sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O país de São Saruê: um correlato da Cocanha medieval no sertão nordestino Francisco Cláudio Alves Marques

O país de São Saruê: um correlato da Cocanha medieval no sertão nordestino


Francisco Cláudio Alves Marques
Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho-Assis

Resumo: O país de São Saruê é um correlato do País da Cocanha medieval e configura-se numa utopia social cujos relatos foram trazidos via oral ou escrita por franceses, portugueses e holandeses aportados no Nordeste brasileiro.


Palavras-chave: Utopias. Literatura de cordel. Cocanha. São Saruê.


AbstractWhen Portuguese, Dutch and French people docked on the Brazilian Northeast, they brought in their baggage the most unusual reports, such as the Cockayne, the medieval imaginary country, “where the ones who sleep the most win”. Transmitted orally or in a written manner, such reports have found a fertile ground on the Northeastern backwoods for their disclosure, being retold on the Literature of Cordel with geographical and lexical updates, being called from that moment on the country of São Saruê.

Keywords: Utopias. String literature. Cockayne. São Saruê.

É natural que a literatura do povo produza utopias inalcançáveis quando a fome é insuportável e não se vislumbram horizontes ao
alcance da mão.1 (José Nêumane Pinto).

São Saruê: Um paraíso alimentar no sertão


Na década de 50, Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, gravava Linforme Extravagante, reproduzindo em chave matuta os elementos constituintes de um ideal utópico de fartura recorrente entre as gentes do sertão nordestino. O dito “linforme” (uniforme) seria usado na festa junina do “arraiá”:

Mandei fazer um linforme com toda a preparação, para botar no arraiá,
na noite de São João.

Na cantiga de Gonzaga, o tradicional traje junino é substituído, parodicamente, por outro confeccionado a partir da combinação de peças nada convencionais. Assim, em vez do tradicional chapéu de palha, o caipira dançará a quadrilha vestindo um “Chapéu de arroz

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  1. José Nêumane Pinto, “A Luz, o Boi, o Algodão, o Sonho, a Raiz”, In: Wladimir Carvalho, O País de São Saruê: Um filme do Nordeste, pp. 171-176.

    doce/forrado com tapioca” com “As fitas de alfinim/e as fivelas de paçoca”. A velha camisa de chita axadrezada passa a ser de nata, com “os botões de pipoca”.
    A apresentação do traje matuto prossegue nos termos de um banquete ideal: “A ceroula de soro/ e as calças de coalhada” e o buquê da noiva de “carne assada”. Os acessórios são imaginados no mesmo estilo: “O cinturão de manteiga” e o sapato de pirão; “As meias de angu/presilhas de amendoim/charuto de biscoito/e os anelões de bolinho/os óculos de ovos fritos/e as luvas de toucinho”.
    Parodiando a indumentária tradicional e elegante, e já enveredando para a sátira social, o poeta/cantador descreve um colete de banana cujos acessórios são, uma gravata de tripa, um paletó de ensopado, um lenço de canjica, uma carteira de pamonha, uma bengala de lingüiça, uma pulseira de queijo e um relógio de rapadura.
    O referido uniforme, concebido como uma alegoria das aspirações reais dos sertanejos consegue reunir, em síntese, os elementos constituintes de um mundo ideal e por vezes sonhado; uma utopia/miragem projetada através dos sonhos, desejos, idealizações alimentados por uma comunidade mantida às margens de um mundo real cujas transformações acontecem no ritmo do tempo geológico. Embora a década de 50 tenha conhecido o retorno de Vargas pelas urnas, e significativas mudanças tenham ocorrido no campo social e econômico, a situação no Nordeste continuava praticamente a mesma. A indústria da seca continuava fomentando a corrupção e o desvio de verbas públicas, deixando o povo a mercê da carestia e da fome.
    Em parte, o uniforme cantado por Gonzaga, à guisa das sociedades imaginárias medievais, (re)apresenta o desejo de fartura e abundância recalcado na psicologia coletiva, colocando do avesso aspectos da realidade social concreta vivida pelos nordestinos. As mesmas projeções sociais cantadas pelo Rei do Baião já haviam sido editadas por Manoel Camilo dos Santos no folheto Viagem a São Saruê, de 1947. Composto de 31 sextilhas e 2 décimas, e editado pelo próprio autor na sua Estrela da Poesia, o dito folheto nos fala de uma viagem imaginária ao igualmente imaginário país de São Saruê:

    Doutor mestre pensamento Me disse um dia: - Você Camilo vá visitar
    O país São Saruê Pois é o lugar melhor
    Que neste mundo se vê. Eu que desde pequenino

    Sempre ouvia falar Nesse tal São Saruê Destinei-me a viajar
    Com ordem do pensamento Fui conhecer o lugar2.

