sábado, 28 de fevereiro de 2015

CARNAVALIZAÇÃO E DIALOGISMO: UMA LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS POLIFÔNICOS - Hiran de Moura Possas

CARNAVALIZAÇÃO E DIALOGISMO: UMA LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS POLIFÔNICOS

Hiran de Moura Possas1

RESUMO: Este estudo fundamentou-se em um breve diálogo com a teoria de Bakhtin, que, ao conceber a linguagem como criação coletiva, possibilita que muitos “eus” e muitos “outros” dialoguem com sua teoria, inclusive as obras literárias escolhidas para este estudo: O alienista, Macunaíma, Bíblia sagrada, poesias de Murilo Mendes e Don Quixote.


PALAVRAS-CHAVE: Paródia; carnavalização; dialogismo


No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamara de Macunaíma.

MARIO DE ANDRADE 2


A paródia é uma constante em produções literárias contemporâneasBasta-nos apreciar o sem número de releituras do poema Canção de Exílio de Gonçalves Dias, porém a sua presença não se restringe às poéticas atuais, pois textos parodísticos já existiam na Grécia e Roma antigas, bem como na Idade Média.
Parodiar significa dizer que a linguagem dialoga artisticamente consigo mesma, o que nos estudos de Jakobson se configura em um contexto metalingüístico, onde o artista faz arte3, com, e a partir de textos alheios.
A origem grega do termo para-ode revela uma ode que subverte o sentido de outra, criando deste modo um contracanto ou uma subversão do canto original.
Quanto à definição de paráfrase, sua etimologia aponta para o grego paraphrasis, que significa a continuação de uma sentença. Seria uma reafirmação de uma determinada obra escrita, ou uma referência a uma ideia de uma obra, para o esclarecimento de uma passagem mal resolvida, procurando seguir o sentido impresso pelo autor da obra original, mas não exatamente

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2ANDRADE, M. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. 16. ed. São Paulo, Martins Editora S.A., 1977.
  1. A palavra tem neste contexto um duplo significado. Arte no sentido estético, como também no sentido de brincar com o texto alheio.
    palavra por palavra. Seria mantido, sim, o efeito ideológico da linguagem primeiramente utilizada.
    Comparadas, paródia e paráfrase diferenciam-se justamente pela questão do deslocamento ou abandono do sentido inicial. Enquanto na paródia há uma ruptura quase que total, uma deformação ou devoração da semântica inicial, na paráfrase o diálogo intertextual é quase que harmônico.
    Tais composições literárias só se tornam realidade a partir da presença e intervenção do leitor. Quando a nova composição literária não é associada a uma obra anterior, simplesmente paródia e paráfrase não existem. Há na verdade uma íntima relação de diversas obras literárias, basta-nos, como leitores, realizarmos a aproximação ou o diálogo intertextual e atemporal de distintas poéticas.
    Sendo a paródia uma imitação pelo avesso, exemplos de sua subversão podem ser apreciados quando um poema sagrado torna-se profano; uma obra dramática ou trágica reveste-se de comédia. Há especialmente carnavalização na literatura clássica, com destaque para a grega. Os recursos estilísticos geralmente percebíveis na paródia são o paradoxo, uma forma de ambigüidade que nos faz, ao mesmo tempo, lembrar e repudiar o texto primitivo; a hipérbole, recurso que acentua as deformações impostas ao herói; e a ironia, artifício usado para gozar do herói e despertar no leitor algum tipo de reação ou identificação com a crítica apresentada:
    Neste meio tempo, Dom Quixote começou a persuadir um lavrador seu vizinho, homem de bem (se tal título se pode dar a um pobre), mas de pouca inteligência, a sair consigo como escudeiro: tanto lhe martelou, que o pobre coitado concordou. Dizia-lhe, entre outras coisas, que deveria ir de bom grado, pois poderia ocorrer de ter a sorte de ganhar uma ilha, da qual poderia ser governador4

    A carnavalização é uma questão cultural e social não digerida ou mal resolvida, ou melhor, denunciamos por meio do ridículo ou da dessacralização um mundo problemático, concebido às avessas, e transplantado para o corpus literário revelando “mésalliances e profanações.
    Este ritual parece ser comum em todos os tipos de festas carnavalescas, e simbolicamente, está relacionado por meio da “cosmovisão carnavalesca”, à ideia de mudanças e transformações. Possibilita-se, em um nível simbólico, parodiar as esferas do poder. No caso da coroação e do destronamento do rei, podemos tanto relacioná-los aos governos monárquicos da Idade Média, como também aos governos precários contemporâneos.

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  2. CERVANTES, Miguel. Dom Quixote. São Paulo: Editora Abril, 1978.
A identidade ambígua e paradoxal do rito reside justamente no que pode simbolizar: mudança, morte, renovação, e porque não, purificação. Para que se realize o desmascaramento, é necessário que ocorra o que Bakhtin chama da aproximação e combinação aleatória do sagrado com o profano, do elevado com o baixo, do grande com o insignificante, do sábio com o tolo. Com isso, temos o surgimento da “profanação” também dos considerados gêneros sérios ou cânones literários, tais como a epopéia, a tragédia, a história, a retórica clássica ou mesmo de escrituras sagradas, como a Bíblia. Podemos então dizer que, a literatura carnavalizada é o destronamento ou a própria dessacralização do conceito platônico de cultura (cultura como sinônimo de obtenção do saber – mundo das idéias), criando assim, uma concepção de caráter popular. A literatura carnavalizada não deixa de ser um resgate reatualizado da trajetória do gênero narrativo desde os seus primórdios, especialmente os gêneros tidos como menores (diálogo socrático e sátira menipéia).
Durante infindáveis leituras desfilaram até mim inúmeros personagens, heróis ou anti- heróis que ilustram as questões, aqui levantadas. Reservarei agora um espaço para o trato da questão.
O trecho da carta de Mario de Andrade a Sousa da Silveira revela suas intenções no

sentido da construção do “herói” brasileiro:

