FORMAÇÃO
SÓCIO-ECONÔMICA DE ALAGOAS: O PERÍODO HOLANDÊS (1630-1654), UMA MUDANÇA DE
RUMO.
Prof. Dr. JOSÉ
FERREIRA AZEVEDO
(O texto integral
encontra-se na Biblioteca Central da Universidade Federal de Alagoas e, em
breve, na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade de São
Paulo – www.teses.usp.br).
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Emanoel
Soares Veiga Garcia (Orientador)
Prof. Dr. Douglas Apratto
Tenório
Profª
Drª. Lúcia Maria Machado Bógus
Prof. Drª.
Vera Lúcia Amaral Ferlini
Prof. Dr. Wilson do
Nascimento Barbosa
APRESENTAÇÃO
Um dos temas mais recorrentes
de nossa historiografia, no sentido de exaltar o valor e o heroísmo de nossa
gente, é o período holandês e os seus grandes eventos militares –
destacando-se, aqui, a figura de Domingos Calabar, considerado o grande herói
e figura representativa de sua cidade, Porto Calvo. Entretanto, a presença
holandesa em Alagoas é tratada, quase sempre, pela historiografia, como uma
mera seqüência de fatos (quando não, um amontoado de fatos) sem significados na
formação da sociedade alagoana.
Tem sido uma das nossas maiores preocupações, desde a
época do curso de graduação, tanto do ponto de vista acadêmico como pelo desejo
de contribuir para a compreensão da intricada realidade alagoana, procurar
explicações mais consistentes para aquele período de nossa história. Durante os
anos de 1989 a 1992, tivemos a oportunidade de participar ativamente de um
projeto de Arqueologia idealizado por Aloísio Vilela de Vasconcelos, arqueólogo
da Universidade Federal de Alagoas e estudioso do período holandês e dos
quilombos em Alagoas. O projeto visava a delimitação dos espaços ocupados
durante as lutas e a recuperação de artefatos que pudessem subsidiar a
reconstrução histórica e o ambiente cultural da época, a partir de escavações
arqueológicas em Costa Brava, região do atual município de Paripueira, cerca de
trinta quilômetros de Maceió, onde os invasores instalaram uma fortificação em
1635 (o local até hoje é conhecido como o Morro do Forte). Na fase de estudos
para a elaboração do projeto, e principalmente durante sua execução,
constatamos a natureza puramente descritiva dos trabalhos relacionados ao
período, sem grandes preocupações de análise econômica e social. Imbuídos
também de grande curiosidade intelectual, pusemo-nos a questionar alguns
aspectos daquela história, ao nosso ver, ainda mal contada. Quando surgiu a
oportunidade do curso de doutoramento, já tínhamos em mente qual o projeto que
tentaríamos realizar...
Costuma-se lembrar sobre o período holandês que
"parece já nada haver de original para dizer", em vista da extensa
bibliografia produzida sobre o assunto. De fato, o período foi (é) bastante
estudado, mas ainda há muitas coisas nebulosas esperando pelos pesquisadores.
Basta dizer que no arquivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de
Pernambuco (IAHGP) encontram-se muitos documentos da época ainda não traduzidos,
sem falar dos arquivos da Holanda. O desconhecimento do idioma holandês, como é
o nosso caso, é um grande obstáculo para os estudiosos brasileiros, sem contar
que, nas próprias entidades onde estão guardados os documentos não existem
tradutores ou paleógrafos para a exaustiva tarefa. Resta-nos recorrer aos
inúmeros trabalhos e traduções publicados desde o século XVII e aos documentos
já identificados e catalogados.
Como não se pode pesquisar obviedades –
o pesquisador deve descobrir coisas ou indicar novos caminhos numa determinada
área de conhecimento – nem ficar
"olhando para nosso próprio umbigo", como diz Luiz Felipe de
Alencastro, procuramos oferecer uma nova visão, ou interpretação, daquele
período histórico, sem a provincianização que nos leva ao isolamento, à
não-percepção do mundo, por conseqüência, à não-compreensão de nossa realidade.
Nossa hipótese de trabalho é qualitativa, assim explicitada: numa
determinada formação econômico-social, um fator externo, sob determinadas
condições objetivas, pode favorecer a moldagem de rígidas estruturas de
dominação e redirecionar atividades econômicas. Particularizando o caso de
Alagoas, o processo de formação de uma economia diversificada foi interrompido
pela ocupação holandesa do seu território, na primeira metade do século XVII. A
invasão provocou uma brusca mudança de rumo no desenvolvimento das forças
produtivas locais. Implica, portanto, num esforço de interpretação pessoal.
Não queremos ir na contra-mão da história, afirmando, ou especulando,
algo inexistente. Consideramos, porém, que ao historiador não cabe apenas
reconstruir (ou afirmar) os fatos; deve também oferecer linhas alternativas de
interpretação ainda não consideradas ou vistas como fantasiosas.
Gostaríamos de esclarecer que a denominação ALAGOAS é
usada, neste trabalho, para designar ora a região das lagoas, ora o território
do hoje Estado de Alagoas. No litoral centro da parte meridional da Capitania
de Pernambuco, que vai do rio Una ao rio São Francisco, localizavam-se as duas ALAGOA
(no singular): a DO NORTE e a DO SUL.
Nos documentos da época considerada em nosso estudo, a expressão "as
Alagoas" refere-se àquela região. Em alguns pontos, porém, a expressão
designa todo o território, de acordo com o contexto onde é utilizada.
Não pretendemos superar os outros ou corrigi-los, ou
mesmo preencher as grandes lacunas da historiografia alagoana, mas esperamos,
modestamente, contribuir para uma Teoria Geral da História de Alagoas. Se
conseguirmos, também, contribuir para que outros despertem para estudos mais
analíticos, mais completos e profundos, principalmente os jovens que estão na
Universidade, já nos daremos por satisfeitos.
RESUMO
Ao definir nosso objeto de pesquisa tomamos como
referenciais os conceitos fundamentais do materialismo histórico, que são os de
modo de produção e de formação econômico-social. Adotando essa opção
teórico-metodológica, objetivamos analisar a ocupação holandesa de 1630-1654 e
os processos econômico-sociais por ela desencadeados, procurando contribuir
para uma teoria da formação social alagoana demonstrando, se possível, a
mudança de rumo no desenvolvimento de nossas forças produtivas naquele período.
É ponto recorrente na nossa historiografia considerar
a formação e o desenvolvimento de estruturas a partir de uma premissa que
julgamos falsa: a vocação de Alagoas para o açúcar. Nossos
pesquisadores, talvez sem exceção, não atentaram devidamente para o fato de que
Alagoas, até a ocupação holandesa, era a fonte abastecedora da colônia de
produtos variados (feijão, milho, mandioca, batatas, carne, couro, fumo,
algodão...), possuindo poucos engenhos (15, a maioria, 9, na região de Porto
Calvo). Já em fins do século XVII, o território contava com 72 engenhos. A
explicação para esta inversão está na própria lógica do sistema de
colonização português, voltado para o mercado externo do açúcar, mas também
devido à interferência de um fator estranho ao processo histórico local de
formação das estruturas sociais e econômicas.
Talvez, por sua localização geográfica mais distante
da sede da Capitania, Recife, Alagoas teria sido condenada ao isolamento, o que
favoreceu a formação de estruturas sociais mais rígidas e, também, o
desenvolvimento de atividades econômicas mais diversificadas, cujas tendências
estavam delineadas antes da invasão.
Podemos considerar a invasão holandesa um fato
histórico de primeira ordem, pois (no caso de Alagoas, pelo menos) provocou uma
mudança de rumo radical, cujas consequências repercutem até hoje, como
procuraremos demonstrar em nossa tese.
PALAVRAS-CHAVE:
Alagoas; Colonização; Período Holandês; Forças Produtivas; Diversificação
Econômica.
INTRODUÇÃO
A questão da identidade, a luta contra a miséria e a
dependência, a busca premente (e, até mesmo, desesperada) da superação da
ignorância e dos mecanismos de dominação que impõem um estado de profunda
alienação, têm sido uma constante na vida dos povos colonizados, mormente agora
quando o mundo caminha a passos largos para uma integração plena em todos os
sentidos, surgindo associações que inevitavelmente conduzirão à aldeia
global...
Verifica-se, atualmente, uma universalização acelerada
dos processos sócio-políticos e econômicos. Cada vez mais somos globalizados.
Corremos o risco de perder nossa identidade nacional, mesmo que isto
seja algo de difícil definição. As economias (e culturas) cada vez mais
internacionalizadas justificam e reforçam a necessidade da abordagem,
especialmente econômica, de uma determinada região num contexto amplo, mundial,
realizando estudos comparativos das experiências regionalizadas. Só assim,
conhecendo melhor os movimentos e os processos específicos da nossa própria
formação histórica (e também as suas relações com o mundo nos períodos
estudados), poderemos interagir de forma equilibrada com as demais sociedades,
superando os eventuais sentimentos de inferioridade ou mesmo de superioridade.
Essa questão vem sendo objeto de estudo de
especialistas de diversas áreas que se dedicam à análise da realidade,
procurando não apenas explicá-la mas também de alguma forma contribuir para sua
transformação. Cada autor (mesmo os acadêmicos, que produzem obras de caráter
científico) tem seu estilo e mostra sua própria visão e concepção a respeito do
tema por ele abordado. Na verdade, mesmo considerando que toda pesquisa tem um
comprometimento (político, ideológico, religioso, cultural...), pois procura
sempre demonstrar com evidências uma hipótese resultante das motivações do
pesquisador (não existe neutralidade), devemos ser vacinados contra
estereótipos ideológicos e procurar, na pesquisa bibliográfica e documental, os
elementos que nos permitam ter uma visão crítica, comparando concepções e
interpretações e daí tirando conclusões. Historiadores não são profetas, mas às
vezes são tentados a especular como a história poderia ter sido...
No campo da História encontramos análises fundamentais
em autores como Frédéric Mauro, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e
outros de igual porte (aos quais recorreremos no decorrer deste trabalho),
demonstrando que, para se compreender o presente, é preciso voltar no tempo e
buscar, no passado, as informações que ajudem a explicar a realidade e o
caráter de um povo.
O imaginário popular nordestino é muito vasto e rico.
Nas regiões onde a presença dos holandeses foi mais forte (do Rio Grande do
Norte até Alagoas), desde ruínas encontradas nas cidades ou encobertas pelo
mato até a existência de túneis nunca explorados ou sequer localizados, e
também a busca de fabulosos tesouros enterrados (as ricas botijas) –
até Igrejas católicas do século XVIII teriam sido construídas pelos
holandeses... – tudo nos transmite a sensação de que o povo
não esqueceu os galegos e deles se lembra até com carinho¹.