    A arquetípica viagem não se dá através dos meios convencionais, pois para chegar a São Saruê, o poeta viaja no “carro da brisa”, no “carro do mormaço” e no “carro da neve fria”. O poeta Manoel Camilo dos Santos era fascinado pelas histórias da mitologia grega e pelas narrativas bíblicas, o que nos leva a perceber nessa viagem empreendida pelo poeta/personagem vestígios da mítica viagem de Faetonte e do arrebatamento do profeta Elias, ambos a bordo de um carro de fogo.
    O historidor Hilário Franco Junior observa que o país de São Saruê tem sua raiz utópica no imaginário país da Cocanha3, cuja versão mais antiga seria o fabliau de Cocagne datado de meados do século XIII. O intróito da versão nordestina assemelha-se, em muitos aspectos, ao do tradicional relato cocaniano. Neste, o bardo é enviado ao país da Cocanha com a ajuda do “apóstolo de Roma”, certamente São Pedro: “Ao apóstolo de Roma/Fui pedir penitência,/Ele me enviou a uma terra/Onde vi muitas maravilhas” 4.
    Jacque Le Goff5 acredita que o tema da Cocanha tenha nascido no período de grande

    desenvolvimento da sociedade medieval, de meados do século XII a meados do XIII, quando os sucessos materiais, sociais, políticos e culturais aguçaram os apetites e fizeram lamentar que a sociedade cristã não tenha podido superar os limites, as impotências, as repressões que ainda a constrangiam. O imaginário país medieval pode ser concebido também como um sonho de protesto contra os limites e a domesticação das pulsões individuais e coletivas, sanções impostas sobretudo pela Igreja, e que vão da confissão e da penitência à Inquisição,
    das leis e dos tribunais à prisão e ao patíbulo6.

    Hilário Franco Jr. analisa no relato cocaniano quatro temas principais correlacionados com o mito de São Saruê. O primeiro deles relativo à abundância como resposta à vontade de se opor à realidade vivida e sofrida por dupla insatisfação alimentar, de um lado decorrência de uma produção ainda limitada pela natureza e por um progresso econômico que não

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  2. Manoel Camilo dos Santos, Viagem a São Saruê, Campina Grande, A Estrella da Poesia, s/i, 1947.
  3. Hilário Franco Jr., Cocanha: A história de um país imaginário, p. 220.
  4. Todas as versões da Cocanha aqui citadas foram emprestadas a Hilário Franco Jr., Cocanha: Várias faces de uma utopia, São Paulo, Ateliê, 1998.
  5. Jacques Le Goff, “Prefácio”. In: Hilário Franco Jr., Cocanha: A história de um país imaginário, p. 8.
  6. Idem, ibidem.

    eliminara inteiramente a carência e mesmo a fome, e de outro lado decorrência da abstinência e dos jejuns quaresmais impostos pela Igreja.
    No país da Cocanha os muros são feitos de “barbos, salmões e sáveis’, os caibros de esturjões, os telhados de toicinho e as cercas de salsichas. Pelos caminhos e ruas podem ser vistas mesas postas e fartas, onde se pode beber e comer à vontade, sem restrições. A versão nordestina difere da matriz apenas pelas atualizações geoculturais e lexicais. Em São Saruê, as pedras “são de queijo e rapadura/as cacimbas são de café/já coado e com quentura”:

    Feijão lá nasce no mato já maduro e cozinhado, o arroz nasce nas várzeas
    já prontinho e despopado, peru nasce de escova sem comer vive cevado.

    Galinha põe todo dia em vez de ovo é capão
    o trigo em vez de semente
    bota cachadas de pão, manteiga lá, cai das nuvens fazendo ruma no chão.

    No país da Cocanha, “Três dias por semana chovem/Pudins quentes/Para cabeludos e calvos”. Na imaginária Cocanha “Corre um riacho de vinho”, onde as canecas aproximam-se por si sós. Metade do dito riacho é de vinho tinto; a outra metade de vinho branco. Aqueles que dele se aproximam podem “Pegar pelo meio ou pelas margens,/E beber em qualquer lugar/Sem oposição e sem medo,/Sem pagar sequer uma moeda”. No sertão nordestino é o desejo imediato de saciar a carência alimentar que orienta a versão do poeta popular:

    Lá eu vi rios de leite barreiras de carne assada lagoa de mel de abelhas atoleiros de coalhada açudes de vinho quinado montes de carne assada.

    Se no fabliaux da Cocanha o elogio da abundância pode ser entendido como um desafio à Igreja, que de certo modo via a gula como um dos pecados capitais mais detestáveis, o elogio do ócio pode ser encarado como uma crítica ao discurso eclesiástico que, no século XIII, visava a uma reabilitação do trabalho, passando-o da maldição do Gênese para a valorização ligada ao novo desenvolvimento rural e urbano. Le Goff salienta que a Cocanha

    significa a negação desse ideal ergométrico e laborioso7. O século XIII vê a promoção do dinheiro indissociada dos problemas decorrentes: a Igreja opõe-se ao empréstimo a juros, condenado como usura, argumentando que a condenação ao emprestador deve-se principalmente ao fato de ele enriquecer sem trabalhar, mas dormindo, enquanto seu dinheiro “trabalha”. Daí a paródia cocaniana dos termos oficiais da condenação por usura: no país da Cocanha “quem mais dorme, mais ganha”. Na Cocanha holandesa, datada do século XV, a ninguém é permitido trabalhar, “Lá quem mais dorme mais ganha”. Inclusive, nesta variante, os instrumentos de trabalho encontram-se deslocados de sua função habitual, “Dobadouras, rocas e coisas semelhantes/Foram feitas de pão”. No Nordeste, o dinheiro é escasso e o ócio, muitas vezes, forçado. Não há empregos formais para o sertanejo que migrou para a zona urbana e os poucos empregados no incipiente setor industrial são mal remunerados, contudo,

    O povo em São Saruê tudo tem felicidade passa bem, anda decente não há contrariedade, não precisa trabalhar
    e tem dinheiro à vontade.

