estudado pela antropóloga, o catolicismo é a ideologia dominante. “A Igreja no seu papel de direcionamento cultural e moral, mantenedor da forma vigente de organização social, exerce hegemonia defendendo (…) a sacralização da autoridade civil e eclesiástica” (Id, p. 94). Portanto, o movimento religioso do Juazeiro do Norte é uma expressão do catolicismo popular, ou seja, uma religião produzida no interior das classes sociais exploradas do sertão nordestino, distinta daquela produzida pela hierarquia da Igreja Católica.
Luitgarde O. C. Barros defende o conteúdo classista não só do movimento religioso do Juazeiro, mais também dos movimentos que originaram as comunidades de Canudos e Caldeirão. Suas pesquisas mostram que na segunda metade do século XIX o Padre Mestre Ibiapina inicia a sua missão pelo sertão nordestino, fundando a ordem dos beatos, responsável por decodificar as concepções de mundo do catolicismo popular, a partir do contato com as práticas e concepções religiosas da classe trabalhadora sertaneja.
Numa região de cultura integrada, como o sertão nordestino, com sua especificidade estrutural, esse contato, quando vivido coerentemente pelo intelectual católico como pelo menos intelectualizado seguidor, desenvolveu, naquele período de profundo abalo das convicções centenárias, um posicionamento muito mais próximo das tendências autonomistas e voltadas para a vida prática da concepção de mundo do catolicismo popular. Essa foi a tendência que galvanizou muitos dos padres ordenados no recém-criado seminário de Fortaleza. Alguns deles, como o Padre Cícero e outros padres sertanejos, haviam sido alcançados pela pregação do conteúdo utópico religioso, isto é, haviam conhecido a potencialidade revolucionária da utopia cristã. Libertada do idealismo teórico, fora traduzida por um pregador que fala a linguagem e sofre o sofrimento de seus seguidores. Esse missionário é o Padre Mestre Ibiapina, ordenado em Olinda sem passar pela formação do seminário. (Id, pp. 99-100).
Em suas pesquisas, a antropóloga alagoana conclui que não existem apenas traços comuns entre Antônio Conselheiro, de Canudos, Pe. Cícero, de Juazeiro do Norte, e José Lourenço, de Caldeirão, na verdade, existe uma relação orgânica entre esses três personagens da história nordestina. Fazem
parte do mesmo movimento social, cuja ideologia e práticas são manifestações históricas do catolicismo popular.
O movimento dos beatos entrou em conflito com a sociedade capitalista e, consequentemente, com a alta hierarquia da Igreja Católica que exercia o papel de intelectual orgânico do sistema dominante. A bem da verdade, própria hierarquia católica tinha a sua posição no bloco no poder ameaçada com a emergência da Maçonaria e da ideologia positivista. Essa cisão no bloco ideológico ocorreu especialmente a partir da década de 1850.
É o período em que começa a se estruturar uma pequena burguesia, com a formação de uma elite intelectual já atuante com a criação da Escola Central em 1858, formando os engenheiros militares, de papel altamente significativo na criação e difusão de ideologia para as camadas urbanas nas décadas sucessivas. É o início do desgaste progressivo na criação da Igreja no seu papel monopolístico de aparelho ideológico de Estado. (Id, p. 95).
As classes dominadas, quando galvanizadas pela ação dos movimentos religiosos, tentam atualizar esse tempo escatológico, realizar no ‘agora’ as promessas do bem comum. Manipulam a categoria de tempo anunciando a chegada dos ‘tempos prometidos’, o fim do mundo. É interessante que, esperando esse ‘fim do mundo’, não se quedam num imobilismo transcendental, mas, muito pelo contrário, partem para a ação de ‘plantar’ o novo mundo, de ‘construir’ a utopia do mundo do espírito santo. Como se tivessem consciência teórica do papel histórico do homem na construção material e espiritual de seu próprio mundo, não esperam a chegada de Deus construtor dessa ‘existência inefável’, mas fazem eles mesmos as suas ‘cidades santas’, as cidades longe do pecado. (Id, p. 144).
Luitgarde O. C. Barros defende que a ruptura entre a missão dos beatos e suas cidades santas com o sistema capitalista era profunda e irreconciliável. A antropóloga reproduz um depoimento de uma senhora ligada àqueles que
sobreviveram à chacina do Caldeirão: “Ali ninguém passava fome; não senhora! Era tudo irmão. Tudo trabalhando junto, rezando junto (…). Era tanto homem na roça, os paió tudo cheio, uma fartura que fazia gosto” (Id, p. 146). Esse depoimento mostra que a oposição entre o projeto dos beatos e a sociedade global não estava apenas na esfera ideológica, mas também na organização do sistema social. A antropóloga recorre as categorias gramscianas para explicar tal oposição, mostrando que os beatos eram intelectuais orgânicos das classes subalternas do sertão nordestinos
Nesse tipo de sociedade a negação da ideologia dominante se faz a nível estrutural e superestrutural numa relação orgânica em que os beatos aparecem como o elo entre estrutural e superestrutura – intelectuais orgânicos das baixas camadas que emigram para as cidades santas (Id, p. 157).
