As vozes de Calabar e a voz de
Calabar
uma reflexão sobre o discurso histórico
Elzimar Fernanda Nunes
A palavra do homem de consciência só pode transformar o passado, mas o passado não tem outra possibilidade de transformação que não seja o de ser contado de modo diferente.
CHICO BUARQUE E RUY GUERRA - CALABAR
Seguindo a linha do teatro político de grupos como o Arena, o CPC e o Opinião, no início da década de 1970, Chico Buarque e Ruy Guerra escreveram uma peça sobre Domingos Fernandes Calabar, homem considerado traidor pela história oficial por ter ajudado os holandeses a conquistarem parte do Brasil no século XVII. Como diversas outras peças da época, Calabar, o elogio da traição mesclava eventos da história brasileira, críticas à Ditadura Militar e MPB.
O diálogo travado por Calabar com os anos pós-64 é tão intenso que geralmente tem eclipsado o diálogo que a peça estabeleceu com os textos históricos que lhe serviram de suporte. Buarque e Guerra construíram seu texto seguindo a técnica da apropriação ou colagem, recortando e montando em outro contexto obras clássicas da historiografia brasileira como O valeroso lucideno e Triunfo da liberdade, de frei Manoel Calado; O domínio colonial holandês no Brasil, de Hermann Wätjen; Os holandeses no Brasil, de Pieter Marinus Netscher; História das lutas com os holandeses no Brasil, de Francisco Adolfo Varnhagen; Tempo dos flamengos, Antônio Felipe Camarão e Henrique Dias, de Gonsalves de Mello e Civilização holandesa no Brasil, de José Honório Rodrigues e Joaquim Ribeiro.
Segundo Afonso Romano Sant’Anna, “na apropriação o autor não ‘escreve’, apenas articula, agrupa, faz bricolagem do texto alheio. Ele não escreve, ele trans-creve, colocando os significados de cabeça para baixo”1. É
justamente o que Buarque e Guerra fizeram. Os referidos textos históricos foram, ao mesmo tempo, sua matéria-prima e suas vítimas. Buarque e Guerra os fizeram dizer o que não queriam dizer (pelo menos não intencionalmente), invertendo seus significados em Calabar. Percebe-se, portanto, o parentesco da peça com a paródia e com outros gêneros da literatura carnavalizada.
Embora o termo “paródia” remonte à Antigüidade Clássica, seu conceito moderno foi elaborado por Iuri Tynianov e retomado por Mikhail Bakhtin. Os dois estudiosos russos viram na paródia muito mais do que um dos diversos gêneros do cômico. Para ambos, a paródia é um elemento imprescindível no sistema da evolução literária. Textos paródicos estariam visceralmente ligados a momentos de transformação ao enfraquecer (ou tornar patentes as fraquezas) de formas literárias já demasiado gastas pelo uso e, por isso mesmo, tendendo à cristalização. Neste momento, as paródias cumpririam, ao mesmo tempo, o papel de demolidoras do passado e de prenunciadoras do futuro. Bakhtin, especialmente, vê no riso (e, por conseguinte, nos gêneros literários cômicos), o poder de desestabilizar dogmas e minar poderes constituídos Em apontamentos para uma obra que não chegou a ser elaborada, afirmou:
Apenas culturas dogmáticas e autoritárias são unilateralmente sérias. A violência não conhece o riso (...) A seriedade deixa mais pesadas as situações sem saída, o riso eleva-se acima delas. O riso não entrava o homem, libera-o (...) Tudo que é autenticamente grande deve comportar um elemento de riso, caso contrário fica ameaçador, aterrorizante ou grandiloqüente, e em qualquer caso, limitado. O riso levanta as barreiras, abre o caminho2.
