quarta-feira, 11 de setembro de 2013

ESCRAVIDÃO E ABOLIÇÃO -Leopoldo Costa


Os mitos costumam ser duradouros. Por isso, nunca é demais combatê-los. Um desses mitos é, sem dúvida, o de que a história da escravidão estaria irremediavelmente perdida por causa da chamada “queima dos arquivos”. Ainda há pouco, a professora Manuela Carneiro da Cunha, presente nesta mesa, nos falava na reação que provocara ao revelar, em Paris, que pretendia estudar a escravidão no Brasil. Enquanto expunha o objeto de suas preocupações intelectuais, uma amiga se mostrava estupefata com a escolha de um tema cujo suporte documental – imaginava ela – fora inteiramente transformado em cinzas.

Pouco antes de vir para o nosso encontro tive em mãos um dicionário nagô-português. O autor dedica o seu trabalho a diversas autoridades e, de forma muito especial – e irônica –, a “Rui Barbosa por ter mandado queimar todos os arquivos existentes neste país sobre o tráfego de escravos africanos, deixando-nos sem dados, acervo e, principalmente envergonhados por não ter como codificar nossas origens”1. José Alípio Goulart, da mesma forma, abre o seu trabalho sobre a rebeldia negra reproduzindo a decisão ministerial de 14 de dezembro de 1890 sob o seguinte título:“eis a razão pela qual jamais se poderá escrever a história completa da escravidão negra no Brasil”.2

Trata-se, como se pode ver, de uma acusação grave. E recorrente. E de tanto ser repetida, já está quase virando verdade. Vamos aproveitar, pois, para dizer algumas palavras sobre esta questão.

Na verdade, os nossos arquivos estão cheios de papéis referentes à escravidão. E Rui pode ser acusado de tudo, menos de ser ingênuo a ponto de imaginar que fosse possível apagar, dois anos depois, uma “mancha” de quatro séculos. O que está em jogo é outra coisa, evidentemente.

Desde as primeiras leis emancipacionistas que os proprietários de escravos levantam a questão da indenização. As pressões começam com o debate sobre a Lei do Ventre Livre (1871), crescem com a dos Sexagenários (1885) e atingem o clímax com a de 13 de maio de 1888. As pressões – e quem conhece este país pode imaginar – foram tremendas. Basta lembrar que a discussão do Projeto Dantas – que concedia liberdade aos 60 anos – atravessou três gabinetes (Dantas, Saraiva e Cotegipe) e só passou depois que aquele limite já por si excessivo, foi ampliado em cinco anos.

Depois de 13 de maio, que veio sem indenização, os ex-proprietários, poderosos e influentes, aumentam as pressões. O chamado Manifesto Paulino, para as eleições que teriam lugar no ano seguinte, recomendava explicitamente que fosse reconhecido, aos ex-senhores, o direito à indenização, uma primeira grande “socialização das perdas” na história do Brasil. Contra isso é que se levantam os abolicionistas, o deputado Joaquim Nabuco à frente, e propõem a destruição dos livros de matrícula existentes na Fazenda.

Em pleno governo provisório da república, as pressões não diminuem, ao contrário, organiza-se um banco que tinha a finalidade exatamente de concentrar os fundos para a indenização dos antigos senhores ou seus herdeiros. Esta iniciativa era encabeçada por Anfriso Fialho, líder republicano com grande penetração nos meios militares e, portanto, no governo.

O ministro da Fazenda responderia ao requerimento pedindo autorização para esse banco com o seguinte despacho: “Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos não onerando o Tesouro. Indeferido. 11 de novembro de 1890”.3

No dia 14, ainda sob pressão dos grandes proprietários, Rui assina o despacho ordenando a queima dos livros e documentos “em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade com a grande massa de cidadãos que, pela abolição do elemento servil, entrava na comunhão brasileira”.4 Trata-se, como se pode perceber, de pura retórica para encobrir a finalidade verdadeira: pôr uma pá de cal nas pretensões de escravocratas impenitentes. O fato chegou a confundir historiadores como Nina Rodrigues5, mas não Lacombe6, Honório Rodrigues7 ou Robert Slenes8. Gilberto Freire, embora cometa algumas imprecisões, fala dos “motivos ostensivamente de ordem econômica”, que teriam guiado o ministro.9

Chegamos ao ponto. Queimar documentos, como sabemos, não é uma atitude louvável. É o tipo da coisa que exaspera os pósteros. Mas, o que vale mais, a vida concreta, o real com suas emergências, ou o assunto dos historiadores? Eu não tenho dúvida que a vida vale mais. Não pensamos assim quando, em 1789, os camponeses franceses invadem castelos e cartórios para queimar os papéis onde estava firmada a sua submissão? Os historiadores condenam o campesinato por esta “queima dos arquivos da servidão”?