Os judeus também estão presentes nessa memória, sempre vinculados às espertezas
do comércio e ao trato com o dinheiro (para o povo, todo judeu é ladrão... ou
muito sabido). Este fenômeno torna-se ainda mais intrigante quando se
verifica que os holandeses não fizeram uma obra colonizadora, pois seus
objetivos eram bem outros.
O povo tem a capacidade de
preservar em sua memória determinados fatos, acontecimentos ou características
específicos de uma época ou mesmo de certas pessoas. Isto aparece nas crenças,
lendas e tradições. Essas marcas moldam o pensamento e o comportamento
popular e, quase sempre, são usadas pelas elites para manter sua dominação.
Sabemos que a memória é um fator dinâmico na interação entre passado e
presente, mas o desconhecimento das verdadeiras razões de um fato e a
manipulação das várias interpretações desse fato, criam mitos que
mascaram a realidade e ajudam a manter o status quo.
O caso de Alagoas apresenta
particularidades que a tornam digna de uma observação mais acurada. Parece que
vivemos, aqui, uma crise permanente... Desde o início, por sua localização
geográfica (área mais distante da sede da Capitania, Recife), Alagoas teria
sido condenada ao isolamento. Isto favoreceu a formação de estruturas sociais
mais rígidas e, também, o surgimento de atividades econômicas mais
diversificadas que, infelizmente, como tentaremos demonstrar, não prosperaram.
Claro está que não podemos ver a singularidade
alagoana desvinculada das determinações gerais do complexo período histórico
considerado (objeto de estudo de inúmeros pesquisadores que produziram obras
estimulantes e que servem de apoio para aqueles que procuram compreender sua
realidade local). Procuramos apenas, de forma simples e objetiva, baseados em
textos e documentos, em sua maioria, já conhecidos, chamar a atenção para
alguns aspectos negligenciados ou despercebidos pelos estudos feitos até agora
sobre o nosso processo histórico, tomando como referência principalmente as
categorias formação econômico-social e divisão regional do trabalho, sem entrar
em grandes e exaustivas considerações metodológicas.
A hipótese explicitada na nossa apresentação indica
claramente o objeto de pesquisa: a mudança de rumo no desenvolvimento
das forças produtivas na região das Alagoas, ocorrida com a invasão holandesa
no período de 1630/1654. Após estas considerações, cremos que algumas questões
podem ser colocadas, entre outras que surgirão no desenvolvimento do texto, em
variados níveis de complexidade e sem nenhuma ordem hierárquica, agrupadas de
acordo com a aproximação das idéias nelas contidas. São questões que nortearão
a linha de raciocínio. Nem todas terão resposta ou serão consideradas em
profundidade neste trabalho.Algumas, esperamos esclarecer na apresentação final
dos resultados da pesquisa:
Entre outras que
surgirão no desenvolvimento do texto, evidenciamos:
1) O patriarcalismo e
o patrimonialisno (a não-distinção entre o público e o privado), típicos da
sociedade e do Estado portugueses, eram também a marca registrada da sociedade
colonial. Esta sociedade, montada em foros de fidalguia e favorecimentos,
viu-se de repente convivendo com pessoas e regras diferentes, subordinadas a
uma legislação baseada em princípios liberais e republicanos. O choque era
inevitável.
Considerando que
tínhamos (na realidade, ainda temos) uma sociedade iletrada, onde não havia a
palavra impressa, que permitiria a circulação de idéias, de que forma as novas
concepções teriam influenciado o comportamento das elites coloniais? Sua
condição colonial poderia mudar com os invasores? Houve, de alguma maneira, a
exposição do senhor colonial à influência direta do mercado mundial
capitalista? Será que, com a presença dos holandeses, os produtores locais não
passaram a ter uma nova visão de relações comerciais, percebendo as vantagens
da negociação direta (mesmo através da West-Indische Compagnie - WIC) com o
mercado mundial? A Coroa portuguesa não teria percebido o risco de evolução
desse germe deixado pelos holandeses e, por isso, procurou consolidar,
com mais rigor, as estruturas de dominação e exploração após a reconquista?
2) No inóspito
território não havia o sentimento da conquista, apenas a determinação de
fazer a vida explorando a terra de acordo com a vontade da coroa, ou
seja, produzir açúcar em grande quantidade para o mercado europeu. Entretanto,
na região sul da Capitania delineavam-se outras atividades econômicas que
poderiam defini-la como fonte de abastecimento de produtos diversificados e
necessários ao consumo interno da colônia. Veremos que os holandeses perceberam
a importância de se estimular o desenvolvimento dessas atividades,
transformando de fato a região em fonte abastecedora. Infelizmente, os
interesses da cúpula da WIC também estavam voltados para o produto de
exportação, o açúcar, e foi dada pouca atenção aos reclamos dos seus
representantes coloniais.
Em vista da ausência
de dados estatísticos confiáveis – "o grande
espantalho dos que se dedicam ao estudo de nossa evolução econômica", como
diz Mafalda P. Zemella (1990, p. 31) – tentaremos fazer
cálculos aproximativos a partir de algumas informações contidas principalmente
em relatórios holandeses, para responder a questões do seguinte teor: qual o
nível da produção para dentro – tipo e quantidade
dos produtos? Qual a população dos engenhos e vilas? Em quais áreas do
território concentrava-se essa produção? Com estas informações, é possível
intuir formas de relações sociais diferenciadas daquelas das áreas mais
intensamente açucareiras?
3) Podemos falar em alagoanidade?
Será que as lutas em território alagoano (e o comportamento de seu povo,
simbolizado na figura de Calabar), não contribuíram para o isolamento da
região, após a restauração? As lutas não teriam despertado um sentimento local
de independência? (Devemos lembrar que na época não havia Alagoas,
e sim uma região inóspita no sul da Capitania que, por sinal, sempre recebeu
poucas atenções do governo, o que favoreceu a formação de elites autoritárias e
violentas.). Nesse quadro de isolamento, quais os fatores internos que contribuíram
para sustar o desenvolvimento das forças produtivas locais no sentido de uma
diversificação da economia?
TÓPICOS:
1 - O atraso endêmico
do Nordeste e de Alagoas, em particular, tem raízes profundas no período
colonial. Cabe ao historiador, atento às prioridades sociais, escolher temas de
pesquisa que lhe permitam identificar e analisar as estruturas sócio-econômicas
que se foram formando num determinado momento histórico e que mostraram
características de longa duração.
2 - Infelizmente, desde
cedo sentimos, na historiografia alagoana, a ausência de estudos mais objetivos
sobre a formação econômico-social de Alagoas, notadamente no que se refere aos
dois primeiros séculos de nossa história.
3 - Temos uma história
virgem, à espera de quem se disponha ao sacrifício de percorrer arquivos
empoeirados que, quase na sua totalidade, estão fora de Alagoas, mormente no
que se refere à documentação do período colonial. Quase todos eliminam os
homens reais da história, aqueles que lutam cotidianamente pela
sobrevivência, e dedicam-se aos grandes homens e a seus grandes
feitos. Não se analisa em profundidade a realidade social e o envolvimento
do homem do povo – o verdadeiro sujeito
da história. Há mesmo, como afirma Dirceu Lindoso (1981, p.14-15), em grande
parte dos textos historiográficos alagoanos, implícita uma ideologia
antimultitudinária e de imputação criminal aos movimentos populares
4 - É interessante
observar que os invasores, notadamente no período nassoviano, perceberam que a
região sul da Capitania de Pernambuco prestava-se ao papel de celeiro, e
apresentaram, em seus relatórios ao comando da WIC (Companhia das Índias
Ocidentais), propostas de repovoamento desse território devastado pela guerra,
com incentivos à produção diversificada. Porém, os capitalistas da Companhia
estavam (também...) interessados no açúcar e não aprovaram os planos de
colonização, preferindo manter a região isolada, ou apenas como sentinela
avançada contra as incursões das forças luso-brasileiras. Até mesmo a retomada
da produção local de açúcar não recebeu a mesma atenção dada a outras áreas da
Capitania.
5 - Os estudos sobre a
formação da sociedade alagoana, principalmente a partir de O Bangüê nas
Alagoas, de Manuel Diégues Júnior, procuram mostrar que há uma vocação
para o açúcar em nossa terra. De fato, a teia de nossas relações sociais,
políticas, culturais e econômicas foi tecida a partir do núcleo central do
engenho de açúcar. Embora esta tenha sido uma característica de grande parte do
Nordeste, parece que em Alagoas foi mais forte e dominante. No entanto,
constatamos que nos primeiros tempos (pelo menos até a terceira década do
século XVII), delineava-se uma situação diferente: o sul da Capitania de
Pernambuco mostrava uma tendência para se tornar uma fonte permanente de
abastecimento, com o desenvolvimento de uma economia diversificada. Este
processo, em tese, foi violentamente interrompido com a invasão e não retomado
após a restauração colonial portuguesa.
6 - Na visão geral
sobre a historiografia alagoana paira a idéia de negatividade, não apenas no
que diz respeito a quantidade, como é ouvido geralmente, mas principalmente
quanto à qualidade. Os livros em geral seguem o factualismo (rigor cronológico,
pouca ênfase ao significado real dos fatos etc.) e não o estudo analítico. Como
afirmamos anteriormente, o povo não é visto como sujeito e a realidade
social não é devidamente analisada. Não queremos ser verborrágicos, mas cremos
que seja um fenômeno nacional, ou seja, na História do Brasil o povo não participa
dos grandes processos como a descolonização, a Independência, a Proclamação da
Republica, o desenvolvimento econômico. No entanto, é sempre presente, e
chamado, quando se exige sacrifícios – a exploração de sua
força de trabalho (escravo ou livre), guerras (ocupação holandesa,
Paraguai, conflitos mundiais), ajustes econômicos etc. Isto não quer
dizer que não devamos fixar e conhecer bem os personagens –
até nisso, porém, somos falhos. Nossa historiografia positivista não é
bem sedimentada, pois apresenta-se carente de nomes que se dispusessem a
vasculhar arquivos. Não podemos descurar dos fatos, pois isto nos leva a uma ignorância
generalizada do passado e não nos dá os elementos para a reflexão.
7 - Consideramos nossa
tese como uma modesta tentativa de explicação do processo histórico regional,
atendendo, mesmo limitadamente, a essa carência historiográfica. Nossa
motivação é contribuir para a compreensão da intricada realidade atual
alagoana. Quanto à sua viabilidade, constatamos a existência de documentação
ainda não estudada. No Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de
Pernambuco (IAHGP) há muitos documentos relativos ao período e a Alagoas que
ainda não foram devidamente manuseados por nossos historiadores. Mesmo no
Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) encontramos documentos do
período colonial (em fase de catalogação), não considerados por aqueles que se
dispuseram a estudar a história local. Com relação ao critério da
originalidade, mesmo sendo repetitivos, pois a isto já nos referimos
anteriormente, consideramos que a presença holandesa é vista geralmente nos
aspectos bélicos, militares, heróicos; requer uma análise da sua
influência (marcas) social e econômica.