Calabar parodia e, portanto, ridiculariza (torna risível) obras históricas que ajudaram a construir o mito que se formou em torno do mestiço Calabar e da presença holandesa no Brasil. Cada uma destas obras faz uma certa interpretação dos fatos históricos narrados, mas culminou como versão oficial aquela segundo a qual o sentimento patriótico brasileiro teria sido despertado durante os combates com os holandeses. Foi erigido um panteão de heróis que teriam comandado a “reconquista” do Brasil, tornando-se os primeiros “grandes patriotas”, a saber, o reinol João Fernandes Vieira, o luso-brasileiro Vidal de Negreiros, o índio Antônio Felipe Camarão e o negro Henrique Dias. Segundo Evaldo Cabral de Mello, este panteão foi elaborado pela sua “utilidade simbólica e a eficácia modeladora no contexto da ideologia nativista”3 e a presença de Henrique Dias e Camarão “reproduzia a estrutura da sociedade escravocrata e suas relações de classe”4, pois os dois serviriam de modelo comportamental para negros e índios por terem agido como “verdadeiros patriotas” ao se submeterem voluntariamente ao governo branco.
Quanto ao mestiço Domingos Fernandes Calabar, Mello assevera: “não contente de excluir o mestiço do panteão restaurador, o imaginário nativista encarnou o vilão na figura de um deles”5, notando que, segundo o discurso oficial “a deserção de Calabar deve ser atribuída à ambição excessiva especialmente encontrada nos mulatos”6.
Poucos brasileiros poderiam se reconhecer no panteão de heróis, visto que a maioria da população é mestiça. Conseqüentemente, à medida que a miscigenação prossegue, a população prefere se identificar com o elemento “branco”. Situação que resulta “tranqüilizadora para as camadas dominantes”7, pois abranda conflitos raciais inoportunos à ordem estabelecida, permitindo à maioria brasileiros assumir a visão de mundo da elite de origem européia como sendo sua. Por sua vez, as vozes divergentes (como foi o caso de Calabar, mestiço e favorável aos holandeses e ao Renascimento) são consideradas traidoras.
Assim, o discurso histórico oficial vinculou o surgimento do patriotismo brasileiro a um sentimento extremo de unidade sócio-cultural, que se ressente de qualquer indício de heterogeneidade, criando uma tradição cultural autoritária que facilita a implantação de sistemas autoritários no Brasil (como a Ditadura Militar, por exemplo) ao estabelecer uma comunidade monológica como modelo ideal de unidade pátria, onde tudo que foge à visão de mundo oficial é tido por suspeito.
Através de seu texto, o historiador tenta reconstituir o passado, revivendo- o de modo refigurado, construindo-lhe um sentido e uma lógica. Faz parte da estratégia de legitimidade do historiador tradicional convencer o leitor de que seu texto histórico coincide com o “real” do que se passou. Assim, o discurso histórico tradicional apresenta-se como verdade única, perfeita transcrição do passado. Para tanto, torna-se necessário ocultar o processo de seleção, recorte, acréscimo, modificação, supressão, apropriação de dados, eventos, vozes que marca a escrita histórica. A construção do discurso histórico também é feita pela técnica de apropriação e colagem. “A história é uma colcha de retalhos”8, afirmou Bárbara em Calabar.
Neste ponto, o discurso histórico aproxima-se do discurso literário, uma
vez que ambos são representações do real, elaboradas por um autor. Desde a Poética de Aristóteles há um esforço para se distinguir discurso histórico e discurso literário. Em sentido contrário White destaca o que há de comum entre eles quando afirma que “ambos desejam oferecer uma imagem verbal da ‘realidade’”9. O discurso literário representa esta “realidade” de forma indireta, através de técnicas figurativas, mas ela precisa se relacionar com o
universo extratextual para ser colocada na categoria de uma “verdade humana” tão “real” quanto os eventos históricos de que trata o historiador. De outro lado, o discurso histórico procura dar coerência e sentido a fatos isolados a fim de expressar também uma verdade. “É nesse duplo sentido que todo discurso escrito se mostra cognitivo em seus fins e mimético em seus meios. Neste aspecto, a história não é menos uma forma de ficção do que o romance é uma forma de representação histórica”10.