A tese de Luitgarde O. C. Barros se opõe tanto às teses que recorreram às categorias weberianas, quanto àquelas que utilizaram de maneira simplistas
às teorias marxistas sobre religião e sobre o campesinato.
O trabalho de Maria Isaura Pereira de Queiroz, O messianismo no Brasil e no mundo (1976), é a principal interpretação da religiosidade nordestina do século XIX que utiliza as categorias da Sociologia da Religião de Max Weber. O conceito de messianismo é empregado para explicar como em momentos de “crise” social, anômica ou não, é comum nas “sociedades rústicas” o surgimento de lideranças religiosas carismáticas capazes de aglutinar multidões em torno de suas mensagens de salvação. Apesar que uma resposta das classes dominadas às suas condições socioeconômicas, o messianismo não é um movimento social classista, pois, segundo Maria I. P. de Queiroz, tais movimentos seriam desprovidos de ideologias que coloquem em conflitos os interesses das diferentes classes sociais e que pudessem aglutinar as classes populares em projetos políticos. A conclusão é de que o messianismo é um movimento eminentemente conservador, porque seriam conservadoras as classes sociais onde ele se origina,
os comportamentos tradicionais não são mais seguidos, a ruindade dos homens (e não a ruindade de uma camada social superior) desviou-os da senda segura divinamente estabelecida. Por isso o messias foi enviado: para fazer com que os homens retomassem os bons costumes, e não para que mudassem os pobres de posição social (Queiroz, 1976, p. 324).
Por sua vez, Rui Facó, na obra clássica Cangaceiros e Fanáticos (1965), recorre à teoria marxista para estudar a religiosidade popular do sertão nordestino, entretanto, fica preso ao dogmatismo das interpretações do PCB sobre a sociedade brasileira. Por isso, apesar de Facó identificar o caráter de classe dos movimentos religiosos da população sertaneja, ele considera que a religiosidade popular como formas primárias de consciência, sendo os movimentos camponeses de Canudos e Contestado tipos de rebeliões inconscientes contra a “servidão da gleba”, contra o latifúndio.
Rui Facó entende as estruturas sociais e econômicas da sociedade sertaneja até as primeiras décadas do século XX eram pré-capitalistas, onde predominavam as relações semisservis e o latifúndio semifeudal. Essa perspectiva da história em etapas denuncia seu marxismo economicista, responsável pela sua desconfiança em relação aos movimentos religiosos e camponeses. Para Facó, seguindo as linhas de interpretação do PCB, somente o operariado urbano-industrial poderia ter uma verdadeira consciência de classe, restando aos camponeses movidos por sua religiosidade revoltas inconscientes. Ao afirmar que os beatos eram intelectuais orgânicos das classes populares do sertão nordestino (e também catarinense, no caso do Contestado) e considerar que os movimentos religiosos sob os auspícios do catolicismo popularam eram movimentos sociais, Luitgarde O. C. Barros rompe com a tese do messianismo de Maria I. P. de Queiroz, segundo a qual esses seriam movimentos policlassistas, e supera os limites da tese economicista de Rui Facó, onde o movimento religioso do camponês aparece como uma revolta inconsciente.
Munida do aparato teórico-conceitual gramsciano, Luitgarde Barros explica a Questão Religiosa de Juazeiro analisando a categoria de santidade do catolicismo popular, que, por suas características, diverge da noção de santidade da hierarquia católica. Em seu trabalho de campo ficou
evidente a relação entre santidade e a praxis do evangelho. O trabalho, o respeito ao homem, a proteção aos que sofrem, a igualdade, a ausência da fome, desprendimento de dinheiro, respeito às donzelas, boa convivência, humildade, equilíbrio de conduta, são essas as características da santidade. A prática dessa ética, isto é, uma vida nessas práticas, eis a decodificação da categoria de santo. (Barros, 1988, pp. 168- 169).
A antropóloga alagoana mergulha no universo cultural e religioso para explicar o título e “meu padrinho”, atribuído ao Pe. Cícero e a outros beatos, como José Lourenço, relacionando essa categoria com a de santidade.
O Padre Cícero foi padrinho de milhares de sertanejos, ‘meu padrinho’ para milhões de nordestinos. Antes de tudo ele foi o sertanejo que viveu os códigos de sua cultura, encarnou o protótipo, o modelo do padrinho protetor, reivindicando até a interferência divina para sê-lo. (…) Vivendo integralmente o papel cultural, recebeu dos afilhados o título honorífico, foi o “meu padrinho”. (Id, p. 173).
Começando sua missão no Juazeiro do Norte em 1872, Pe. Cícero passou a aglutinar multidões de sertanejos na terra da Mãe de Deus. Por isso, antes mesmo do milagre de 1889, Pe. Cícero já era considerado um “santo homem” pela população das classes subalternas do sertão nordestino; já tinha recebido o título de “Padim Ciço”.