    A fadiga e o cansaço, decorrentes das intermináveis horas gastas com o plantio da mandioca, do milho, e com o corte da cana faz irromper o desejo da abolição do trabalho no tão sonhado São Saruê:

    Maniva lá não se planta nasce e em vez de mandioca bota cachos de beijus
    e palmas de tapioca, milho, a espiga é pamonha e o pendão é pipoca.

    As canas em São Saruê em vez de bagaço é caldo umas são canas de mel outras açúcar refinado
    as folhas são cinturões de pelica preparado.

    Enquanto no país da Cocanha as bolsas podem ser encontradas pelo chão, cheias de moedas, porém inúteis, pois lá “ninguém compra nem vende”, em São Saruê as notas dão abundantemente em árvores e arbustos:

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  7. Idem, p.10.

    Sítios de pés de dinheiro que faz chamar atenção, os cachos de notas grandes chega arrastam pelo chão, as moitas de prata e ouro são mesmo que algodão.

    Os pés de notas de mil carrega que encapota pode tirar-se à vontade
    quanto mais velho mais bota, além dos grandes cachos cascas e folhas, tudo é nota.

    No país da Cocanha ninguém envelhece, pois lá existe uma “Fonte da Juventude/Que rejuvenesce as pessoas,/E traz outros benefícios”, de modo que “lá não haverá [...]/Homem tão velho ou tão encanecido,/Nem mulher tão velha que,/Tendo cãs ou cabelos grisalhos,/Não volte a ter trinta anos de idade,/Se à fonte puder ir”. Em São Saruê “tem um rio chamado/o banho da mocidade,/onde um velho de cem anos/tomando banho à vontade/quando sai fora parece/ter vinte anos de idade”. Na versão holandesa da Cocanha, a Fonte da Juventude está geograficamente localizada no rio Jordão:

    ...o rio Jordão atravessa o país,
    ...e aqueles que entram nele E tomam sua água
    ...recuperam a juventude,
    ...os vinte anos de idade.

    Aliás, na Cocanha holandesa, mesmo sendo “Velho ou jovem, forte ou fraco./Ali ninguém morre”. Na versão nordestina, pressupõe-se que a morte tenha sido abolida de São Saruê, pois lá “não há fome nem doença”.
    Além dos temas da abundância, da ociosidade e da juventude, Franco Jr. analisa a questão da liberdade na Cocanha, sobretudo da liberdade sexual, tema silenciado no folheto de Manoel Camilo dos Santos certamente pela dogmática moral sertaneja reinante. No país da Cocanha seus habitantes não sofrem sanções nem proibições quanto à prática sexual, executada livremente entre homens e mulheres, visto que “Cada um satisfaz seu prazer” sem censuras.
    A liberdade sexual cocaniana contrapunha-se ao discurso eclesiástico que, no século XIII, procurava disciplinar a conduta sexual entre homens e mulheres, começando por sacramentalizar as uniões legítimas. No entender da comunidade católica, o matrimônio reconhecido pela Igreja devia ser o único campo de manifestação da sexualidade, pois mesmo

    a simples fornicação (sexo sem agravantes como incesto, adultério, etc.) era concebida como pecado. No que se refere à freqüência, impunha-se a abstinência durante a menstruação, a gravidez, a amamentação, a quarentena pós-parto, os domingos, a Quaresma, etc.; quanto à forma, condenava-se o sexo prazeroso, a felação, a sodomia, a relação dorsal, as relações diurnas, a visão da nudez. Aceitava-se apenas a relação “natural”, de modo que as variações
    sexuais eram consideradas pecaminosas e desnaturais8.