CONTEXTUALIZAÇÃO:
8 - Aquele momento
(primeira metade do século XVII) insere-se num contexto fervilhante de idéias e
conflitos entre as principais nações européias, recém-saídas da medievalidade e
em pleno processo de expansão capitalista. Contexto no qual também nos
inserimos – embora anonimamente –
pois sofremos suas fortes influências na formação de nossas estruturas.
9 - Num mundo composto
por Estados absolutistas e marcado pela expansão comercial marítima européia, a
Holanda rapidamente impunha-se como potência mercantil liberal. Paralelamente
ao fenômeno holandês, ocorria a formação dos grandes impérios coloniais
ibéricos, fundados em princípios contrários ao livre comércio e que, aos
poucos, foram criando uma perigosa dependência das metrópoles aos produtos
coloniais.
10 - A ocupação
holandesa do nordeste brasileiro se insere, portanto, num contexto mais amplo
do que simplesmente como fruto de divergências políticas da Holanda com a
Espanha, no período da União Ibérica. A potência flamenga não iria conter sua
expansão capitalista apenas porque teve bloqueado seu acesso aos portos
portugueses... Veio buscar na fonte o produto que lhe permitia manter-se ativa
no mercado europeu.
11 - Sua presença aqui,
pelo menos em uma parte da Capitania de Pernambuco, foi como um choque:
provocou a interrupção de um processo diferenciado de formação sócio-econômica,
e possibilitou o surgimento de sentimentos de independência que, a princípio,
levou ao seu isolamento mas redundou, depois, na formação de outra Capitania, a
das Alagoas (criada por Decreto de D. João VI, em 16 de setembro de 1817).
12 - A conquista do
Nordeste foi uma empresa de uma empresa privada monopolística –
a Companhia das Índias Ocidentais.
13 - A WIC não tinha preocupações
escolásticas, que ainda marcavam as políticas dos outros Estados europeus –
idéia do justo preço e condenação da usura ("dinheiro não pode produzir
dinheiro").
14 - A Companhia também
não tinha nenhuma preocupação colonizadora, embora, após a conquista,
especialmente no período nassoviano, tenha realizado uma notável obra de urbanização
("Recife foi a primeira cidade brasileira com características de uma
grande cidade", afirma José Antônio Gonsalves de Mello, em Tempo dos
Flamengos). Até mesmo isto, porém, foi devido ao fato de que os colonos
holandeses não se adaptavam ao trabalho no campo e acabavam concentrando-se na
cidade, forçando o governo a criar condições para alojá-los.
SOBRE A DISTRIBUIÇÃO
DE TERRAS
15 - A distribuição de
terras, numa empresa de colonização controlada pelo Rei e seu estado-maior (o
estamento, lembrando Raymundo Faoro), teve como modelo a lei das sesmarias de
1375, criada para superar a crise agrária de produção e de desocupação, ou vadiagem,
do homem do campo. Também no século XVI a mesma lei serviu para atenuar uma
crise social e econômica, pois era grande a massa de excluídos na sociedade
portuguesa, desejosa de oportunidades de enriquecimento e ascensão social. Os
colonos (aqui incluídos os Capitães Governadores) não tinham a posse da terra,
mas o seu uso. A terra pertencia ao Rei e o colono deveria alimentar o mercado
metropolitano com sua produção, por intermédio dos mercadores autorizados. A
política de transportes e os negócios no porto de Lisboa garantiam a renda
real, além dos dízimos e obrigações cobrados aos produtores coloniais. Devemos
lembrar que estes, por força do pacto colonial, submetiam-se aos preços
e vontades da Corte e, por extensão, também dos negociantes.
As doações
vinculavam-se ao aproveitamento da terra. No Brasil houve adaptações, pois não
havia terras desaproveitadas, mas terras virgens. A imensidão
territorial estimulava a generosidade dos concedentes (o Rei ou os
Governadores) na doação de grandes extensões - "No Nordeste, foram
freqüentes as concessões de terras, mais largas do que Estados de nossos dias,
como as da Casa da Torre, dos Guedes de Brito, de Certão, etc." (FAORO,
1991, p.124). Muitas vezes as sesmarias eram subdivididas entre parentes (um
filho, um genro...) ou amigos. Nem sempre, porém, era feita com precisão a
demarcação dos limites, o que provocou, com o tempo, graves conflitos com
derramamento de sangue (e muitas petições à Corte para "nomeação de
ministro para fazer a demarcação de terras", como nos revelam os
documentos do Arquivo Ultramarino/Catálogo Brasil-Alagoas). Até o fim do século
XVII, não havia restrições quanto à concessão de mais de uma data a um mesmo
colono. Daí a existência de imensos latifúndios que se refletem na realidade
atual nordestina.
Servia também a
concessão de terras como título de afidalgamento, formando, com o tempo, uma nobreza
rural que passou a exigir, e exercitar, o poder de mando pessoal (político e
social), na sociedade que se constituía.1 O mandonismo do senhor
colonial se transformará depois, no Império e na República, no coronelismo
ainda hoje presente no sertão nordestino. O Estado, somente agora, no alvorecer
do século XXI, vai assumindo suas reais funções, embora ainda timidamente. No
caso de Alagoas, esse fenômeno ocorreu com intensidade desde o inicio, pois,
como já notara Adriaen van der Dussen em seu Relatório de 1638, também assinado
por M. de Nassau e M. van Ceulen, ao descrever as jurisdições da Capitania de
Pernambuco: "A Quarta, que nunca teve Câmara, sendo dirigida pro libitu
do mais poderoso do lugar (grifo nosso), começa ao sul de Serinhaém e se
estende até o rio de São Francisco". É neste documento que encontramos,
pela primeira vez, uma referência à natureza das relações sociais e à
organização política da região sul da Capitania. O caráter violento e
autoritário das elites locais, que perdura até hoje, já está assinalado num dos
primeiros e mais importantes documentos da nossa história. Parece que o
Regimento de Tomé de Souza (1548), instituindo o Governo-Geral, com novas
regras visando conter a crescente ânsia de autonomia da nobreza local,
não vingou por estas plagas. (O Regimento mandado por D. João III a T. de Souza
ordenava a "redistribuição de terras [improdutivas] a quem quisesse e
pudesse produzir" e que os senhores de engenho moessem a cana produzida em
áreas independentes. A reforma nunca foi feita, e o MST, hoje, ainda luta por
ela...).
LIBERDADE RELIGIOSA
16 - A famosa tolerância
religiosa dos holandeses existia na medida dos seus interesses econômicos. O
calvinismo era republicano, mas afirmava que cabia ao Estado apoiar a
verdadeira religião (a própria). Porém, organizando-se como República e
desejosa de atrair capitais para seus empreendimentos (a WIC foi uma das
primeiras S.A. da história do capitalismo), a Holanda não poderia reprimir a liberdade
de consciência, algo que, na Península Ibérica, significava liberdade
católica, ou seja, todos eram livres, desde que aderissem à obediência
ativa imposta pela Igreja. Aqui, no Brasil, a liberdade religiosa
foi, na verdade, uma estratégia para manter os portugueses como fiéis
colaboradores e para atrair os judeus para a colônia. Pelo Regimento elaborado
para o governo das terras conquistadas, caberia a um Conselho Político a
autoridade sobre a administração, as finanças, a polícia e a justiça, além de
zelar pela religião reformada, assegurando porém a liberdade de consciência a
católicos e judeus. Cabe ressaltar que os jesuítas, recusando a soberania dos
Estados Gerais das Províncias Unidas Neerlandesas, seriam banidos e seus bens
confiscados. A tolerância dos batavos não foi tão grande como faz parecer
alguns autores...
ESCRAVIDÃO
17 - Quanto ao
envolvimento dos holandeses com a escravidão, assunto bastante analisado por
Pedro Puntoni em A Mísera Sorte, desde o final do século XVI eram, os
batavos, ocasionais traficantes de escravos. Com a WIC passaram a ser,
de fato, traficantes, devido a possibilidade de lucros. Os flamengos não se misturaram
aos negros como em Curaçau e nas Guianas. No Brasil, os negros eram catolicizados,
embora praticassem o xangô. Além disso os holandeses tinham outra dificuldade,
pois não falavam português. Esta foi uma das razões porquê deixaram os engenhos
e a produção sob o controle dos portugueses e também porquê não impuseram sua
religião. Durante a ocupação, principalmente no seu início e na guerra pela restauração,
os escravos fugiam em grande número para Palmares, aproveitando que muitos
senhores portugueses abandonaram seus engenhos e fazendas. Os holandeses
chegaram a organizar duas expedições contra Palmares, pois os negros deveriam
ser reescravizados para a produção e a sua Meca destruída para não
atrair mais fugitivos.
18 - Quanto ao negro,
tanto Diégues Júnior como Alfredo Brandão, outro grande estudioso local, seguem
a linha proposta por Gilberto Freyre: "Apareceu para oferecer a sua grande
e inestimável colaboração na obra colonizadora". Brandão aceita o mito do negro
solidário, imbuído do sentimento de confraternização com seu senhor,
e cria outro mito, o da bondade do senhor de engenho alagoano, afirmando
que "os engenhos de Viçosa jamais presenciaram as cenas vandálicas da
escravidão"(apud DIÉGUES Júnior, 1980, p. 169). No mínimo, podemos
questionar: se lhe tivesse sido solicitada, será que o negro teria dado esse
tipo de colaboração? Devemos considerar as circunstâncias históricas da época
(grandes e profundas transformações sociais, políticas e econômicas), mas ao
negro não foi dada a opção de escolha.
PRODUÇÃO
19 - Do início da
colonização até a chegada dos holandeses, o quadro regional revela-nos uma
região inóspita, na periferia da Capitania, quase desconsiderada pelo Governo
colonial. Os determinismos do sistema de colonização português eram pouco
eficazes por aqui, a julgar pelas informações levantadas pelos estrategistas
batavos.
20 - Na relação de José
Israel da Costa (um judeu de origem portuguesa que viveu na Bahia antes da
invasão holandesa e que provavelmente residia nos Países Baixos por volta de
1636), dos 117 engenhos enumerados e listados com os nomes dos proprietários e
a produção de açúcar e retame (mel ou melaço) em arrobas, cerca de 10 situam-se
na região sul. Destes, apenas um, o engenho de Diogo Soares, na lagoa do sul,
tem registrada uma produção acima de 6.000 arrobas de açúcar, que o coloca
entre os sumamente bons. Dois estão entre os de menos porte e os
demais, com menos de 3.000 arrobas, podem ser considerados de terceira
categoria.