O milagre ocorrido no Juazeiro tornou a missão do Pe. Cícero nacionalmente conhecida tendo, inclusive, repercussão no Vaticano. O milagre ocorreu durante as celebrações da Semana Santa de 1889, quando a beata Maria de Araújo recebeu a comunhão das mãos de Pe. Cícero a hóstia se transformou em sangue. A notícia do milagre corre o mundo e no Juazeiro cresce o culto ao Sangue Piedoso.
Para Luitgarde Barros o culto popular ao Sangue Piedoso deflagrou o conflito entre as concepções de mundo do catolicismo popular e a teologia da hierarquia católica. O alto clero, representado pelo então bispo do Ceará, Dom Joaquim José Vieira, se opõe ao culto popular e exige explicações do padre bem como o afastamento da beata do Juazeiro. Pe. Cícero ignora as ordens do bispo e ao fazê-lo deixa explícitas as diferenças nas concepções de santidade da religiosidade popular e da hierarquia eclesiástica: enquanto a santidade para o catolicismo popular significa a prática do evangelho, para a Igreja Católica significa subordinação e obediência à hierarquia do clero.
A tese da antropóloga alagoana sobre a Questão Religiosa do Juazeiro se difere da consagrada interpretação do sociólogo estadunidense Ralph Della Cava, cuja obra Milagre em Joaseiro foi publicada no Brasil em 1976. Para Della
Cava a Questão Religiosa se explica pelos conflitos no interior da própria Igreja Católica, que passava pelo processo de reforma – a romanização – em resposta à crise ideológica provocada pela ascensão da maçonaria e do liberalismo. Como os primeiros divulgadores do milagre foram padres e depois a alta hierarquia católica nega o milagre e condena o culto popular, isso mostraria, segundo Della Cava, uma cisão no interior da Igreja.
Apesar de Luitgarde O. C. Barros considerar o processo de romanização uma importante variável para explicar a Questão Religiosa do Juazeiro (Barros, 1988,
p. 99), ele é um fator secundário. Pois o conflito ocorre entre concepções de mundo antagônicas; conflito que fica cada vez mais nítido com a decisão da alta hierarquia católica de condenar as crenças populares.
O cerco ao catolicismo popular se fechava. As autoridades eclesiásticas, ciosas de seu mando, intransigentes, não admitem a existência de pregadores autônomos, de outros intérpretes do evangelho – os beatos. (Id, p. 235).
Com a proclamação da República a Igreja Católica se reposiciona no bloco no poder. Mantem seu papel enquanto aparelho ideológico, mas por outro lado perdeu espaço com a laicização do Estado brasileiro. Nesse novo contexto, a hierarquia católica concentra seus esforços para conter o catolicismo popular, isto é, para manter o seu papel na direção moral e ideológica das classes subalternas.
Como no movimento da contra-reforma, após esse abalo a Igreja busca uma reestruturação interna, um comando ainda mais efetivo de seus seguidores, uma homogeneidade mais palpável entre as diferentes camadas de seu universo de atuação. Nesse momento se apresenta como obstáculo maior à consecução desse objetivo, a tradição arraigada no povo, do catolicismo popular. Neste, predominando a praxis dos beatos como o principal fator de valorização da ideologia católica subvertedora do catolicismo oficial, é contra eles que se voltarão os cuidados, a ira e a repressão das autoridades eclesiásticas. (Id, p. 234).
Luitgarde Barros sustenta a tese de que as concepções e práticas do catolicismo popular, decodificadas pelos beatos e materializadas nas cidades santas do sertão, não eram uma ameaça apenas para a Igreja Católica e seu esforço de romanização, como defende Della Cava, mais sim uma ameaça ao sistema de exploração e dominação imposto pelas classes dominantes. Por isso, a reação e repressão não são ações isoladas do alto clero católico. O que se viu

foi a unidade do conjunto das classes dominantes, hierarquia católica, latifundiários, empresários urbanos, industriais, oficiais das forças armadas, positivistas, maçons, liberais, republicamos, grande empresa, políticos, enfim, uma ofensiva do conjunto das classes dominantes com o objetivo que conter os “fanáticos”. Os sertanejos adeptos do catolicismo popular foram transformados em ameaças à República pelos relatóriosiii do clero católico sobre a missão de Antonio Conselheiro. Assim a Igreja forneceu os argumentos para legitimar os massacres de Canudos, Contestado e Caldeirão.
A incapacidade do bloco no poder de solucionar os problemas do país, levava-o por seu lado, a buscar responsáveis pela situação angustiante da nação. (…) O relatório apontou um inimigo comum à Igreja e ao Estado, ameaçado pela população de fanáticos rebeldes – “um Estado no Estado”. (Id, p. 239).
A documentação reunida e analisada por Luitgarde Barros mostra que os conflitos armados foram resultantes do antagonismo inconciliável de diferentes concepções de mundo: o catolicismo popular dos beatos e o sistema capitalista. A comunicação entre o Pe. Cícero e Antonio Conselheiro mostra as relações orgânicas entre os beatos, do mesmo modo que a reação das elites quando o padre deixou Juazeiro do Norte, acusando-o de marchar para socorrer o Conselheiro, mostram o grau de consciência das classes dominantes de que estavam enfrentando uma ameaça ao seu status quo.