No nosso sistema social, ser historiador, ou seja, ser o guardião da
memória de toda uma comunidade é privilégio dado a poucos. É preciso uma legitimação que ocorra no plano sócio-acadêmico-cultural, concedendo ao historiador a autoridade de reconstituir o passado, permitindo-lhe escolher o quê e como a coletividade conhecerá sobre suas origens. Assim, o historiador pode elaborar mitos históricos que justificam o presente e tentam antecipar o futuro. Representante da elite luso-brasileira em Calabar, frei Manoel do Salvador já avisara: “o que importa não é a verdade intrínseca das coisas, mas a maneira como elas vão ser contadas ao povo”11.
Na construção do mito do Calabar-traidor, certas vozes e eventos foram
selecionados e outros suprimidos. Calado pôde contar sua história, mas a viúva de Calabar, Bárbara, não teve tal oportunidade. Gonçalves de Mello pôde escrever sobre as prostitutas holandesas no Recife do século XVII, mas elas não puderam falar sobre si mesmas. Varnhagen pôde condenar Calabar ao eterno inferno histórico, mas o mestiço não pôde se manifestar. Sobre todas estas versões da história, paira o historiador demiurgo, escolhendo quais eventos irá relatar, atribuindo sentido às ações e palavras de homens do passado para exaltá-los ou condená-los.
Calabar refigura o passado de modo diferente. Esgarçando os limites
entre literatura e história, entre fato e ficção, a peça recria as vozes de personagens que o discurso histórico esqueceu e rebaixa as que ele exaltou. Há vozes que foram caladas para sempre e a única forma de se chegar até elas não é pela factualidade do discurso histórico, mas pela ficcionalidade do discurso literário, pois para ouvi-las só nos resta imaginar o que teriam dito. Buarque e Guerra fazem a sua reconstrução destas vozes, dando-lhes o mesmo direito de manifestação diante não só de personagens respeitadas como Nassau e Albuquerque, como também diante de historiadores como Varnhagen, Boxer, Wätjen, Gonçalves de Mello, Netscher e outros.
Mas, e quanto à voz de Calabar, personagem em torno da qual versam tantos textos históricos a buscar o sentido das ações do mestiço brasileiro que apoiou os holandeses? Se os historiadores tradicionais falaram por ele,
re(a)presentando sua voz a partir de uma interpretação de suas ações, teriam Buarque e Guerra se concedido a legitimidade de também recriar a voz de Calabar?
Apesar de recriarem ficcionalmente tantas vozes, Buarque e Guerra não reconstituíram a voz do mestiço. Durante toda a peça, Calabar nunca é visto ou ouvido. Não há sequer um ator a representá-lo em cena. Só o conhecemos através do que os outros falam sobre ele. Neste sentido, a peça imita o discurso histórico uma vez que nele também só conhecemos Calabar pelo que os historiadores dizem. Todavia, enquanto a história oficial se coloca como reprodução fidedigna de uma voz que não pôde ser registrada, Buarque e Guerra optaram por re(a)presentar não a voz do mestiço, mas as vozes que tentam interpretar suas ações.
Calabar se constrói não como um texto dramático padrão – com nó, clímax e desfecho – mas como um debate que prossegue ao longo de vários episódios semi-independentes, onde ouvimos vozes de governadores, guerreiros, padres e prostitutas cada qual com sua versão particular de “Calabar”. E embora seja possível entrever a voz Bárbara como sendo aquela com a qual os autores mais se identificam, a questão é que Bárbara demonstra dúvidas e incertezas, afastando-se de qualidades essenciais à legitimação do historiador tradicional. Sintomaticamente, Bárbara se apresenta à platéia nos seguintes termos:
Se os senhores quiserem saber por que me apresento assim, de maneira tão extravagante, vão ficar sabendo em seguida, se tiverem a gentileza de me prestar atenção. Não a atenção que costumam prestar aos sábios, aos oradores, aos governantes. Mas a que se presta aos charlatães, aos intrujões e aos bobos de rua12.