21 - Procuramos
verificar a classificação dos nossos engenhos pela média geral de
produção da Capitania. Pelas informações desse documento, constatamos que os
engenhos da região sul produziam, em 1623, uma média de 2.438 arrobas por
unidade, bem abaixo da registrada no total da Capitania, que era de 4.099
arrobas. Do total geral da produção (479.642 arrobas), a produção alagoana
correspondia apenas a 5% (24.381 arrobas).
22 - Nas décadas de 30
e 40, conforme relatórios de Dussen e de Walbeeck e Moucheron, quase todos os
engenhos estavam arruinados, devido a guerra, e o governo holandês não atendeu
aos reclamos para reativar a produção de outros gêneros. Após a restauração,
reiniciou-se a produção de açúcar.
23 - A região
sanfranciscana, considerada a partir do rio São Miguel, desde cedo mostrou sua
vocação pastoril. Nela, a economia açucareira não prosperou, "dando lugar
às fazendas de gado, já em grande número nos começos do século XVII e
particularmente durante o domínio holandês", como assinala Diégues Júnior
(cit., p.74). A economia agropastoril ali desenvolvida era grande fornecedora
de produtos diversos para toda a Capitania: gado, bastante farinha, muito
peixe, pau-brasil, âmbar. No relatório de Verdonck não encontramos engenhos na
região penedense mas, um pouco mais tarde, uma área tomou-se açucareira: a dos
vales dos rios Coruripe e Poxim, onde hoje se instala uma das maiores
indústrias de açúcar e álcool do Nordeste.
24 - No século XVII
(antes e no início da ocupação holandesa), Alagoas era um celeiro de vários
produtos. A destruição durante a ocupação e a posterior expansão da economia
açucareira, impediram o desenvolvimento diversificado da produção de alimentos,
ao ponto de, no final do século XIX e início do XX, o Estado tornar-se um
importador até mesmo de farinha de mandioca e outros produtos agrícolas
básicos, como reclamava, escandalizado, um relatório do Dr. Messias de Gusmão,
em 1904, referido por Diégues Júnior em sua obra clássica O Bangüê nas
Alagoas.
25 - Aqui enfatizamos a
questão fundamental: as tendências para a diversificação econômica, ao nosso
ver, estão presentes desde o início da colonização. Embora nas demais regiões
da capitania houvesse a lavoura de mantimentos, tida por Brandônio como uma (a
quinta) das seis coisas "com as quais seus povoadores se fazem
ricos", o território entre os rios Una e São Francisco apresentava-se
pródigo na produção de gêneros que abasteciam a Capitania, como nos mostra o
relatório de Verdonck (e nos demais relatórios holandeses).
26 - Na economia
colonial pré-capitalista, o sistema concentra-se na produção do açúcar,
seguindo os ditames metropolitanos e os interesses do comércio internacional. A
produção para dentro, evidentemente, não poderia ser incentivada ao
ponto de ameaçar a hegemonia da cana. Esta exigia a partilha da terra em
grandes propriedades nas mãos de senhores poderosos que, sob o controle
metropolitano, pudesse abastecer de açúcar os navios, rumo aos mercados europeus.
Não poderia haver concorrência de outros produtores, que levaria,
inevitavelmente, muitos proprietários à diversificação no uso de suas terras.7
O desenvolvimento das
forças produtivas era entravado por uma superestrutura com resquícios medievais
– o ideal de nobreza, o afidalgamento, era o
objetivo de quem se dispunha a vir para a colônia. Quase todos eram convencidos
pela visão edênica do Brasil, ideologia elaborada pelo estamento dirigente, que
prometia grandes oportunidades de enriquecimento e de realização pessoal. Na
realidade, todos viam-se presos às amarras do pacto colonial, obrigados a
dedicar-se à produção ou ao comércio do açúcar, nas condições estabelecidas
pela Corte (e também pela WIC, durante a ocupação). A produção para dentro
não recebia nenhum estímulo, restringindo-se àquela para consumo imediato e não
para a mercancia. Após a Restauração, o rigoroso fiscalismo passou a visar
também esta produção, à medida que se estabelecia a troca de produtos (couro,
carnes, aguardente, algodão, tabaco etc.) entre as várias regiões.
RESTAURAÇÃO
27 - Foi a economia
açucareira "a atração dos holandeses para o nordeste", nas palavras
de Manuel Diégues Júnior. Mas, embora Nassau tenha proposto o repovoamento do
território sul da Capitania para torná-lo fonte de abastecimento da colônia,
isto
[...] não foi feito. Alagoas permaneceu na
mesma situação [...]. A destruição, de fato, atingiu aos principais, senão a
todos os engenhos de açúcar então existentes no território alagoano: e o
período holandês, restabelecidas as tréguas que se prolongaram até 1645, não
permitiu o ressurgimento da cultura da cana de açúcar. O flamengo se preocupou
com a vida urbana, e esqueceu a organização rural. E os senhores de engenho
tiveram de preocupar-se menos com a reorganização de seus engenhos que com o
preparo da luta contra os invasores. (DIÉGUES Júnior, 1980, p. 101).
28 - Diégues Júnior
refere-se à luta pela restauração conduzida pela elite açucareira local contra
a WIC, quando esta passou a cobrar rigorosamente seus créditos concedidos e
refinanciados durante o governo de Maurício de Nassau.
29 - O desprestígio
político e econômico (embora responsáveis pela principal fonte de riqueza da
colônia), as pressões dos credores, ameaçando-os constantemente com a execução
judicial de suas dívidas, levaram os senhores de engenho a desencadear a
revolução restauradora. Se os interesses canavieiros não tivessem sido
contrariados, certamente seria bem mais difícil, senão impossível, a retomada
colonial portuguesa nesta região.
30 - Da mesma forma, se
a WIC tivesse colocado em prática as propostas de Nassau de colonizar
efetivamente a região, em especial o território sul, provavelmente seriam
plantadas as condições para a germinação de uma sociedade fundada em princípios
bem diferentes do modelo ibérico implantado mas ainda não consolidado. Mas,
como acentuamos na nossa panorâmica, a WIC não tinha nenhuma preocupação
colonizadora ou civilizatória – seus interesses eram
puramente comerciais.
31. A inaptidão dos
holandeses para a vida colonial produtiva talvez seja possível creditar-se ao
caráter mercantil de sua sociedade republicana. Dos chegados ao Brasil,
"só um ou outro arriscava-se a abandonar a cidade pelas plantações de
cana", como lembra Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil.
Quando tentou-se enviar camponeses, estes "deixavam-se ficar [na Holanda],
aferrados aos seus lares. Não os seduzia uma aventura que tinham boas razões
para supor arriscada e duvidosa" (HOLANDA, 1994, p. 34).
Sobre o malogro dos
planos de colonização na Nova Holanda, Charles Boxer contraria, em parte,
aqueles que afirmam a incapacidade (natural ou pelas características
mercantis da sua sociedade) dos holandeses para o trabalho árduo na terra:
[...] o seu insucesso em manter domínio efetivo
sobre o interior deveu-se, pelo menos em parte, ao fato de não terem sido mais
de três os anos (julho de 1642 a junho de 1645) em que isso foi possível.
Durante dezessete dos vinte e quatro anos de existência do Brasil neerlandês
nunca cessou inteiramente a luta na várzea, havendo ocasiões em que ela era
muito intensa. Nestas condições, tornou-se demasiado dispendiosa, se não de
todo impraticável, a colonização à custa de trabalhadores agrícolas do norte da
Europa, como era repetidamente advogado por João Maurício. Se, durante o
governo de João Maurício, tivessem os holandeses tido à sua disposição alguns
anos mais de paz, é possível que se houvesse conseguido instituir em larga
escala a emigração norte-européia. Isso é de admitir-se; mas é igualmente possível
que, continuando a dominação holandesa, Pernambuco viesse a ser nada mais do
que uma nova Surinam, isto é, uma colônia escravizada, da pior espécie. (BOXER,
1961, p. 203).
Boxer (cit., p.
209-210) também destaca o fato de que o Conde "fez o possível para
diminuir os males da monocultura. [...] mas esses esforços produziram [...]
poucos frutos, por causa da oposição teimosa dos lavradores e dos roceiros, que
preferiam concentrar-se na lavoura de açúcar, por ser a mais rendosa."
Os invasores não
conseguiram, ou não acharam conveniente, alterar o sistema de produção
açucareiro, lastreado nas relações escravistas, e os colonos holandeses,
na maioria soldados que recebiam pequenos lotes, não podiam aproveitá-los a
menos que se vinculassem a um senhor de engenho.11 Essa
"exigüidade da imigração holandesa para a zona rural da Colônia"
(MELLO, 1979, p. 165), foi um dos motivos principais para o sucesso das lutas
pela restauração.
32 - Aliás, com relação
às lutas pela restauração, cabe aqui uma rápida observação: a libertação,
ao contrário do que tenta passar uma certa historiografía, não resultou de uma
manifestação espontânea da massa ou do povo brasileiro. Sobre a
participação do povo, principalmente dos negros, nas lutas, M. Diégues
Jr. (op. cit., p. 168) afirma, corroborado por Gilberto Freyre: "Moradores
e cabras de engenho, gente do eito e da bagaceira, pessoal da moenda e da
casa-grande, juntaram-se todos no mesmo sentimento de confraternização com os
proprietários rurais, reagindo contra os holandeses". Não somos
"marxistas dos inflexivelmente ortodoxos", como Freyre refere-se, no
prefácio da obra de Diégues Jr., àqueles que não seguem sua linha, mas
considero bastante discutível a afirmação acima. O que determinou a reação dos
senhores contra os holandeses, como vimos, foi a mudança no relacionamento da
WIC com os produtores de açúcar. E o sistema patriarcal e quase feudal de
relações sociais e de produção não permitiu outra alternativa aos negros e ao povo
em geral, senão ficar ao lado dos senhores. Alguns, como Calabar, que tomaram
outra atitude, pagaram com a vida por sua ousadia. A revolta não foi popular,
até mesmo porque as camadas ditas populares não tinham nenhuma capacidade (nem
consciência) organizativa. O povo, como sempre, estava sob o controle
dos poderosos...
Com as Restaurações
(da coroa portuguesa, em 1640, e do Nordeste brasileiro, em 1654), a política
metropolitana acentuou o centralismo administrativo e a consolidação do domínio
colonial, com a criação de novos instrumentos: o Conselho Ultramarino, para
"impedir a desordem e os atritos da administração nas colônias de
ultramar", e a Companhia Geral do Comércio para o Estado do Brasil. Esta e
outras Companhias (do Maranhão, do Grão-Pará, de Pernambuco e Paraíba), criadas
posteriormente, não seguiam o padrão das companhias inglesas e holandesas, pois
privilegiavam o papel do Estado em detrimento dos capitais particulares. Alias,
Portugal foi um dos últimos países europeus a formar Companhias de Comércio.