    Se por um lado os relatos cocanianos contrapunham-se ao discurso oficial eclesiástico e feudal, propondo modos alternativos de sobrevivência e totalmente deslocados da ordem habitual das coisas, daí seu aspecto carnavalesco, por outro, eles se conformavam à vontade oficial pelo fato de apresentarem ao leitor/ouvinte a possibilidade de existência de um mundo ideal pelo qual todos deviam esperar/sonhar. De certa forma, a espera por um mundo ideal conseguia controlar os ânimos, adiar as rebeliões.
    No sertão nordestino, pelo fato de os dogmas católicos medievais encontrarem-se solidamente enraizados na mentalidade popular, em São Saruê, um país de “gente alegre e forte”, a felicidade consiste em passar bem, andar decente, não ter contrariedades, não trabalhar e ter dinheiro à vontade. Ali, a felicidade provém do alto e não do prazer carnal, pois aquele país, assegura o poeta, “imita muito bem pela grandeza/a terra da antiga promissão/para onde Moisés e Aarão/conduziam o povo de Israel,/onde dizem que corriam leite e mel/e caía manjar do céu no chão”.
    Diante das transformações provocadas pela sociedade industrial, pelo menos na Europa ocidental de meados do século XX, a utopia da Cocanha foi gradativamente se esvaziando de sua função sociocultural. Tal função, contudo, estenderia seus tentáculos para as regiões de características marcadamente arcaizantes, ressurgindo, sobretudo, no contexto medieval e medievalizante do Nordeste brasileiro com a denominação de São Saruê. Neste folheto, o tema da abundância alimentar passa a ser o elemento central, visto que o ideal utópico cocaniano ressurge com força nos primeiros decênios do regime republicano, marcados pela carestia, pela cobrança de impostos extorsivos e conseqüentemente, pela fome. Hilário Franco Jr. enumera algumas determinantes histórico-culturais fundantes para a compreensão do ressurgimento da utopia cocaniana na literatura de folhetos. O ponto de partida, observa o historiador, a) deve ser as condições do Nordeste brasileiro, de natureza pouco pródiga, suscetível a prolongadas secas, de riqueza e poder concentrados nas mãos de
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  8. Hilário Franco Jr., “Mito, literatura e sexualidade no ocidente medieval – o exemplo da Cocanha”, Extensão, v. 8, n. 25, abr. 1998, pp. 9-15.

    poucas famílias, dos coronéis da época republicana aos seus sucessores, os senhores de engenho do período colonial; b) situação de pobreza e dependência da maioria e da alta concentração de renda e autoridade nas mãos de poucos; c) situação arcaizante, na qual as relações sociais tangenciam a vassalidade, as relações produtivas lembram a servidão; d) presença de uma forte mentalidade messiânico-milenarista, propícia a produzir, receber e adaptar narrativas fabulosas; e) presença holandesa nas regiões de Pernambuco e Paraíba pelo menos em duas ocasiões, 1624-1625 e 1630-1654, sendo que esta segunda longa ocupação
    teria deixado sedimentos dos relatos cocanianos no imaginário coletivo do sertão9.

    Acrescentamos a presença francesa, visto que, em muitos aspectos, os esquemas da versão francesa do país da Cocanha se repetem em São Saruê.

    São Saruê revisitado


    Assim como ao longo dos séculos o imaginário país da Cocanha conheceu inúmeras versões, que ajudaram a consolidar na psicologia coletiva dos mais variados povos e culturas seu ideal utópico de liberdade e abundância, escreveram-se, contudo, um número considerável de textos com vistas a satirizar a ingenuidade daqueles que, porventura, chegaram a acreditar na existência de um país tão avesso à realidade dos homens.
    Uma das primeiras críticas perpetradas contra o ideal utópico cocaniano foi elaborada por Boccaccio, talvez pelo fato de escrever para um público essencialmente burguês- mercantil. A 4ª. novela da VIII Jornada do Decameron trata de Calandrino, personificação da ingenuidade, pintor que teria sido logrado por um jovem florentino chamado Maso Del Saggio. Este, sabendo da parvoíce de Calandrino, decide divertir-se às suas custas, pregando- lhe alguma peça ou fazendo-o acreditar em algo inusitado. Encontrando-se casualmente com o pintor, em uma igreja, e vendo-o olhar atento as pinturas e os recentes entalhes do tabernáculo, acredita ser aquele o lugar e o momento de por em prática o seu propósito. Maso e um companheiro, recrutado anteriormente para a desforra, aproximam-se do lugar onde Calandrino encontra-se sentado sozinho. Para atrair a atenção do incauto, e fingindo não vê- lo, passam a falar das virtudes de diferentes pedras, sendo que Maso discorre sobre o assunto com a desenvoltura e aperformance de um lapidário. Fisgado pela conversa, Calandrino aproxima-se de Maso, indagando-lhe onde podiam ser encontradas aquelas pedras tão cheias

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  9. Hilário Franco Jr., Cocanha: A história de um país imaginário, pp. 222-223.

    de virtudes. Sarcasticamente, o jovem informa a Calandrino que a maior parte delas estava em Berlinzone, mais precisamente em um local conhecido por Bengodi, passando a descrevê-la nos termos da narrativa cocaniana:

    Lá as vinhas eram atadas com salsichas, comprava-se um ganso por uma moeda e vinha junto um marreco, havia uma montanha feita inteiramente de queijo parmesão ralado, no alto da qual morava um povo que não fazia outra coisa senão macarrão e ravióli cozidos em caldo de capão, jogados depois montanha abaixo; assim, quem mais pegava mais possuía. Perto dali corria um riacho de vernaccia do melhor que jamais se bebeu, sem que houvesse nele uma gota de água sequer. (Grifo nosso)10.