Mas o afastamento do Pe. Cícero de sua cidade foi movido pelo medo do
padre de que Juazeiro tivesse o mesmo destino de Canudos. Seu ato foi uma tentativa de mostrar obediência as ordens eclesiásticas, evitando a excomunhão e se mantendo como funcionário da Igreja. Com isso a profecia do Conselheiro se concretizou: Canudos sofreria três ataques federais e iria sucumbir, mas Juazeiro iria sofrer um “foguinho estadual” e sobreviver (Id, p. 239).
Diante da ofensiva sangrenta das classes dominantes, Pe. Cícero inicia a construção de uma ampla rede de alianças, se aproximando de irmandades religiosas que gozavam de relativa autonomia e prestígio eclesiástico, como os Padres Salesianos, faz alianças com chefes políticos, se filia ao Partido Conservador, torna-se senhor de terras. Assim, conclui Luitgarde O. C. Barros
os ataques não serão mais desfechados contra um pobre e humilde pároco suspenso de ordens, mas contra um poderoso senhor de terras e dinheiro. O Juazeiro não será apenas um reduto de fanáticos, fácil presa dos choques de ambição, será o lugar símbolo de um extenso universo de crenças, a capital de um país cultural incluso na sociedade mais ampla. (…) Pela nossa perspectiva essa ação é produto de um planejamento do padre. Consciente da recusa da Igreja em aceitar os milagres,
do risco que corre juntamente com seus seguidores, procura elaborar um esquema de sobrevivência que lhe garanta ao mesmo tempo a permanência de Juazeiro como terra escolhida por Deus para a concentração dos crentes de baixa camada – na linguagem atual, o polo de concentração e sobrevivência do catolicismo popular, protegido contra a fúria da alta hierarquia católica, a salvo das investidas do Estado. (Id, p. 255).


De fato a estratégia do Pe. Cícero teve resultado: o Juazeiro do Norte assume o papel de centro de peregrinação de romeiros movidos pela fé no seu santo popular. Não é por menos que se pode ler notícias nos meus de comunicação no a seguinte manchete: “Juazeiro do Norte (CE) atrai número recorde de romeiros – Segundo secretário, 2,5 milhões de romeiros visitaram a cidade em 2011. Parte da população quer que cidade se chame ‘Juazeiro de Padre Cícero’” (G1, 22 de janeiro de 2012).iv Ou seja, apesar de todos os esforços violentos promovidos pelas classes dominantes, as crenças populares permanecem e possuem um centro de resistência.
Cangaço e antropologia da honra
Em mais um mergulho no universo social e simbólico do sertão nordestino, Luitgarde O. C. Barros desenvolve uma pesquisa de cerca de 30 anos sobre o cangaço, que no final de 1990 se tornou sua tese de doutorado. A obra A derradeira gesta – Lampião e Nazarenos guerreando no sertão foi construída seguindo metodologia semelhante aquela utilizada nos estudos sobre o catolicismo popular, recorrendo à memória oral, à literatura de cordel, aos documentos da época e à imprensa, mas a antropóloga introduziu a literatura como uma fonte de interpretação do universo simbólico estudado. Assim, o entendimento do sertão conflagrado passa tanto pelo geógrafo Josué de Castro, quanto pelo escritor Guimarães Rosa e pelo poeta Ulysses Lins de Albuquerque. O tema do cangaceirismo foi abordado pela academia brasileira a partir, especialmente, das teorias do banditismo social, com destaque para os trabalhos de Rui Facó, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Abelardo Montenegro. A teoria do banditismo social ganhou mais força com a publicação no início da década
de 1970 da obra Bandidos de Eric Hobsbawn, que define o banditismo social nos seguintes termos:
O ponto básico a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais, encarados como criminosos pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa e são considerados por sua gente como heróis, como campeões, vingadores, paladinos, justiceiros, talvez até mesmo líderes da libertação e como homens a serem ajudados e apoiados. É essa ligação entre o camponês comum e o rebelde, o proscrito e o ladrão que torna o banditismo social interessante e significativo. (Hobsbawn, 1976. p. 11).
Assim, Lampião e Pancho Villa são interpretados a partir dos mesmos parâmetros – banditismo social – , tendo o mito de Robin Hood como referência. Foi construído um mito que Luitgarde Barros desconstrói ao longo de sua obra.
Na acadêmica brasileira a tese de Facó (1965) é a principal interpretação do cangaceirismo como banditismo social. Em Cangaceiros e Fanáticos o banditismo e a religiosidade popular são entendidos como as duas fases da mesma moeda: a revolta das classes camponesas à exploração do latifúndio, num contexto de crise do sistema de produção e de relações de trabalho pré- capitalistas. Nas palavras do autor:
E eram eles – cangaceiros e “fanáticos” – os elementos ativos de uma transformação que prepara mudanças de caráter social. Eles subvertem a pasmaceira imposta pelo latifúndio durante séculos, provocavam choques de classes, lutas armadas, preparam os combates do futuro. Não são ainda a revolução social, mas são o seu prólogo. São os elementos regeneradores daquela sociedade estagnada, em processo de putrefação. Revivem-na, dão-lhe sangue novo, põem-na em movimento, preparam-na para o advento de uma nova época. São ainda o elemento unificador por excelência de uma região – mais do que o Nordeste, todo um imenso território interiorano – que se desagregava dentro de si mesma, em feudos quase fechados e paralisados. (Facó, 1965, p. 37).