Assim, cresce o fiscalismo, diminui a autonomia das Câmaras e aumenta a
dependência dos senhores de engenho aos comerciantes da metrópole e àqueles que
se fixam na colônia, intermediando os negócios. Cresce também a corrupção: em
1730, a Câmara das Alagoas reclamava ao Rei sobre o estado miserável do povo,
culpando por isso (entre outros motivos), os "interesses econômicos dos
comissários vindos da Corte" (AHU-AL.–Doc.65). A mesma
Câmara, em 1732, solicitava ao Rei os mesmos privilégios e graças da cidade de
Olinda para a Vila das Alagoas (AHU-AL.–Doc.73).
INDÚSTRIA AÇUCAREIRA
33 - Uma rápida visão
do quadro geral da indústria açucareira de Alagoas mostra-nos, ... , que a
quantidade de engenhos e, conseqüentemente, a produção, cresceu bastante após o
período holandês. Dos 16 engenhos (muitos de fogo morto) então
existentes, passamos a mais de uma centena no século seguinte e, daí em diante,
houve um crescimento acelerado da produção alcançando, na atualidade (agora não
mais a partir de rústicos engenhos, mas de sofisticadas usinas), a terceira
posição em todo o país, superada apenas pelos Estados de São Paulo e Paraná.
Com relação aos
séculos coloniais, principalmente os dois primeiros, a documentação sobre a
produção açucareira é escassa. Muito menos quanto a outros produtos. Porém, baseados
nos relatos de Gandavo, Brandônio, nos Relatórios holandeses já mencionados e
nas obras de Diégues Júnior e Moacir Medeiros de Sant'Ana, também por nós
referidos, podemos seguir a linha evolutiva dessa produção:
I.Em 1560, segundo Gandavo, a Capitania de
Pernambuco tinha cerca de 23 engenhos. Não há indicações para Alagoas.
II. Em 1587, ainda de acordo com
Gandavo, existiam cerca de 60 engenhos na Capitania, sem referências alagoanas.
III. Para o ano de 1590, Brandônio, nos Diálogos...,
informa que existiam 66 engenhos em toda a Capitania. Por volta desse ano,
foram fundados por Cristóvão Lins os primeiros engenhos na região de Porto
Calvo - o Escurial e o Buenos Aires. Ainda do final do século XVI são os
engenhos do Morro, o Baixo e o Maranhão, também fundados por Cristóvão Lins, o
desbravador da região norte alagoana.
IV. No início do século XVII surgem dois ou
três engenhos na região das lagoas (as Alagoas, no litoral-centro).
V. Em 1623, o relatório de José Israel da
Costa indica 123 engenhos nas Capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba,
sendo 8 ou 10 na parte ao sul do rio Una. Foi a produção desses engenhos que
despertou a cobiça dos financiadores da Companhia das Índias Ocidentais.
VI.1630 – Segundo Verdonck,
121 engenhos na Capitania, sendo 12 ou 14 no sul do território.
VII.1638 – O Breve
Discurso... de Dussen informa sobre a existência de 108 engenhos em
Pernambuco, sendo 15 em nossa região.
VIII. 1639 – Outro relatório de
Dussen indica 121 engenhos em toda a Capitania, com 16 (apenas 9 moendo) ao
sul. A Capitania da Paraíba tinha então 18 engenhos bons e 2 arruinados.
IX. Por volta de 1643 (Relatório de Walbeeck
e Moucheron), já existiam no litoral- centro (as Alagoas), 6 engenhos.
X. Em 1655, logo após a Restauração, apenas
109 engenhos funcionavam em Pernambuco. Não temos indicação precisa desses
dados, mas Uma Relação dos Engenhos de Pernambuco em 1655 (Traslado do
Rendimento das Pensões, Redízima e Vintena e outras coisas mais que esta
Capitania de Pernambuco pagava ao Donatário Dom Miguel Portugal), publicada por
Gonsalves de Mello, relaciona 109 engenhos na Capitania, alguns não moentes. Em
Porto Calvo, aparecem 5 engenhos em atividade e 2 arruinados; no distrito de
Alagoas, dos seis relacionados, apenas 1 moente.
XI. Em fins do século XVII, segundo Diégues
Júnior, esta região já contava com 72 engenhos. No total, a Capitania tinha
254.
XII.Durante o século XVIII, dobrou o número
de engenhos, chegando a perto de 200 no início do século XIX e a cerca de 1.000
no alvorecer do século XX.
Já na primeira metade
do século XIX a zona norte da Província (emancipada de Pernambuco em 1817)
superava, em quantidade e qualidade, todos os distritos da antiga Capitania.
34 - A partir do final
do século XIX, os engenhos foram sendo substituídos pelas usinas e houve um
grande impulso na produção açucareira. No século XX a maioria dos antigos e
faustosos senhores de engenho cedeu lugar aos grupos das usinas, passando a ser
simples fornecedores de cana, da mesma forma que eram, no passado, os lavradores
de suas terras. Hoje, o Estado de Alagoas tem 27 usinas produzindo cerca de 25
milhões de toneladas de açúcar, perdendo apenas para o Estado de São Paulo e
disputando com o Paraná a segunda posição. Alagoas tem hoje o dobro da produção
de Pernambuco, que ocupa o 6° lugar no cenário
açucareiro nacional. O Estado pernambucano, por suas condições geográficas
(mais acidentado que Alagoas) que dificultam a plantação em larga escala,
diversificou sua economia enquanto Alagoas acentuou a monocultura. Aqui, a cana
representa cerca de 60% da riqueza do Estado, enquanto que em Pernambuco é de
aproximadamente 20%. Porém, se nosso setor agrícola (que representa 80% da
economia) é marcadamente monocultural, isto não pode ser creditado
exclusivamente aos usineiros, pois existe bastante terra desocupada para outros
produtos, à espera de uma ação governamental mais competente, eficaz e menos
voltada para os interesses paroquiais dos latifundiários.
A demonstração acima
da evolução canavieira, é feita para respaldar a afirmativa do processo de sufocação
das tendências delineadas nos primeiros momentos da colonização. Torna-se
necessária também uma abordagem, mesmo superficial, de outros aspectos da
realidade social e econômica objetivada.
Quando falamos de
produção diversificada, referimo-nos àquela que, por suas dimensões, extrapola
a simples roça de subsistência, aqui incluindo a criação de animais como
galinhas, porcos, patos etc. A persistência da presença de determinados
produtos como tabaco, mandioca, algodão, gado e outros, em quase todos os
pontos do território e em quantidade significativa, serve para indicar que uma
ação organizada e sistemática certamente resultaria na produção de bens e
riquezas que tornaria a região não só uma fonte de abastecimento interno (produção
para dentro) mas também, com o seu desenvolvimento, em um pólo de
exportação para os mercados metropolitanos. Sem falar que, no caso dos
holandeses, se a região sul da Capitania fosse colonizada, dificultaria o
acesso de tropas vindas da Bahia ou desembarcadas nos portos litorâneos, e
consolidaria a conquista.
Infelizmente,
malgrado os esforços de Nassau, a monocultura perseverou e seus efeitos
continuaram maltratando toda a região. Como já vimos, os Diretores da Companhia
almejavam lucros rápidos e negavam-se a destinar recursos para investimentos a
longo prazo.
A postura dos
senhores da WIC só é compreensível se a considerarmos como uma decisão capitalista
de direcionar todos os recursos apenas para o financiamento de engenhos, que
prometiam retornos relativamente rápidos, uma vez sanados os estragos
provocados pelas lutas da conquista. Não podemos supor que os financistas
batavos tivessem sido tomados pelo espírito edênico disseminado pelos ibéricos
para atrair colonos. Certamente eles tinham conhecimento da crise açucareira no
Brasil, e não se deixariam influenciar pela visão do paraíso originada
com a Carta de Caminha e desde então presente nas obras dos cronistas
lusitanos, como Gandavo (1964, p. 37), que assim descreve a condição da terra:
"[...] he esta Província sem contradição a melhor para a vida do homem que
cada huma das outras de América, por ser commummente de bons ares e
fertilíssima, e em gram maneira deleituosa e aprazível à vista humana." N'O
Valeroso Lucideno, assim também descreve Calado (1945, p. 39): "Era
aquela república antes da chegada dos holandeses a mais delicada, abundante,
próspera, e não sei se me adiantarei muito se disser a mais rica de quantas
ultramarinhas o Reino de Portugal tem debaixo de sua coroa, e cetro."
35. A impossibilidade de
desenvolvimento de uma economia diversificada na colônia é analisada
exaustivamente desde Caio Prado Júnior, principalmente em seu Formação do
Brasil Contemporâneo, que explicita as razões do sistema colonial voltado
para o produto de exportação. Tudo o mais seria dependente e subsidiário da
grande plantação escravista, voltada para os interesses metropolitanos no
comércio mundial. Porém, cremos que, com os planos de colonização e o
conseqüente repovoamento da região, certamente a diversificação seria
acentuada, pois, como observa o próprio Caio Prado Júnior (1965, p. 119), o
crescimento populacional "constitui por si só um fator de transformação,
porque determina a constituição e desenvolvimento do mercado interno, [...] e
com ele, de um setor econômico propriamente nacional, isto é, orientado já não
exclusivamente para exportação."
O caráter
bissegmentado da economia colonial (mercantil – produção para
exportação, e natural – produção para
consumir), era intrínseco à estrutura da plantagem, como analisa profundamente
Jacob Gorender. Para efeito do nosso estudo, emprestamos de Gorender
(1992, p. 239) a constatação de que inexiste [inicialmente] mercado na colônia
e a norma do auto-abastecimento devia ser absoluta [...]. Nos começos do século
XVII, consolidados alguns núcleos urbanos no litoral, também se formou um
mercado interno abastecido de gêneros alimentícios da própria colônia. [grifo
nosso].
Como está sendo
demonstrado, Alagoas apresentava potencial, ou tendências, para ser a fonte abastecedora
desse mercado, o que foi impedido pela presença dos holandeses e a ênfase
posterior na atividade açucareira.
Essa produção para
dentro, que destacava o território sul, não poderia alcançar uma escala
crescente no contexto do sistema colonial escravista, limitando-se a uma
reprodução em escala igual, sem propiciar, portanto, uma acumulação de
meios de produção que permitisse o seu desenvolvimento rumo à produção para
exportação.
36. Com a ausência de uma
classe média rural, ou mesmo urbana, uma vez que o sistema patriarcal-senhorial
projetava-se para as vilas e cidades, ruralizando a vida urbana, tudo
girando em torno do produto para exportação, era impossível a constituição de
uma economia diversificada. Se essa produção fosse desenvolvida, fatalmente
ocorreriam mudanças nas relações de produção, com repercussões nas estruturas
de poder, pois teríamos categorias sociais mais autônomas, desvinculadas do
senhorio colonial canavieiro.