    Demonstrando grande interesse em chegar a Bengodi, Calandrino pergunta a quantas milhas de distância encontra-se o tal lugar, ao que Maso lhe responde, num tom de gozação (millanteria): “- Mais de millanta, que a noite inteira canta”.
    Se por um lado Boccaccio ironiza a ingenuidade daqueles que acreditam na Cocanha, por outro lado, outras versões, sobretudo as modernas, empreendem uma crítica ao que há de carnavalesco nos relatos cocanianos: glutoneria, embriaguez, ociosidade, liberdade sexual e inversão de valores. Numa versão alemã do início do século XIV, a Cocanha é o “país dos
    tolos”. Após apresentar uma “seriação de coisas impossíveis” (impossibilia)11, o bardo alemão

    conclui o destronamento bufo do país da Cocanha dizendo ter visto, enquanto esteve naquela terra, uma vaca vermelha por pão no forno bem como ter ouvido uma galinha falar, o que teria sido proclamado com “Um peido estrondoso”. Em outra versão alemã de 1530, a Cocanha é taxada de “País dos Preguiçosos”. Nesta, o poeta alemão arremata a sátira ao ócio e à glutoneria num tom de exortação moral de respeito ao trabalho:

    Quem é glutão e não se preocupa com nada A não ser comer, beber e dormir muito, Quem é idiota e não sabe fazer nada,
    É nobre naquela região.
    Quem vive da forma que descrevemos, É considerado bom no País da Cocanha. Este foi imaginado pelos mais velhos Como advertência à juventude,
    Que costuma ser preguiçosa e comilona,

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  10. Hilário Franco Junior acrescenta algumas notas em seus livros Cocanha: A história de um país imaginário, 1998 (p.289, nota 44) e Cocanha: Várias faces de uma utopia, 1998 (p.58, notas 1 e 2) para fundamentar a relação paródica entre a novela doDecameron e os relatos cocanianos: citando Mario Marti (Decameron, vol. II, p.524, nota 5), ele observa que Berlinzone é uma criação do autor, derivada ou de berlingaccio (quinta-feira gorda) ou de berlingare (conversar de barriga cheia). Com POESCHEL (“Das Märchen”, p.408), ele explica que o nome Bengodi viria de ubi bene gaudetur, “onde só há alegria”. Ele observa ainda que Boccaccio aproveita o duplo sentido de pàpero – “marreco”, mas também “tolo” – para ironizar a ingenuidade de quem acredita na Cocanha.
  11. E. R. Curtius, Literatura européia e Idade Média latina, pp.140-141.

    Indecente, sem fé e desleixada,
    De modo que ouvir sobre o País dos Preguiçosos Ajude a corrigir seu vício,
    Ajude a ocupar-se com trabalho,
    Pois sabe-se que a preguiça nunca trouxe nada de bom.

    Numa versão da década de 1560, a Cocanha é governada por um rei bufão, Panigon. São convidados a entrar naquele reino os “confrades do Rei Preguiça”, os “indolentes, dorminhocos,/Gente ociosa, gente cansada, retardatários”, aqueles que, “sem objetivo algum/Ficam se balançando, mãos no peito:/Gente acostumada a ficar na rua/Sempre sentada à vista de todos,/Cantando, assobiando, balançando pés e cabeça”. No Reino de Panigon aconselha-se a “Odiar o trabalho, amar a Senhora Preguiça,/Dormir pesado, roncar bem alto”, pois tal procedimento integra formas de progredir. O poeta termina convidando os habitantes de Panigon a uma reflexão, exortando-os a trabalhar, seguir a virtude e amar a honra como um meio de se obter a glória e a felicidade, sob pena de lhes ser imputada a seguinte condenação: “Fome nos dentes, frio nos pés”.
    No Nordeste brasileiro, referências ao país de São Saruê aparecem nos primeiros folhetos de circunstância escritos por Leandro Gomes de Barros. São, contudo, poemas que manifestam o olhar desdenhoso do poeta sobre aquele tema popular, deixando transparecer sua desilusão e seu descontentamento frente à sociedade e à política econômica do governo. Leandro não concebia que, diante de tanta opressão, carestia, impostos e fome, existissem pessoas tão acomodadas que preferissem o ócio ao trabalho, manifestando seu inconformismo pelo menos em três oportunidades: no poema A mulher e o imposto (1910-1912), em A vontade do preguiçoso que tudo quer sem trabalhar, editado bem depois de sua morte, em 1953, e no folheto Uma viagem ao céu, sem data.
    No folheto A vontade do preguiçoso que tudo quer sem trabalhar, o poeta reproduz em versos as aspirações sociais concretas do homem que vive da terra e das parcas moedas que o trabalho árduo lhe proporciona. A forma interjetiva com que o poeta inicia a maioria das estrofes exprime o desejo por um mundo melhor, livre da fome, das agruras da vida e do tédio causado pela faina da vida ordinária:

    Ah! se a terra fosse 1 queijo Como dizia José
    As pedras fossem rapadura As vertentes de café
    Dava para o consumo Todo mundo tinha fé.

    Ah! se o mar fosse de leite E as ribanceiras de pão!... [...]
    O arroz quando botasse Já fosse o cacho pilado Cada cacho quarta e meia Já dava algum resultado Para todo agricultor
    Se trabalhasse arrendado12.

    O poeta arremata afirmando que um mundo assim perfeito condiz apenas com a vontade de um preguiçoso, manifestando, desse modo, sua crítica ao elogio do ócio presente no mito:

    Se feijão botasse assim Como o verso está dizendo Já se via um preguiçoso Enorme esforço fazendo Somente com o interesse De ir apanhando e comendo.