José de Souza Martins, importante estudioso do campesinato brasileiro, reproduz essa linha de interpretação de Facó:
O banditismo e misticismo não se excluíram. Um líder messiânico, como o Padre Cícero de Juazeiro do norte, Ceará (1870-1934), uma região que produziu muitos jagunços, tornou- se célebre pela ascendência sobre camponeses pobres e sobre jagunços e cangaceiros. Foi ele quem em 1926 tentou armar Lampião para lançá-lo contra a Coluna Prestes. (Martins, 1986, p. 61).

Como sertaneja e militante da causa sertaneja, Luitgarde O. C. Barros não poderia aceitar tal afirmação. Por isso, a antropóloga estuda o cangaço a partir da guerra entre Ferreiras, os irmãos Antonio, Virgulino e Levino que ingressaram no cangaço, e Nazarenos, moradores do povoado de Nazaré (Pernambuco) que se dedicaram ao combate ao cangaço. De lado opostos, Ferreiras e Nazarenos são protagonistas numa guerra sertaneja que se estendeu entre 1919 e 1938, são símbolos de um sertão fragmentado e conflagrado.
Iguais na produção da vida material, diferenciados na orientação e no rearranjo de valores dos códigos culturais, Ferreiras e Nazarenos representam, alegoricamente, as transformações vividas pela sociedade sertaneja no período recortado, espaço e tempo do palco de suas lutas. (Barros, 2000, p. 50)
Protagonistas da derradeira gesta sertaneja, Ferreiras e Nazarenos personificaram valores e padrões de comportamento do universo cultural do sertão nordestino, ora reafirmando-os, ora rompendo-os. Trata-se de valores como honra e defesa da honra; valentia e coragem; destreza e astúcia; o “bem viver” e a “arte do bem guerrear”. Ocupam, portanto, lugar de destaque entre tantos outros personagens que fazem parte do universo simbólico e da memória coletiva dos sertanejos. Assim, Luitgarde Barros procura decodificar esses
símbolos da cultura sertaneja para em seguida apresentar Ferreiras e Nazarenos não como mitos, mas sim como um agentes sociais, produtos de seu meio e sujeitos da suas próprias histórias.
Para desmistificar Lampião, a antropóloga alagoana começa desmistificando as visões sobre o sertão e o sertanejo, sobre as classes sociais que formavam o sertão daquele período e sobre o cangaço. O sertão, tanta vezes interpretado como uma realidade homogênea, assume nas páginas da obra a Derradeira Gesta as formas e o conteúdo de uma realidade heterogênea e dinâmica, bem como o sertanejo aparece em toda a sua diversidade e complexidade.
Cientificamente analisando o sertão enquanto realidade geo- climática, tem-se um panorama do locus natural, o cenário onde se constróem histórias-dramas, tragédias e tragédias e comédias; lutas-vitórias e frustrações, sonhos de homens singulares numa sociedade original. Por isso não falo do sertanejo abstração teoricamente construída, mas de homens e
mulheres, crianças, jovens, adultos e anciãos, que viveram uma saga numa época, nesse lugar. Esse é ao mesmo tempo um
espaço analisado pela ciência e trabalhado materialmente pelo homem, e um mundo construído pelo imaginário, guardado na memória, permeando o cotidiano, povoando o presente com
vívidas ou esmaecidas imagens do passado (Id, pp. 66-67).
A estratificação social do sertão nordestino é normalmente simplificada em interpretações presas à oposição entre senhores e escravos e/ou entre o latifúndio semifeudal e o camponês semisservil, com uma presença incipiente de trabalhadores livres (Id, p. 104). Tais interpretações, segundo a autora, acabam negligenciando a complexidade das classes e frações de classes em conflito na sociedade sertaneja. Luitgarde Barros destaca o papel das frações intermediárias, formadas pelos pequenos proprietários, comerciantes e artesãos. Sendo que Ferreiras e Nazarenos são oriundos dessa camada social de “remediados” (Id, p. 105).
Também é comum a academia afirmar ser o cangaço um fenômeno social típico do semiárido nordestino, que perdurou mais ou menos da segunda metade do século XIX até a década de 1940. Entretanto, a antropóloga encontrou registros do cangaceirismo em Minas Gerais e em Goiás, ou seja, para além das fronteiras da caatinga nordestina.

A principal crítica de Luitgarde Barros é direcionada às abordagens do cangaço como banditismo social. A já citada tese de Facó coloca o cangaço ao lado do “fanatismo”, como expressões do conflito entre as classes antagônicas do sertão nordestino num contexto de crise do latifúndio semifeudal. Todavia, defende Luitgarde Barros, o catolicismo popular e cangaço são incompatíveis, constituindo práticas e concepções de mundo opostas. O catolicismo popular, levado às últimas consequências pelo projeto dos beatos, forjou o ethos do trabalho e do “bem viver”, longe da miséria e da violência impostas pelas classes dominantes (Id, p. 125). Por sua vez, o cangaceirismo constituiu uma forma individual de ascensão social pela violência (Id, p. 244), ao mesmo tempo que fez parte dos mecanismos de acumulação e dominação das elites nordestinasv. “A sustentação logística, bélica, de apoio de imprensa, que o cangaço recebia, era fornecida pelos chamados setores avançados, homens progressistas da classe dominante” (Id, p. 268).