A história, porém, é
incontrastável: estudos anteriores já demonstraram a tese da construção de
relações de poder baseadas nos laços de parentesco14 e vinculadas
diretamente à propriedade da terra – são relações
eminentemente rurais. A verdade é que não se pode desconhecer a importância do
açúcar como elemento dominante no processo de formação de nossas estruturas
sociais, políticas e econômicas. Tudo em nossa história gira em torno do
açúcar.
ATIVIDADES
SUBSIDIÁRIAS OU PERIFÉRICAS
37. A análise será
incompleta se não verificarmos, também ao menos superficialmente, algumas
características de outras atividades econômicas.
Se grande parte dos
engenhos aqui localizados pouco ou nada produziam, até a primeira metade do
século XVII, e da região saíam outros produtos que não o açúcar, ao ponto de um
relatório holandês informar que toda a farinha vendida em Pernambuco era daqui
originária, é de se supor que os nossos sesmeiros não dispunham de recursos
para comprar escravos em quantidade suficiente e instalar engenhos em condições
de funcionamento, dedicando-se então, diretamente ou estimulando moradores e
agregados, ao cultivo de outros produtos ou à pecuária, esta de forma mais
expressiva nas proximidades dos rio São Francisco.
A região
sanfranciscana desde o início mostrava seus pendores para outros produtos que
não o açúcar. Mas, como outras, também não recebeu os incentivos necessários.
Bem tarde, já no século XIX, percebia-se o desperdício:
A 15 de março de 1854, em correspondência
dirigida ao Ministro do Império, o Presidente da Província das Alagoas
informava o péssimo estado em que se encontravam os engenhos da Comarca de
Penedo, cujo terreno considerava mais indicado para outros ramos da
agricultura, principalmente de legumes. (SANT'ANA, 1970, p. 289).
38. As informações ...
reforçam o quadro de uma região periférica bastante diferenciado daquele no
qual se baseam os adeptos da nossa vocação para o açúcar. Uma vocação
tardia, pois, como já verificamos, a expansão da cana ocorreu quase cem anos
depois da fundação dos primeiros engenhos, tolhendo o desenvolvimento lógico das
forças produtivas delineadas. Mesmo na região norte, grande concentradora da
indústria açucareira a partir da segunda metade do século XVII, a tendência era
outra.
39. O algodão foi outro
produto que "sempre figurou ao lado do açúcar, algumas vezes até
suplantou-o," mas só a partir do século XIX, na sua segunda metade,
principalmente, devido a grande demanda dos Estados Unidos em função da Guerra
de Secessão, "o algodão teve um grande surto de progresso. Foi então que
procurou fazer sombra ao açúcar, como de fato fez. Período houve em que as
rendas provinciais viviam do algodão. Do alto preço obtido pelo algodão."
(DIÉGUES, cit., p. 113).
Essa tendência de
expansão territorial da cana de açúcar foi acentuada no século XIX, com o
surgimento das usinas, ampliando-se a monocultura. No início do século XX,
tínhamos cerca de 1.000 engenhos e 6 usinas, como já nos informou Moacir
Sant'Ana.
A eficiência da
economia açucareira (bangüê) baseava-se no trabalho escravo (e no
patriarcalismo, estruturando a vida familiar e social). Com a abolição, em
1888, e mesmo com o advento das usinas, a crise do açúcar acentuou-se, mas, em
Alagoas, e no Nordeste como um todo, não houve um esforço significativo para a
diversificação econômica, o que já começava a ocorrer no sul do país.
Outra atividade com
uma presença bastante significativa é a pecuária. Em termos econômicos,
"essa atividade apresentava para o colono sem recursos muito mais
atrativos que as ocupações acessíveis na economia açucareira" (FURTADO,
1998, p. 59). Entretanto, por ser uma atividade subsidiária e dependente,
periférica, sem mercado externo, a pecuária propiciou a penetração interiorana,
na medida da rápida expansão da produção de açúcar, com a cana engolindo
os pastos.
Com o aumento da
criação de gado na região sanfranciscana, que exigia grande extensão de pasto,
houve a interiorização que originou a Bacia Leiteira de Alagoas. Os boiadeiros,
conduzindo seus rebanhos, iam estabelecendo ranchos que, aos poucos,
transformavam-se em povoados. A ligação entre esses povoados era feita pelos
tropeiros, mercadores viajantes que tiveram um papel importante na penetração e
na integração territorial.
40. Mesmo considerando o
papel periférico da pecuária em relação ao sistema produtivo de açúcar, foram
feitas tentativas de melhorar e ampliar o rebanho, ainda no século XIX. Já no
século XX, efetivamente houve um grande avanço no setor, nas regiões do agreste
e do sertão, e hoje, anualmente, realiza-se em Maceió uma das maiores feiras
agropecuárias do Norte-Nordeste do país sem, entretanto, sequer abalar a
preponderância da indústria açucareira, que continua hegemônica economicamente
e com forte influência política no Estado.
Concluímos este
segmento com uma referência a um elemento fundamental, presente na dieta do
nordestino desde antes da chegada dos colonizadores: a farinha de mandioca:
A farinha de mandioca é o alimento básico do
campesinato formativo. O mundo rural da pars borealis não conhece dieta sem
farinha. A farinha de mandioca tem presença universal na dieta rural: sob a
forma de mingaus, de pirões [...] e farofas de água e sal, farofas
condimentadas com picadinho de cebola, alho e coentros esparregados. A farinha
de mandioca comida seca, jogada em bocados com a mão à boca, e acompanhando um
pedaço de carne assada – de caça, ceará ou
charque, carne de sol de sertão, carne de vento, peixe seco salpreso ao sol,
guisados – ou engrossando os caldos de peixe, de
marisco, de peixe amoquecado, de feijão ao tempero. Com a farinha de mandioca
se faz o mingau para o doente, para o convalescente e é também, servida ao
prato fundo, o caldo grosso de sustento. A casa de farinha [o lugar onde se
fabrica], na época das farinhadas, é o centro de reunião da família e dos
vizinhos, um dos raros momentos de solidariedade camponesa. Lá se trabalha dias
inteiros e noites inteiras, conversa-se sobre os raros acontecimentos, troca-se
experiências de trabalho, se namora e se combina amigações e casamentos. [...].
As farinhadas são o centro da vida rural, [...] de uma sociedade dispersa em
sítios, arraiais, povoados e vilas.[...]. É nela [na casa de farinha] que se
realiza o grande ágape camponês da solidariedade e da convizinhança. Só se pode
definir a casa de farinha de um jeito: a casa da comida. (LINDOSO, 2000, p.
197).
Como já afirmava
Capistrano de Abreu (1954, p. 217), a farinha é "o único alimento em que o
povo tem confiança".
41. A ALAGOANIDADE
PRECOCE
A expressão acima
talvez seja meio pretensiosa, e não a encontramos no Aurélio. Aliás,
vasculhando os dicionários verificamos que são poucos os Estados cujos povos
substantivam o sentimento de amor à terra natal. Pode parecer contraditório
alguém apelar para o idealismo quando fundamenta sua análise em conceitos
marxistas como o materialismo histórico. Porém, como já esclarecemos, não somos
"marxistas dos inflexivelmente ortodoxos", lembrando Gilberto Freyre,
e podemos nos permitir este pequeno desvio, pois não desprezamos os aspectos
emotivos, sentimentais, advindos das relações entre os homens e que os fazem
sentir-se membros de uma comunidade.
Mas voltemos à
realidade. Onde estão as raízes dessa suposta alagoanidade? No episódio
de Calabar? Nas lutas pela restauração? Nos Palmares? Ou então na geografia
privilegiada do litoral, considerado e louvado, com razão, como um dos mais
belos do país, e do restante do território, com apenas uma pequena parte
localizada no árido sertão nordestino? E, afinal, o que era (é) Alagoas?
Nos primeiros séculos
coloniais, na verdade, não existia uma, mas duas Alagoas: a do Norte e a
do Sul, entre Porto Calvo e a região sanfranciscana. Duas grandes lagoas, as
atuais Mundaú (Norte) e Manguaba (Sul), interligadas por estreitos canais que
formam cerca de 21 ilhas e que chegam juntas, irmanadas, no Atlântico. Formando
um impressionante complexo lagunar, originaram o nome da Província que se
constituiu em 1817.
Nesta região, a das
lagoas, por razões que podem ser objeto de estudo em outras teses, aos poucos
ocorreu uma grande concentração urbana originando a cidade de Maceió, a atual
capital do Estado, que exerce uma brutal concentração demográfica, política,
cultural e econômica, ao ponto de ser considerada como se fosse, apenas ela, a
própria Alagoas.
Algumas breves
considerações sobre aspectos demográficos e sociais, a ocupação (incluindo aqui
Calabar) e os negros, poderão ser úteis na avaliação da alagoanidade.
No século XVII,
logicamente a região portocalvense, por sua maior proximidade com o centro da
Capitania, concentrava o maior número de habitantes e de engenhos, embora
poucos, seguida pelos distritos das Alagoas e Penedo, nesta ordem. Do rio Una,
ao norte, até o São Francisco, ao sul, por volta de 1630 havia cerca de 500 a
600 homens, "quase todos mamelucos e gente muito má", segundo o
relatório de Verdonck. O brabantino refere-se a homens e não a habitantes,
provavelmente para assinalar o potencial de resistência às tropas holandesas.
Não faz indicação do número de escravos nem de mulheres e crianças. Suas
informações são imprecisas, mas permitem calcular uma população rural
aproximada de 12.000 pessoas na Capitania, o que significaria dizer que o
território sul contava em torno de 5% dessa população.
Cerca de dez anos
depois, Adriaen van der Dussen faz uma minuciosa descrição de todos os engenhos
da Capitania, embora sem referências ao número de habitantes. Relaciona 121
engenhos, mas apenas 87 moentes, em virtude das lutas, dos quais 9 na nossa
região (Porto Calvo, Alagoa do Norte e Alagoa do Sul). Considerando que um
engenho tinha, em média, 150 pessoas (número geralmente aceito para este tipo
de cálculo), contando o senhor, sua família, moradores, lavradores e escravos,
temos uma população de cerca de 1.350 pessoas na área açucareira abaixo do rio
Una. Como não dispomos de dados sobre os habitantes envolvidos em outras
atividades, podemos, num cálculo aproximado, situar a nossa população entre
1.500 e 1.600 pessoas no início da década de quarenta do século XVII. A
população rural da Capitania, pelo relatório de Dussen, seria de
aproximadamente 16.000 habitantes, subindo portanto para cerca de 10% a
população relativa de sua parte meridional.