    Mesmo se a morte e as doenças fossem banidas, e só existisse riqueza entre os homens, não haveria “firmeza”, conclui o filósofo do senso comum:

    Se a gente nunca morresse Toda vida fosse moço Nunca caísse doente Nossa vida era um colosso Vivia-se tranquilamente
    Neste mundo sem sobrosso.

    Vivia tudo gosando Neste mundo de grandeza Toda pessoa era rica
    Não existia pobreza Era demais as delícias Mas não havia firmeza.

    Contudo, a realidade concreta desdiz a lenda, e o poeta decide concluir sua “obra” diante “De toda vontade perdida”, desencanto resultante do esfacelamento das expectativas naquele começo de século:

    Mas como não é assim Vou findar a poesia Tudo deve ser na conta Que demais é demasia Acho ser muito guloso

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  12. O poema foi reeditado em 1950 pelo poeta/editor José Bernardo da Silva. Sebastião Nunes Batista credita a autoria do poema a Leandro Gomes de Barros. (Bibliografia Prévia de Leandro Gomes de Barros, p.65).

    Quem tudo desejaria.

    Vou terminar minha obra Mas fica bem conhecida Tudo leitor pode ler
    Que acha boa saída Acabei de recitar Toda vontade perdida.

    No poema A mulher e o imposto, o poeta derrama suas queixas contra o tempo: “O mundo valia [a] pena/A terra fazia gosto/Se apparecesse uma herva/Com que matasse o imposto”. Na continuação, desmistifica o ideal utópico cocaniano da abundância em detrimento da real situação vivida pelo camponês nordestino, acrescentando um “se” à narrativa:

    Se o homem quando nascesse Fosse calçado e vestido,
    Se o feijão que se plantasse
    Botasse logo cosido
    Com carne, toucinho, verdura, O mundo estava garantido. [...]
    Se às 6 horas da manhã
    Chovesse leite de vacca, Houvesse um rio de aguardente, Daquela mesmo que ataca Dormia um mundo n´um porre Acordava de ressaca13.

    Na última estrofe, a referência satírica ao “rio de aguardente” serve para desinstalar do imaginário e do plano lendário, o “riacho de vinho” cocaniano e o “rio de leite” que corre em São Saruê”. Assim, “a lenda se desfaz facilmente na ironia”, diz Luigi Pirandello, pois o poeta “busca o acordo entre as razões do presente e as condições fabulosas do passado14”, desmistificando-a. No decorrer da narrativa, a lenda vai se diluindo, num continuum, frente à crueza da sátira, pois ao acordar do sonho, e de ressaca, o sertanejo tem que digerir o prato
    que o governo quiser botar sobre sua mesa. Acossado pelas taxas excessivas sobre os produtos agrícolas, o camponês, impotente, abandona a enxada e “Pensa em botar um negócio”. Contudo, vê-se logo obrigado a dividir o lucro com o governo, que lhe diz: “Eu sou o primeiro socio,/Porque o sabido come/É a custa do beocio”. A lógica fiscal do governo equipara-se à lógica do malandro. A inversão satírica dos papéis, contudo, serve ao poeta de

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  13. Leandro Gomes de Barros, A mulher e o impostoDecima de um portuguez a sua namoradaHistória de João da Cruz (continuação – 2º volume), Recife, LGB, 1911.
  14. Luigi Pirandello, O humorismo, São Paulo, Experimento, 1996, p.105.

    pretexto para colocar o governo na condição de vilão, usurpador, malandro, uma vez que, por meio dos mais engenhosos ardis, acaba frustrando todos os projetos do pobre que procura recomeçar sua vida no ramo dos negócios. Primeiro, o candidato a comerciante enreda-se nas malhas da burocracia, na forma de licenças e aferições:

    Antes de botar negócio Precisa está alerta, Licença de porta aberta E pagar a afferição
    E esperar pela collecta.

    Depois, vencida a primeira etapa, vêm os impostos, cobrados pelo fiscal a seu bel- prazer. No imaginário popular, o coletor “come de meia15” com o governo:

    Já pagou porta aberta, Pagou mais aferição Pagou a limpeza publica, Paga mais a revisão, Inda é preciso pagar Industria de profissão.

    Dá o que o fiscal pedir
    Se não por nada é multado...

    Conclui o poeta, com amarga ironia: “Faça o pobre o que fizer/Está sempre desarrumado”, desencanto que o teria levado a acrescentar um “se...” à lenda de São Saruê. O episódio é representativo da vida de muitos poetas populares que, vendo-se obrigados a abandonar o antigo ofício, em razão das flutuações climáticas e econômicas, passaram a editar e vender folhetos para sobreviver. Essa realidade é traduzida em versos pelo poeta popular Manoel Vieira do Paraíso nos seguintes termos:

    Ali deixei a enxada
    E disse, eu faço é assim: Eu vou é fazer meus versos É melhor coisa pra mim Dei a enxada à ferrugem
    E o cabo ao cupim16.