No episódio do confronto com a Coluna Prestes, a antropóloga comprova que ,que a decisão foi de organizar os cangaceiros para enfrentar os rebeldes foi do então Presidente Arthur Bernardes e do Ministro da Guerra, Marechal Setembrino de Carvalho, e a estratégia foi pensada pelo General Góes Monteiro (Id, pp. 288-291). Portanto, não se pode atribuir essa responsabilidade ao Padre Cícero.
O cangaço foi um dos fatores responsáveis pela desagregação da cultura e da sociedade sertaneja, juntamente com a seca, a fome e o latifúndio (Id. pp. 68-69). O cangaço, especialmente aquele sob a liderança de Lampião, promoveu constantes saques direcionados aos pequenos e médios proprietários, arruinando as suas economias (Id, p. 133); generalizou a violência, instrumento há muito utilizado pelas classes dominantes, e introduziu novas formas de tortura rompendo códigos de conduta da cultura sertaneja (Id, pp. 72- 74).
O mito de Virgulino que se tornou o cangaceiro Lampião para vingar o assassinato do pai, José Ferreira, foi em grande medida fortalecido pelos estudos acadêmicos e pelos meios de comunicação de massa. Mas, para Luitgarde Barros, aceitar a narrativa mítica significa retirar de Lampião sua condição de sujeito social, responsável pela suas escolhas e pela construção da sua história (Id, p. 117). Ao contrário, a antropóloga defende que Virgulino foi um agente ativo na construção do mito de Lampião. Conhecedor da cultura sertaneja, Lampião procurou construir um “escudo ético” para legitimar sua entrada no cangaço.
Confundindo datas, sequências de fatos, e acima de tudo recorrendo ao código sertanejo da vingança de sangue, Lampião justificou, para si próprio e o mundo, sua entrada no cangaço, para matar Zé Saturnino e José Lucena, como decisão tomada diante do pai e da mãe mortos. Esta legitimação dos próprios atos utilizando elementos da cultura sertaneja como valentia e obrigação de vingança para limpar manchas desonrosas ou corrigir injustiças, foi amplamente utilizada por todos os cangaceiros, principalmente Lampião (Id, p. 127).
Com o objetivo de encontrar o “homem” por detrás do mito, Luitgarde Barros entrevista homens e mulheres que conheceram Virgulino ainda na juventude, na década de 1910. Cruzando os depoimentos com a documentação disponível, a autora chega as seguintes conclusões sobre os fatos que precederam a transformação de Virgulino Ferreira em Lampião. Os Irmãos Ferreiras, atuando como volantes na região de Serra Talhada (PE), se desentendem com José Saturnino (Zé Saturnino) e iniciam uma saga para vingar sua honra com sangue. Para afastar os filhos dessa sina de sangue, José Ferreira se muda com a família, sendo acolhido pelos Nazarenos. Já no ano de 1919 Virgulino é reconhecido como membro de um bando de cangaceiros, liderados pelos Irmãos Porcinos. No mesmo ano, ele e seus irmãos Antonio e Levino se desentendem com os Nazarenos, acusando-os de aliança com os Nogueiras, que eram aliados de José Saturnino. No conflito estava em disputa bens simbólicos como honra e valentia.
De um lado estão os jovens Ferreiras e o velho Nazareno João Gomes Jurubeba, exibindo uma raiva irracional de brios feridos, ameaçando degenerar num conflito sangrento, sem que estivesse em disputa qualquer bem material (Id, p. 119).
Na interpretação da antropóloga alagoana, no conflito com os Nazarenos os Irmãos Ferreiras romperam importantes códigos da cultura sertaneja: o respeitou aos mais velhos, pois desacataram João Flor que interveio pedindo calma; a relação entre padrinho e afilhado, uma vez que João Flor era padrinho de São João de Virgulino, e a autoridade paternal, porque continuaram com as ofensas e desafios mesmo depois a interferência do pai José Ferreira.
Naquele confronto, tanto quanto disposição de pegar nas armas, Virgulino demostra significativa ruptura com os códigos da cultura sertaneja, inclusive a obediência ao pai. Desacatando dois respeitados ‘homens de bem’, desfazendo o compromisso de afilhado de São João, ofendendo-lhes a honra (‘fossem homens’), e desmoralizando a autoridade paterna de José Ferreira, os três irmãos ficam numa ponta de rua dizendo xistes até à noite, quando se retiram (Id, p. 120).