Cabe aqui uma
significativa observação feita por Capistrano de Abreu:
Assegura Brandônio que as três Capitanias do
Norte poderiam ter em campo mais de 10.000 homens armados, isto é, deviam
contar pelo menos 40.000 almas. Palpável exagero: em todas as Capitanias juntas
mal passaria desta soma a gente de procedência portuguesa" (DIÁLOGOS...,
1956, p. 13, grifo nosso).
Com relação ao número
de soldados holandeses, o Conselheiro Dussen informa sobre as guarnições
mantidas no território conquistado. Ao sul, cita o Forte Maurício, em Penedo,
com 6 companhias e 541 homens; em Alagoas, 4 companhias com 293 homens; em
Camaragibe, uma companhia com 93 homens e Porto Calvo, 4 companhias com 380
homens. No total da Nova Holanda, "o efetivo da nossa força militar é de
6.180 homens, entre os quais se incluem todos os doentes e incapazes, os
tambores e os ordenanças". Acrescenta que, em caso de necessidade,
"seria possível ajuntar, na melhor hipótese, cerca de 1.000 brasilianos"
(índios). Nos distritos sulistas, portanto, encontravam-se estacionados 1.307
homens, cerca de ¼ do total de soldados
da Capitania, o que denota a preocupação do comando da Nova Holanda com a
região.
Este o quadro
populacional, incluindo o "elemento perturbador", tão próximo da
realidade quanto possível, nos limites de nossa pesquisa e de nossa
interpretação.
Quanto às
características da sociedade que subsistia no tempo da ocupação, podemos
reafirmar o já insinuado em nosso texto: no período holandês foram fortalecidas
as bases das estruturas de dominação das elites alagoanas. O mandonismo local –
e o caráter violento dessas elites – foi forjado pelo
isolamento da região meridional da Capitania. Esta situação deve-se ao fato de
que aqui, nas primeiras décadas da colonização e até o período holandês,
desenvolvia-se uma economia voltada para o consumo interno –
produção para dentro – despertando pouca
atenção do governo da Capitania, dirigida para a produção açucareira. Não havia
sequer órgãos de representação ou fiscalização – o Breve
Discurso... de Dussen informava que no distrito sul da Capitania
"nunca teve Câmara, sendo dirigido pro libitu do mais poderoso do
lugar" – e as questões eram resolvidas na marra,
na base do cada um por si e contra todos; vigorava a lei do mais forte e
assim foram tecidas as relações sociais e de poder na sociedade alagoana, uma
sociedade que começa a se firmar na periferia da Capitania, região obscura e
abandonada do sul de Pernambuco que, depois das lutas, passa a ter vida própria,
criando valores que serão afirmados na Revolução de 1817.
Podemos atenuar um
pouco o rigor destas afirmativas reconhecendo que, em todo o Nordeste
açucareiro, não foi muito diferente, pois o patriarcalismo é um dos caracteres
da formação da sociedade nordestina. Em Alagoas, a figura do senhor de engenho
é marcante em todos os aspectos da vida local. Ousamos dizer que talvez com
mais intensidade ainda que em outros Estados. Eles sempre estiveram ligados ao
poder, ou talvez seja melhor dizer que deles é que irradiava o poder, como até
hoje, pois é nos usineiros e nos grandes proprietários de terras que se apóiam
os grupos políticos. Sua esfera de influência, até em épocas recentes, produziu
o chamado ruralismo urbano: a forte presença da vontade do senhor além
das fronteiras de sua propriedade, nos povoados, nas vilas, nas cidades. Como
já vimos, no período holandês ocorre uma retração dessa influência, com o
controle da administração local pelos escabinos indicados pelo governo.
Um outro ponto
recorrente quando se fala em alagoanidade refere-se à colaboração
prestada por um portocalvense que aderiu aos holandeses, em nome de uma
almejada libertação dos ditames metropolitanos portugueses. Na historiografia
alagoana, entre os fatos ocorridos na Alagoas Pars Boreal (a região de
Porto Calvo) de Dirceu Lindoso, destaca-se sobremaneira a atitude de Domingos
Fernandes Calabar que, em 1632, passou para o lado batavo e tornou-se de
extrema valia para a conquista, por seus profundos conhecimentos da região e
habilidades estratégicas.
Os historiadores
portugueses e brasileiros são "particularmente exaltados contra este
traidor", na expressão de Wätjen, mas a contribuição de Calabar aos
holandeses é minimizada por outros, considerando "as discórdias reinantes
no campo adversário" (Brandenburger, apud WÄTJEN, 1938, p.
119). Muitos portugueses de livre vontade se passavam para os holandeses –
não devemos esquecer que Portugal tinha sido incorporado à Espanha desde 1580 e
era com este país que a Holanda conflitava.
Durante o "Êxodo
Pernambucano" (a desmoralizada fuga para a Bahia do Governador da
Capitania e suas tropas, acompanhado de muitos senhores de engenhos com seus
séquitos) Matias de Albuquerque, de passagem por Porto Calvo, em julho de 1635,
conseguiu derrotar as guarnições do major Picard e prender Calabar,
executando-o então com requintes de crueldade. Outros traidores tiveram
melhor sorte, como Sebastião Souto, primo e compadre de Calabar, que também
havia se passado para os holandeses mas arrependeu-se e facilitou aquela
vitória passageira de Matias de Albuquerque. Por isso, foi promovido a alferes.
Outro, Gaspar Dias Ferreira, chegou a naturalizar-se holandês.
Os holandeses também
tinham seus traidores, com os quais também eram severos e cruéis, quando
os capturavam. Em uma ocasião, por volta de 1646, cerca de 50 soldados, quase
todos franceses, mercenários, que tinham desertado para o outro lado, foram
capturados e enforcados. Assim descreve um cronista:
Muitos desses miseráveis [antes da execução]
acusaram altaneiramente os holandeses de terem, de todas as maneiras, falseado
suas promessas, por conseguinte, eles próprios não tinham obrigação de manter
as suas, pois tinham sido enganados em primeiro lugar. (MOREAU, 1979, p.
73-74).
Calabar também tinha
seus seguidores do lado contrário... Da mesma forma que achava os holandeses
mais justos, aqueles soldados consideravam, segundo Pierre Moreau, que
os portugueses "[...] mantinham sua palavra e os haviam tratado melhor do
que ousavam esperar".
Não nos interessa o culto
a heróis nem muito menos criá-los – com relação a muitos
(no caso, destaca-se Calabar), há apenas estórias, em geral decorrentes
de uma postura maniqueísta (herói ou traidor?), sem o rigor da análise
histórica científica e sem levar em conta a relação dialética entre a ação
individual e o movimento histórico.
Existem os
admiradores e os detratores – isto vale não apenas
para o mito Calabar como para o significado da ocupação holandesa.
Deve-se considerar a
realidade social e econômica para se fazer um retrato real –
quem era o homem? Sua atitude foi isolada, ou outros também a tomaram? Foi um
surto de idealismo? Almejava, de fato, uma nova ordem? Devemos tentar
responder estas perguntas sem paixão ou ufanismos que tolhem a razão.
Herói? Traidor? Nem
uma coisa nem outra. No máximo, podemos considerá-lo como um homem que
vislumbrou a oportunidade de trocar de patrão passando das mãos de um,
estatal, monarquista e explorador explícito, para outro, republicano, privado,
capitalista e não menos explorador. Não podemos esquecer que a WIC era uma
companhia privada, com objetivos meramente comerciais e sem nenhuma intenção civilizatória.
Para os patrões
ibéricos foi, de fato, um traidor. Para outros, os holandeses, foi apenas um
adesista sem nenhuma chance de mudar o status colonial (ou alguém acredita que
a Holanda pretendia emancipar o Brasil?). Chamá-lo de desbravador do
sentimento pátrio ou da alagoanidade é um tremendo exagero, da mesma
forma como é exagerado designar as lutas contra o invasor como um momento de despertar
da consciência nacional, pois dificilmente podemos detectar um movimento
regular, espontâneo, popular, nas guerras holandesas no Brasil.
Herói patriota? De
qual pátria? Que estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais brasileiras
aqui existiam? Na época, na verdade, ainda se realizava a transposição da ordem
social ibérica para a colônia, e apenas no século seguinte começam a aparecer
os sinais de desassossego colonial.
Calabar pode ser
considerado, como lembra o Professor Moacir Medeiros de Sant'Ana, como "um
soldado de grande valor" e "vítima de discriminação racial",
injustiçado pelos portugueses.
Devemos ver Calabar
numa "conjuntura onde houve alternativas e alguém perdeu", como
afirma o historiador Boris Fausto. Ele apenas fez uma opção entre dois tipos de
dominação ... e perdeu. Por isso, leva a pecha de traidor (na historiografia
luso-brasileira oficial) mas, nem por isso, pode ser considerado herói.
Com relação aos
negros, o século XVII também foi testemunha de um fenômeno de grande
significado não só para Alagoas como no contexto geral da formação da sociedade
brasileira – os Quilombos dos Palmares, originados ainda
no século anterior. Afora o que já foi dito sobre a colaboração dos
escravos com a expansão canavieira (colaborou com o seu sangue, pois,
juntamente com o sangue indígena, adubou a terra para as plantações de
cana), devemos lembrar, como assinalou João Blaer (apud DIÉGUES Júnior,
1980, p. 164), comandante de expedição flamenga contra os quilombos,15
que em Palmares havia roça abundante, constituindo-se numa primeira experiência
policultora em uma região monocultora.
A guerra holandesa
favoreceu a fuga de escravos e Palmares cresceu e organizou-se em vários
mucambos. Para os batavos os negros deveriam ser reescravizados; daí as
expedições contra Palmares, pois, como Dussen deixa claro em seus relatórios,
sem escravos não havia produção. Envolveram-se com o tráfico (aconselhados por
Dussen), também devido às possibilidades de lucros, controlando sua rota (e
negócios) a partir da conquista de São Paulo de Luanda, na África. Em 24 anos
de dominação, os holandeses trouxeram para o Brasil cerca de 26.000 escravos.
Encerramos este
segmento complementando algumas considerações anteriores a respeito do
relacionamento dos senhores alagoanos com seus escravos.
Diegues Júnior
recorre a um estudo de José Antônio Gonsalves de Mello para atestar o sentimento
de confraternização entre negros e proprietários rurais: "Na luta
contra os holandeses já fora grande a contribuição do elemento africano. O
escravo negro acompanhou o senhor de engenho no seu sofrimento e na sua
reação". Vai mais além:
É talvez dessa aproximação em horas tão
dramáticas – a da guerra holandesa e outras que se
sucederam – que tenha nascido entre os senhores de
engenho das Alagoas um sentido mais humano no tratar o escravo, [embora] muito
distante de ser inteiramente humano esse tratamento, [pois nunca] deixaram de
existir nos engenhos de Alagoas os mesmos instrumentos de martírio, conhecidos
na história da escravidão no Brasil. (DIÉGUES Júnior, 1980., p.168-169, grifo
nosso).