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  15. A impopularidade do coletor de impostos, executante das deliberações do governante, remonta à França do século XVII, onde os impostos eram “arrendados”, equivalente a “comer de meia” no imaginário popular. Na França, a prática consistia no fato de que o direito de coletar impostos era vendido com desconto a particulares conhecidos como partisanstraitantsmaltotiers ou gabeleurs (assim chamados pelo famoso imposto sobre o sal, a gabelle. Segundo Peter BURKE, Cultura popular na Idade Moderna, p.184, os coletores eram citados pelos camponeses rebeldes e outros como “tiranos”, “canibais”, “sugadores de sangue”, e não raro eram atacados ao executar a cobrança.
  16. Versos citados por Átila de Almeida e José Alves Sobrinho, Dicionário bio-biliográfico de repentistas e poetas
    de bancada, João Pessoa/PB, Editora Universitária, 1978.

    A sátira ao mito provém do desencanto com o que seria o século das “luzes”, quando o que se vê é escuridão, lamenta Leandro no soneto A urucubaca, de 1915, segundo tópicas do sensacionalismo e da maledicência:

    Este anno é o anno da cigarra Este ceculo das luzes é tão escuro!
    Vejo um rio se encher de sangue puro
    E no mar civilisado ir fazer barra.

    A metáfora do rio de sangue é representativa dos horrores da Primeira Guerra, noticiados pelos jornais da época. Por conta da crise que assola o mundo, não se vê mais a abundância dos tempos de outrora, “A mizeria com desdém no mundo escarra”. As queixas contra o tempo atual são uma constante na poesia de Leandro, que volta mais uma vez seu olhar satírico ao mito de São Saruê em Uma viagem ao céu para traçar o perfil de uma sociedade à beira do caos social, condensada na pessoa do comerciante falido, vítima da “quebradeira” geral. Neste folheto, o poeta-personagem introduz sua estória nos termos do tradicional “Era uma vez...” para tratar, paradoxalmente, de uma situação bastante atual:

    Uma vez eu era pobre Vivia sempre atrazado Botei um negócio bom Porém vendi-o fiado Um dia até emprestei O livro do apurado.

    Dei a balança de esmola E fiz lenha do balcão Desmanchei as prateleiras Fiz delas um marquezão
    Porém roubaram-me a cama Fiquei dormindo no chão.

    Estava pensando na vida Como havia de passar Não tinha mais um vintém Nem jeito pra trabalhar
    O marinheiro da venda Não queria mais fiar17.

    Nos folhetos satíricos de Leandro, o leitor/ouvinte é levado a entender que a opressão reinante provém dos homens no poder, e não de Deus. Os textos satíricos de Leandro guardam traços inconfundíveis da sátira menipéia apresentada por Bakhtin. De acordo com o teórico russo, uma das particularidades do gênero da menipéia consiste em que a fantasia mais

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  17. Leandro Gomes de Barros, O homem que vendeu o santo para jogar no bichoUma viagem ao Céo, Recife, Tip. Moderna, [s.d.].

audaciosa e descomedida e a aventura são interiormente motivadas, justificadas e focalizadas com um fim puramente filosófico-ideológico, qual seja, o de criar situações extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica: uma palavra, uma verdade materializada na imagem do sábio que procura essa verdade. Com este fim, conclui o teórico, os heróis da “sátira menipéia” sobem aos céus, descem ao inferno, erram por desconhecidos países
fantásticos, são colocados em situações extraordinárias reais18. No folheto, quando o poeta-

personagem encontra-se numa situação limítrofe, entre a desordem terrena e o fracasso moral, aparece-lhe um anjo. Naquele estado de coisas, a única solução só poderia vir do outro- mundo:

Pus a mão sobre a cabeça Fiquei pensando na vida Quando do lado do céu Chegou uma alma perdida Perguntou era o senhor Que aí vendia bebida?

A imagem do anjo que desce ao plano terreno, e por isso mesmo rebaixado à condição humana, parece obedecer à lógica invertida das profanações carnavalescas, sustentada por todo um sistema de descidas, aterrissagens e alegres violações do sagrado: no folheto em tela, o ser divino bebe “obra de 3 contas” da aguardente que restara no estabelecimento, “Obra de uns 2 garrafões”. Satisfeito, convida o poeta a ir para o céu em sua companhia, lugar onde “se bota barriga”. Esvaziado de sua função religiosa, o céu é reduzido à categoria de paraíso alimentar, único lugar onde a fome pode ser realmente saciada. Assim, num tom paródico, o poeta atualiza o motivo folclórico-carnavalesco das viagens imaginárias a mundos igualmente imaginários:

E lá subi com a alma Num automóvel de vento Então a alma me mostrava Todo aquele movimento As maravilhas mais lindas Que existe no firmamento.