16 Depois desse grave episódio, José Ferreira se muda com a família para Alagoas. Os três irmãos se unem aos Matildes e fazem incursões contra o inimigo Zé Saturnino. Nesse mesmo período a mãe de Virgulino adoece e morte. Os Irmãos Ferreiras passam a ser perseguidos pela volante comandada por José Lucena, que numa ação mata o pai deles. No passo seguinte, Os Ferreiras entram no grupo de cangaceiros liderado Sebastião Pereira e Silva, o Sinô Pereira, cangaceiro famoso e respeitado que estava em uma guerra antiga com os Carvalhos. Quando o Sinô Pereira abandona o cangaço, em 1921, Virgulino Ferreira assume definitivamente o papel de Lampião, o rei do cangaço.
Na reconstrução desses fatos e na interpretação da antropóloga, decodificando o sistema simbólico da cultura sertaneja, Virgulino e seus irmãos já atuavam como cangaceiros antes da morte da mãe e do assassinato do pai, inclusive rompem com a autoridade paterna antes de se dedicarem exclusivamente ao cangaceirismo. Sua inserção no cangaço significou romper com importantes valores e padrões de comportamento da sociedade sertaneja,
exaltando apenas uma: a valentia. Lampião manipulou os códigos de honra e vingança para justificar sua opção pela violência como forma de ascensão social, não tendo, portanto, nenhum objetivo de lutar contra os poderosos, pelo contrário, encontrará nas elites dominantes do nordeste importante rede de proteção.
Se os Ferreiras entraram no cangaço rompendo com a cultura sertaneja, os Nazarenos se dedicaram ao combate do cangaço para defender suas concepções e práticas do bem viver. O povoado de Nazaré, hoje Carqueja (PE), foi fundado no final da década de 1910 por homens e mulheres que queriam viver a utopia da paz num sertão conflagrado pela guerra sangrenta entre Pereiras e Carvalhos.
O arruado era muito novo mas o povo que ali se juntou, pelo procedimento de honra e trabalho, respeito e defesa dos códigos sertanejos, gozavam de reconhecimento de todos que a ele se referiam. Nascidos em diferentes lugares, os moradores do povoado logo passaram a ser identificados, designados genericamente como “Nazarenos”. (Id, p. 137).
Quando a guerra do cangaço chega ao povoado e a violência imposta por Lampião se torna uma ameaça a sua existência, os camponeses se convertem em guerreiros presos aos seus códigos de honra, dedicando suas vidas ao combate. Os “homens de bem” de Nazaré buscavam nas suas concepções de mundo justificar sua luta contra o cangaço. O relato de um informante transcrito pela antropóloga é elucidativo do significado da guerra contra o cangaço:
Lampião tinha por que lutar, embora muito lamentável como objetivo: a vingança, o sangue, a destruição, a morte. Os trabalhadores sertanejos tinham apenas uma meta: preservar os frutos do árduo trabalho no campo, seus pertences, sua famílias. (Manoel Flor apud Barros, 2000, p. 170).
No depoimento de Manoel Flor identifica-se o ethos do trabalho como um elemento central na concepção de mundo dos Nazarenos, semelhante às concepções e práticas do catolicismo popular dos beatos daquela época. Assim, munidos de uma firmeza que dava sentido às suas próprias vidas, “os homens de Nazaré se recusavam a abandonar o ‘campo da honra’. Cada vez mais afeitos à guerra e às táticas dos cangaceiros, endurecem nas catingas, pouco a pouco ‘se espalham pelo mundo’ lutando por um símbolo” (Barros, 2000, p. 171).
Portanto, a antropologia da honra foi a chave de interpretação utilizada por Luitgarde O. C. Barros para decifrar os códigos culturais que orientaram as ações dos sujeitos sociais que protagonizaram a guerra sertaneja entre 1919 e 1938. Mas isso não significa que antropóloga optou por uma interpretação de tipo idealista, pois ela continua considerando que as concepções de mundo são inseparáveis das práticas concretas. Dessa forma, a honra não é um valor abstrato, mas sim um bem simbólico que se concretiza em determinados padrões de conduta presentes inclusive nas batalhas.
Lampião e os Nazarenos desenvolveram todas as artes da guerra sertaneja, dominado as catingas, espalhando o terror, enterrando os que tombaram nos confrontos, criando e aperfeiçoando as artes marciais de uma guerra sem quartéis e sem fronteiras. Durante quase vinte anos, velhos, moços e adolescentes das duas famílias morreram em confrontos sangrentos quando cada parte disputava a fama de mais destemido, conhecedor do mundo sertanejo e da arte do bem guerrar. (Id, p. 324).
Aproximando-se de Pierre Bourdieu, a autora destaca o papel estruturante dos sistemas simbólicos, de maneira que valores como honra, coragem, homens de bem e valentia estruturavam a sociedade sertaneja estudada. Sendo as sociedades realidades dinâmicas, forças sociais atuavam como agregadoras e outras como desagregadoras. O cangaço, ou melhor, os cangaceiros enquanto agentes sociais atuavam como forças desagregadoras. “Pela força, os cangaceiros impunham uma nova ordem de conduta, representada pela
violência descontextualizada da fórmula ‘lavar a honra’, promovendo a reordenação combinatória dos elementos ideológicos presentes naquela sociedade” (Id, p. 72).