Parece-me que essa
tese – a do negro solidário com seu senhor –
é de difícil aceitação, pois para o negro não havia outra alternativa: ou
lutava contra os inimigos do senhor ou morreria nas mãos do senhor.
O historiador Alfredo
Brandão (apud DIÉGUES Júnior, cit., p. 169) chega a afirmar, como vimos
antes, que "os engenhos de Viçosa jamais presenciaram as cenas vandálicas
da escravidão", mas ressalva que "se castigo houve eram apenas
uma reprimenda às suas malfeitorias, mas esses castigos não excediam os sentimentos
de humanidade" (grifos nossos). Muito bonzinhos os senhores de
engenho viçosenses...
O tratamento dado aos
negros, no Brasil, foi amenizado no século XIX devido a uma circunstância
econômica: extinto o tráfico, no Brasil monárquico, era preciso tratar os
escravos com mais cuidado, para preservá-los com vida e em condições de
trabalhar o maior tempo possível.
Finalmente, uma
rápida opinião pessoal sobre aquele que é, talvez, o maior ícone de nossa alagoanidade,
Zumbi dos Palmares: Zumbi é, efetivamente, o único herói nacional, pois,
diferentemente dos demais, foi reconhecido pelo Estado brasileiro a partir de
manifestações (e reconhecimento) do próprio povo, e não imposto ou determinado
pelas elites. Mesmo Tiradentes, o mais popular afora Zumbi, foi colocado
no pedestal pelas elites republicanas de 1889, e ainda hoje a maioria da
população não sabe o seu significado. Zumbi, para ser herói, teve que
enfrentar, e morrer por isto, o sistema de dominação e exploração colonial e,
mais de 300 anos depois, a intolerância e o preconceito de uma sociedade que
ainda se considera branca.
42. CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Tentamos, ao longo
deste trabalho, demonstrar uma proposição que, se não é inusitada, pelo menos é
pouco considerada em nossa historiografia: a de que o desenvolvimento das
forças produtivas no território alagoano indicavam, em suas tendências gerais,
uma diversificação econômica contrária ao determinismo monocultural do sistema
de colonização português.
Fizemos um esforço de
interpretação da singularidade alagoana, utilizando os dados disponíveis na
historiografia e em documentos conhecidos.
Nossa hipótese tem um
caráter qualitativo, pois procuramos demonstrar, com uma base de dados já
razoavelmente conhecidos, alguns, e outros ainda não devidamente explorados em
trabalhos anteriores, que houve, de fato, uma mudança de rumo nesse
desenvolvimento.
Esperamos ter, com a
análise dos dados, comprovado nossa hipótese ou, pelo menos, lançado luzes sobre
um episódio significativo de nossa história. A presença holandesa foi de fato,
uma influência exógena no processo de formação de nossa sociedade. Nossa
percepção é que a aventura holandesa impossibilitou o processo local rumo à
diversificação econômica e contribuiu para consolidar as estruturas de
dominação e exploração – suas marcas
(inclusive as idéias de liberdade, de consciência livre, tolerância, tenaz
espírito de independência do povo etc.) são ilusórias, apenas servem às
elites.
A região nordestina
(embora devamos considerar que só a partir do fim do século XIX é que surge
o Nordeste, com o ajuntamento, ou aproximação, das regiões interioranas
com a faixa litorânea leste), talvez seja a parte do Brasil que mais
profundamente revela a permanência das estruturas de dominação características
da civilização do açúcar originárias no período colonial e consolidadas
após a independência.
A forte presença do
Estado, tanto no período colonial quanto após a Independência, teve grande
influência na formação de uma sociedade brasileira excludente. Se antes os
senhores coloniais estavam sob rígido controle do Estado metropolitano, com a
Independência passam a ter vida própria, assumindo o controle político e
mantendo os seus privilégios, embora permanecendo como parceiros
secundários e periféricos no mercado mundial.
Na fase de irradiação
do capitalismo competitivo dependente, a monopolização do poder político pelos
estamentos senhoriais impediu que houvesse a formação de um Estado de fato
representativo e uma revolução verdadeiramente nacional –
o que deixou seqüelas até hoje. Devemos nos lembrar, com Florestan Fernandes,
que a Independência poderia ter varrido a ordem senhorial vinda da colônia se
tivesse ocorrido realmente uma revolução de cunho popular. Como isto não
ocorreu, ela consolidou as estruturas coloniais de dominação que se eternizaram
na sociedade brasileira. Aliás, parece mesmo que o Brasil é o país das revoluções
feitas para nada mudar... Como dizia José Honório Rodrigues, aqui existe
permanentemente uma contra-revolução, pois as elites controlam com
eficiência os mecanismos do Estado e estão sempre alertas para impedir que os
movimentos populares alcancem uma dimensão que ponha em risco o seu status. Se
isto não ocorreu com a Independência, muito menos com a República. Com esta,
pouca coisa mudou, pois os antigos senhores, agora fazendeiros, principalmente
das lavouras de café (o açúcar continuou predominante por aqui...), libertaram-se
do trabalho escravo e abandonaram a ordem senhorial, mas permaneceram
com o monopólio da terra e o poder oligárquico. A troca do trabalho escravo
pelo livre, aliás, além de ter sido uma imposição da evolução capitalista,
trouxe mais algumas vantagens, pois o trabalhador assalariado, no fim das
contas, sai mais barato do que um escravo.
Entretanto, devemos
amenizar o nosso discurso. Não podemos fazer uma simplificação
caricatural da história, demonizando o colonizador branco, principalmente o
senhor de engenho. Eles eram peças, muitas vezes involuntárias, de uma
engrenagem em movimento incontrolável. Da mesma forma que os escravos, foram
(são) personagens históricos, participando, ambos, de um mesmo drama.
É de se perguntar:
poderia ter sido de outra forma?
O patriarcalismo, o
latifúndio e o escravismo são as categorias que têm sido vistas,
tradicionalmente, como moldadores das sociedades alagoana e nordestina. Devemos
considerar, no entanto, que a verdadeira moldagem parte de algo mais
forte, superior. O engenho era uma empresa e o senhor um empresário (ou talvez
fosse melhor dizer um gerente?). Como tal, agia em função do lucro, embora
fosse quem menos usufruía desse lucro. Estava submetido a determinações maiores
de outra empresa, a do Rei, que efetivamente era quem auferia os lucros. Esta,
por sua vez, submetia-se à determinações gerais, incontroláveis, do processo
histórico de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Nesse contexto, a
empresa colonial propiciou a gestação de sociedades periféricas,
dependentes, pois as amarras do sistema colonial impediam o desenvolvimento de
forças produtivas autônomas, desvinculadas do objetivo de produzir para fora.
A prevalência absoluta do produto para exportação, sob controle português ou
holandês, acarretava dificuldades crescentes de abastecimento de víveres e
outros gêneros, pois todos deveriam vincular-se ao sistema açucareiro.
Caio Prado Júnior
(1965, p. 157), atesta:
O papel secundário a que o sistema econômico
do país, absorvido pela grande lavoura, vota a agricultura de subsistência,
[...] cria um problema que é dos mais sérios que a população colonial teve de
enfrentar. Refiro-me ao abastecimento dos núcleos de povoamento mais denso,
onde a insuficiência alimentar se tornou quase sempre a regra. [...] sobretudo
na Bahia e em Pernambuco há um verdadeiro estado crônico de carestia e crise
alimentar que freqüentemente se tornam em fome declarada e generalizada.
Portanto, numa
observação talvez simplista, havia espaço para o desenvolvimento de uma
produção para consumo interno, extrapolando a roça de subsistência. Por um relatório
do Coronel Artischofsky ao Conselho da WIC sobre eventos militares em
território de Alagoas, ficamos sabendo que em abril de 1636 um certo Capitão
Wiggert capturou em Recife uma barcaça "vinda de Alagoa, carregada com
peles, peixe e outras coisas," revelando que desta região saíam produtos,
se não regularmente, ao menos informalmente, para o abastecimento de
"núcleos de povoamento mais denso". Pelo mesmo documento o Coronel
comunica que prisioneiros por ele capturados revelavam que as tropas localizadas
em Alagoa do Norte não teriam dificuldades de abastecimento, pois conseguiriam
no campo quantidades suficientes dos víveres mais necessários.
É mais uma
comprovação de que aqui, no sul da Capitania, as forças produtivas eram
contrárias à monocultura.
Diversos testemunhos
(relatórios, cartas, cronistas contemporâneos aos primeiros tempos coloniais e
ao período holandês) confirmam a assertiva de que tudo favorecia a
diversificação econômica em território alagoano.
A ocupação e a tática
de terra arrasada (devemos lembrar que Alagoas era o caminho obrigatório
para as tropas que vinham da Bahia e, também, que era em seus portos,
notadamente em Jaraguá e Barra Grande, que desembarcavam as forças
luso-espanholas), interrompeu esse processo. Mesmo sendo alertada para a
necessidade de se investir na região e torná-la novamente fonte de
abastecimento, a WIC não se sensibilizou, preferindo concentrar seus esforços
na recuperação de engenhos e estímulos à produção de açúcar. Da mesma forma,
após a restauração, a ênfase foi para o açúcar.
A diversificação
econômica proporcionaria o desenvolvimento de formas de produção
pré-capitalistas – não correspondentes
às relações de produção escravistas e à superestrutura respectiva.. Poderia
haver, aqui, uma divisão regional do trabalho –
uma periferia abastecedora com formas e relações de produção diversas do
centro monocultural voltado para o produto de exportação? Na melhor das
hipóteses, caso houvesse o estímulo à produção diversificada vislumbrado nos
planos de colonização do período nassoviano, Alagoas poderia ter-se
transformado, realmente, no filé do Nordeste, para usar a
expressão de um político local.
A história do período
holandês é sangrenta, como atestam quase todos os cronistas da época. Para nós,
alagoanos, é muito mais do que isto: interrompeu um processo que se mostrava
promissor. Poderia ter sido diferente, como nos revela uma leitura mais atenta
de documentos da época. O desenvolvimento das forças produtivas pode sofrer, em
determinados momentos, uma reviravolta violenta, deixando marcas indeléveis num
povo que, só a muito custo e sofrimento, pode libertar-se dos grilhões da
dominação e retomar o caminho interrompido. Isto não significa uma volta ao
passado, afinal a história não é um eterno retorno, como propugnavam
alguns filósofos, mas a confirmação de uma tendência, sob novas condições e
perspectivas.
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