Assim, a autoridade de Bárbara e, por conseguinte, dos autores que com ela se deixam identificar, baseia-se não na “verdade inquestionável” que a historiografia tradicional ostenta, mas na liberdade irreverente dos “bobos”. Bakhtin considera que ao assumir a máscara de bobo ou de bufão, o autor ganha a possibilidade de estranhar, questionar, e denunciar “toda espécie de convencionalismo pernicioso, falso, nas relações humanas”13. Trapaceiros, bobos e bufões são figuras que não compreendem o mundo, e por isso indagam- no e desmascaram-no. São seres excêntricos, no sentido de que não assimilam as convenções sociais que todos os demais conhecem bem. Não necessariamente por rebeldia, mas também por uma certa “ingenuidade” de quem vê a sociedade com olhos estrangeiros.
Portanto, Calabar é uma história-bufa, escrita sob a máscara de um
historiador-bufão que desconstrói o discurso histórico oficial – questionando conceitos como traição, identidade nacional, pátria e patriotismo – para depois chamar o público a tomar parte no debate, quando pela voz de Bárbara desafia:
Esperais um epílogo do que vos foi dito até agora? Estou lendo em vossas fisionomias. Mas sois verdadeiramente tolos se imaginais que eu tenha podido reter de memória toda essa mistura de palavras que vos impingi (...) Por isso em lugar de epílogo, eu quero vos oferecer uma sentença à guisa de charada: odeio o ouvinte de memória fiel demais14.
Nenhuma das vozes da peça é portadora de uma verdade absoluta, de modo que cabe ao leitor/espectador tentar construir sua própria versão da história. Todavia, tendo procurado reinventar o discurso histórico, trazendo de volta a diversidade de concepções existentes nas sociedades humanas, um historiador-bufão não iria querer que algum leitor/espectador ambicionasse ter retido “de memória toda essa mistura de palavras”, arrogando-se o direito de articular uma verdade final que calasse todas as outras vozes, dentro e fora da peça. A tal possível leitor fica a advertência: “odeio o ouvinte de memória fiel demais”.
Segundo Jacques Le Goff, “a memória é um elemento essencial do que
se costuma chamar identidade, individual ou coletiva (...) mas a memória coletiva não é somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder”15. Justamente por servir à criação de uma identidade coletiva, o controle da memória é um dos mais fortes meios de dominação simbólica que possa existir e, nem por outro motivo, o sistema instituído seleciona as vozes com “autoridade” para re(a)presentá-la.
Depois de desestruturar um mito elaborado pelo discurso histórico, Buarque e Guerra relativizaram a memória, recriminando a pretensão de que se possa detê-la por completo (afinal a memória é sempre assombrada pelo esquecimento), devolvendo a memória a toda a coletividade e tornando possível a construção de uma outra tradição cultural e historiográfica, desta vez marcada pela pluralidade e pela democracia.
Notas
Este artigo reproduz parte da dissertação de mestrado A reescrita da história em Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra, defendida na Universidade de Brasília em 2002.
- SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, paráfrase & cia. São Paulo: Ática, 1988. p. 46.
- BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 374.
- MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 195.
- Idem, p. 224.
- Idem, ibidem.
- Idem, p. 195.
- Idem, p. 223.
- BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Op. cit., p. 119.
- WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 1994. p. 138.
- Idem, ibidem.
- BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Op. cit., p. 115.
- BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Op. cit., p. 6.
- BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora da Unesp, 1988. p. 278.
- BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Op. cit., p. 119.
- LE GOFF, Jacques. História e memória. 2a ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. p. 476.

Elzimar Fernanda Nunes - “As vozes de Calabar e a voz de Calabar: uma reflexão sobre o discurso histórico”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, no 21. Brasília, janeiro/junho de 2003, pp. 105-11.
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