Portanto, a conclusão a que se chega com a leitura de A derradeira gesta é que o cangaço, enquanto fenômeno social e histórico, constitui uma alternativa de vida que elegeu a violência como meio de ascensão social, utilizado como um dos mecanismos de acumulação por setores da classe dominante, sendo, consequentemente, um dos fatores responsáveis pela desestruturação do sistema simbólico da cultura sertaneja.
As contradições típicas das relações capitalistas colocaram, na década de 1930, os mesmos setores da classe dominante em conflito com o cangaço, quando esse último começou a ser um obstáculo aos interesses burgueses. O bloco no poder, liderado pelo setor sucroalcooleiro, se voltou contra o cangaceirismo, assim Lampião perdeu sua rede de protetores, sem a qual se tornou preza fácil das forças de repressão. A morte de Lampião pelas volantes corruptas foi o ponto final da derradeira gesta, no “último embate de homens em defesa da honra enquanto elemento determinante dos códigos culturais”, e o início da pistolagem como instrumento privilegiado de violência das elites contra as classes subalternas (Id, p. 325). A violência foi efetivamente privatizada, estando a serviço dos interesses políticos e econômicos dos latifundiários e da burguesia urbano-industrial.
Considerações finais
Referências bibliográficas
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A derradeira gesta – Lampião e Nazarenos guerreando no sertão. Rio de Janeiro: Mauad; FAPERJ, 2000.
. A terra de mãe de Deus – um estudo do movimento religioso de Juazeiro do Norte. Rio de Janeiro: Francisco Alves; Brasília: INL, 1988.
. Arthur Ramos e as dinâmicas sociais do seu tempo. 2ª ed. Maceió, EDUFAL, 2005.
CHIAVENATO, Júlio. Cangaço, a força do coronel. São Paulo: Brasiliense, 1990. FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1965.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa.
4ª ed. Petrópolis, Vozes, 2001.
MELO, José Marques de e JACONI, Sônia Maria Ribeiro (orgs.). Luitgarde: uma voz dos silenciados. São Paulo, INTERCOM, 2011.
QUEIROZ, Maria I. P. de. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Alfa Omega, 1976.
Notas:
-
Professor do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II, mestre em Ciências Sociais pela UERJ e doutorando em História Social pela UFF.
-
Sobre a inserção de Luitgarde O. C. Barros no contexto político da década de 1960, ver Barros, Luitgarde O. C. Arthur Ramos e as dinâmicas sociais do seu tempo. 2ª ed. Maceió, EDUFAL, 2005.
-
Refiro-me ao relatório produzido pelo frei italiano João Evangelista de Monte Marciano sobre Canudos, encomendado conjuntamente pelo arcebispo da Bahia, D. Luís Antônio dos Santos e pelo governador da província Joaquim Manuel Rodrigues de Lima. O frei Marciano afirma em seu relatório: “A seita político-religiosa estabelecida e entrincheirada nos Canudos não é só um foco de superstição e fanatismo (…); é principalmente um núcleo na aparência desprezível, mas tanto perigoso e funesto de ousada resistência e hostilidade ao governo constituído no país (Marciano apud Barros, 1988, p. 238).
-
Matéria do Portal G1, disponível em http://g1.globo.com/ceara/noticia/2012/01/juazeiro-do-norte-ce-atrai- numero-recorde-de-romeiros.html, acessado em 24 de fevereiro de 2012.
-
A obra de Júlio Chiavenato é uma importante referência entre os estudos que mostram a relação do cangaço com as classes dominantes. Chiavenato, Júlio. Cangaço, a força do coronel. São Paulo: Brasiliense, 1990.

Professor do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II, mestre em Ciências Sociais pela UERJ e doutorando em História Social pela UFF.
Sobre a inserção de Luitgarde O. C. Barros no contexto político da década de 1960, ver Barros, Luitgarde O. C. Arthur Ramos e as dinâmicas sociais do seu tempo. 2ª ed. Maceió, EDUFAL, 2005.
Refiro-me ao relatório produzido pelo frei italiano João Evangelista de Monte Marciano sobre Canudos, encomendado conjuntamente pelo arcebispo da Bahia, D. Luís Antônio dos Santos e pelo governador da província Joaquim Manuel Rodrigues de Lima. O frei Marciano afirma em seu relatório: “A seita político-religiosa estabelecida e entrincheirada nos Canudos não é só um foco de superstição e fanatismo (…); é principalmente um núcleo na aparência desprezível, mas tanto perigoso e funesto de ousada resistência e hostilidade ao governo constituído no país (Marciano apud Barros, 1988, p. 238).
Matéria do Portal G1, disponível em http://g1.globo.com/ceara/noticia/2012/01/juazeiro-do-norte-ce-atrai- numero-recorde-de-romeiros.html, acessado em 24 de fevereiro de 2012.
A obra de Júlio Chiavenato é uma importante referência entre os estudos que mostram a relação do cangaço com as classes dominantes. Chiavenato, Júlio. Cangaço, a força do coronel. São Paulo: Brasiliense, 1990.
Nenhum comentário:
Postar um comentário