Bakhtin assinala que a menipéia incorpora freqüentemente elementos da utopia social, que são introduzidos em forma de sonhos ou viagens a países misteriosos. Em Leandro, contudo, a retomada do elemento folclórico-carnavalesco cumpre uma função meramente satírica, de modo que a arquetípica moldura passa a acomodar elementos da tradição ao lado de elementos da atualidade, numa relação de aparente equivalência. Tal conjunção revela a

posição do poeta frente ao sistema político-religioso-econômico-social da época. Considerado o “jornal do sertão”, o folheto de cordel manifesta claramente alguns traços da publicística menipéica. O folhetinismo e a atualidade mordaz lembram Luciano, Varron, Petrônio e Apuleio, cujas sátiras são plenas de alusões a grandes e pequenos acontecimentos da época, apresentando-se como uma espécie de “Diário do escritor”, que procura vaticinar e avaliar o espírito geral e a tendência da atualidade em formação.
No folheto em tela, “purgatório” e “inferno” são esvaziados de sua habitual função religiosa e moralizante, respectivamente lugares de purgação das culpas e de punição, passando a reproduzir as condições terrenas de opressão gerada pelo trabalho forçado e pela má remuneração. No conjunto, a imagem do “diabo cantando” reflete a desumanidade dos poderosos para com os menos favorecidos:

Passamos no purgatório Tinha um pedreiro caiando Mais adiante era o inferno Tinha um diabo cantando E a alma de um ateu
Presa num tronco apanhando.

Chegando ao céu, o poeta-personagem é recepcionado por São Pedro, que o convida a conhecer as benesses do lugar. Na horta celestial depara-se com árvores carregadas de libras esterlinas: subreptícia alusão ao capital inglês dominante: “Vi na horta de São Pedro/Arvoredos bem criados/Tinha pés de plantações/Que estavam carregados/Pés de libras esterlinas/Que já estavam deitados”. Em contrapartida, na São Saruê celestial, “Prata de quinhentos réis/Eles lá chamam caipora/Botavam trabalhadores/Para jogar tudo fora/,/Esses níqueis de cruzados/Lá nascem de hora em hora”, versos relativos à desvalorização da moeda nacional durante a Primeira República.
Sarcasticamente, o poeta é trazido de volta à realidade pela interferência da sogra, reencarnação popular da rainha dos infernos, Prosérpina, figura horrenda das diabruras medievais que, tendo conseguido fugir do purgatório, onde cumpria sua pena, consegue interceptar o raio que servia de montaria ao poeta em seu retorno a terra:

Eu desci do céu alegre Comigo não foi ninguém Passei pelo purgatório Ouvi um barulho além Era a velha minha sogra Que dizia: eu vou também.

Eu lhe disse: minha sogra Eu não posso a conduzir Ela me disse: eu lhe mostro Porque razão hei de ir
E se não for apago o raio
Quero ver você seguir.

Nisso o raio apagou Desmantelou-se o trovão O corisco que trazia Escapoliu-se da mão
E tudo quanto eu trazia Caiu desta vez no chão.

A escrita de Leandro é paródica à medida que procura desinstalar do imaginário coletivo tudo o que fora idealizado no plano dos sonhos, algo fomentado, ao longo dos séculos, pela tradição oral e pela própria literatura de cordel, através dos contos maravilhosos, das histórias de lutas. Porque essas histórias se conformavam à ordem vigente e naquele momento, destoavam da realidade concreta vivida pelos brasileiros. Daí sua sátira às utopias. Porque as promessas do governo reproduziam, em germe, todos os ideais de justiça, abundância e igualdade sedimentados no imaginário popular, quando na verdade os discursos da classe no poder se desenvolviam no plano da artificialidade e dos interesses particulares.
Embora o alvo do poeta sejam os poderosos, às vezes, de forma engenhosa, ele expõe ao ridículo a ingenuidade e a subserviência do pobre, fazendo-o, porém, de forma dissimulada, fingindo atirar neste para acertar naquele. A sátira à credulidade do povo serve ao poeta de pretexto para denunciar a mentira perniciosa por trás do discurso oficial, abrindo clarões na consciência das classes menos favorecidas no limiar do que seria o século das “luzes”. Paradoxalmente, no seu inconsciente, a sátira apregoa a morte das utopias sociais, da
idéia de “boa sociedade”19, fazendo, desse modo, o jogo da modernidade que, por sua vez,

rejeita e nega o que de folclórico e supersticioso subsiste na cultura popular.

Referências bibliográficas


ALMEIDA & SOBRINHO, Átila de, José Alves. Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancada. João Pessoa/PB, Editora Universitária, 1978.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski (Trad. Paulo Bezerra). Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981.

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1Zygmunt Bauman, Vida líquida. Rio de Janeiro, Zahar, 2007, p.19.

BATISTA, Sebastião Nunes. Bibliografia Prévia de Leandro Gomes de Barros. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1971.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida (Trad. Carlos Alberto Medeiros). Rio de Janeiro, Zahar, 2007.
BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão (Trad. T. Guimarães). São Paulo, Abril, 1971. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa – 1500-1800 (Trad. Denise Bottman). 2. ed., São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
CARVALHO, Wladimir. O País de São Saruê: Um filme do Nordeste. Brasília, UNB, 1986. CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média Latina. São Paulo, Edusp, 1998. FRANCO JUNIOR, Hilário. Cocanha: Várias faces de uma utopia. São Paulo, Ateliê, 1998.
Cocanha: A história de um país imaginário. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

. “Mito, literatura e sexualidade no ocidente medieval – o exemplo da Cocanha”.

Extensão, v.8, n. 25, abr. 1998, pp. 9-15.

PIRANDELLO, Luigi. O humorismo. São Paulo, Experimento, 1996.

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