O ato de Rui Barbosa foi um ato político, de vida pulsante. Outra coisa é considerar, depois desse ato político, a “queima comemorativa”,  festiva, digamos, que se lhe seguiu. Tal o ímpeto desse movimento que, já em 1891, no dia 13 de maio, inaugurou-se, na sede do Lloyd, no Rio de Janeiro, a seguinte placa:

Aqui foram incinerados os últimos documentos da escravidão no Brasil”

Em que pese o otimismo algo ingênuo desse bronze, as festividades do 13 de maio levaram muita coisa importante para a terra do nunca mais. E o que é mau não dura pouco. Ainda em 1904, por exemplo, o diretor do Arquivo da Diretoria do Interior e Justiça, em Niterói, encontrou, sob a guarda de sua repartição, diversos documentos relativos à escravidão. Dirigiu – e foi prontamente atendido – um pedido ao secretário-geral do Estado. Queria, “a exemplo do que se procedeu nas repartições da União ao tempo do governo provisório (...) mandar incinerar todos os restantes livros e mais documentos (...) como singela, porém significativa comemoração da Lei Áurea de 1888”10.

 Está claro, porém que essa queima “não-política” no sentido grande, mas comemorativa, engrossadora, como se dizia na época, é uma coisa muito diferente: aqui já não pulsa o quente da vida, o fogo do tempo.

 Podemos, portanto, salientar três pontos:

1º) O gesto de Rui, antes de ser prova de ingenuidade, ou de maquiavelismo contra a raça negra, foi um     golpe contra a “socialização das perdas” da escravidão.

2º) Não impossibilitou, nem de longe, as pesquisas sobre “as nossas origens”. A bibliografia sobre a matéria é imensa e, como podemos ver neste encontro, continua dando provas de vitalidade.

3º) Estamos longe de conhecer – já não digo levantar ou catalogar –, mas conhecer mesmo, uma massa documental considerável.
 
Ainda uma palavra, para terminar. Ontem foi defendida, aqui, a ideia de que não podemos conhecer a história do Brasil sem a história de Portugal. Trata-se de uma proposta inteiramente justa, é claro. Mas o que dizer da história da África, mais ausente de nossos currículos do que o Extremo Oriente? Trata-se de um verdadeiro escândalo educacional, dada a importância do tema não só para a história, mas para a própria construção e integração da auto-imagem do povo deste país. Eis aqui, portanto, um combate justo pela história.

Notas

1  Eduardo Fonseca Jr., Dicionário yorubá (nagô)—português, Rio de Janeiro, Sociedade Yorubana Teológica de Cultura Afro-Brasileira, 1983.
2 José Alípio Goulart, Da fuga ao suicídio: aspectos de rebeldia do escravo no Brasil, Rio de Janeiro, Conquista, 1971.
3 Diário Oficial, 12-11-1890/p.5.216.
4 Ibid, 18-11-1890, p.5.845.
5 Nina Rodrigues. Os africanos no Brasil, 3ª ed. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1945, p.51-2.
6 Américo, Jacobina Lacombe, “Fontes da História do Brasil: perigos de destruição”, Franca, Memórias da I Semana da História, 1979, p.245-9.
7 José Honório Rodrigues. A pesquisa histórica no Brasil, 3ª ed. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1978, p.203-4.
8 Robert W. Slenes, “O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão do século XIX”, Estudos Econômicos, São Paulo, 13 (1): 117-149, jan-abr.1983.
9 Gilberto Freire, Casa-grande & senzala, 7ª ed., Rio de Janeiro, José Olímpio, 1952, 2v., p.515.
10 Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 11-5-1904, p.2.

Por Eduardo Silva em trabalho apresentado na V Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH) na cidade de São Paulo, em 1986.. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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