“Um poema herói-cômico, caçoando do ser psicológico brasileiro, fixado numa figura de lenda, à maneira mística dos poemas tradicionais. O real e o fantástico fundidos num plano. O símbolo, a sátira e a fantasia livre fundidos. Ausência de regionalismo pela fusão das características regionais. Um Brasil só e um herói só”5

Tendo como referência as leituras sobre a carnavalização literária, na obra Macunaíma encontramos diversas temáticas Bakhtinianas, como por exemplo, as inversões carnavalescas e a polifonia cultural e textual.
Na obra marioandradiana percebe-se uma rapsódia cultural. Nela se entrelaçam lendas ameríndias, africanas e portuguesas – formando uma colcha de retalhos discursiva. Macunaíma funde suas brincadeiras com lendas, canções, provérbios e superstições numa saga folclórica de um Brasil plural, como as quadras populares utilizadas: “Faz três dias que não como, Semana que não escarro, Adão foi feito de barro, Sobrinho, me dá um cigarro”6.

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4 ANDRADE, Mário de. 71 Cartas de Mário de Andrade coligidas e anotadas por Lygia Fernandes. Rio de Janeiro: Livraria São José, s/d.
  1. ANDRADE, M. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. 16. ed. São Paulo, Martins Editora S.A., 1977.
    Complementando os recursos estilísticos usados para gerar efeitos característicos da paródia especialmente o cômico, percebe-se o uso freqüente do ponto de exclamação: “empregados públicos! Muitos empregados públicos!”7
    O subtítulo da obra, herói sem nenhum caráter refere-se a uma suposta falta de caráter do protagonista preguiçoso, esperto e enganador; por outro lado indica uma ausência de uma identidade que sintetize o sentido de brasilidade. O herói da “nossa gente” não se enquadra em nenhum parâmetro, tem comportamento e aparência instável. Quando Macunaíma faz um balanço do que fez em sua vida, não achando mais sentido para viver, decide ir pro céu para ser o “brilho bonito mas inútil de mais uma constelação”8. Dialogando com sua consciência, deixa, sob a forma de metáfora transgressora sua mensagem: “Não vim para o mundo para ser pedra”9
    A pedra denota a disciplina rígida, lapidação do caráter, que o herói tanto condena, pois deixa claro que não veio ao mundo para ser disciplinado, muito pelo contrário, Macunaíma, por meio de sua esperteza e improvisação, burla as convenções e, de modo algum, quer ser um “Caxias”, que na definição do antropólogo Roberto da Matta é uma síntese do que o brasileiro não é: correto, disciplinado e cumpridor das regras. Para o pesquisador, o brasileiro se identifica com a figura do “malandro”, que na obra em questão, se personifica no herói de caráter duvidoso.
    Louco, profeta, sonhador, nosso próximo herói, em questão, fez de sua vida uma verdadeira passarela, por onde desfilaram seus delírios carnavalescos.
    O cavaleiro da triste figura, ou simplesmente Don Quixote, desperta no leitor inicialmente, por meio da análise da palavra triste, piedade: coitado, deve ser um louco que confunde moinhos com gigantes, ou faz de um homem simplório, de pouca inteligência e de aspecto físico deplorável, seu escudeiro. Ele encontra-se exilado num mundo irreal de sonhos e fabulações, que o deixa alienado, não só de seu grupo social, mas do momento histórico em que vive.
    Dom Quixote surge como uma sátira às novelas de cavalaria na Europa da Idade Média. A novela épica de Cervantes apresenta um herói pícaro que, elenca em si a percepção carnavalesca do mundo. Assim, o livro Dom Quixote pode ser considerado paródia, e um dos primeiros romances carnavalescos da literatura universal. Cervantes fundamenta sua obra em

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  2. ANDRADE, M. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. 16. ed. São Paulo, Martins Editora S.A., 1977.
  1. IDEM
  2. IDEM
citações e alusões a outras obras, textos literários da mitologia, das crenças populares, de fatos históricos e dos livros de cavalarias, bem como de personagens fantásticas, sempre presentes nos pensamentos, ilusões e pretensões do intrépido cavaleiro.
No caso específico da novela épica de Cervantes, a inversão dos papéis sociais recorrente à carnavalização pode ser notada nas atitudes Quixotescas, como, por exemplo, no fato de ser nomeado cavaleiro andante por sua obstinada vontade de sê-lo, contrariando normas de organização da sociedade medieval. Sua vida não apresentava regras, vivia ao sabor de seus ideais e suas convicções, mesmo que eles, em alguns momentos, ultrapassassem os limites da sanidade, como por exemplo, imaginar que uma simples camponesa fosse a princesa Dulcinéia, mulher digna de seu amor.
Do provérbio popular “de médico e louco, todos têm um pouco”, surge a figura carnavalizada de Simão Bacamarte, que em princípio, “entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas”10. Manifestava nosso herói, fé cega no discurso científico ao modo positivista, porém paradoxalmente, também rendia tributo a Deus ao agradecer por Dona Evarista, sua esposa, não possuir um rosto privilegiado, “porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte”11. Daí, quem sabe, inicia-se o processo de dessacralização científica, que se confundia com o agravamento de sua loucura. Como pode um cientista recorrer à religiosidade?!
As investigações de nosso cientista amadurecem e chegam a uma conclusão inesperada:

“Tudo era loucura”12. O mundo transforma-se num lugar de doentes mentais.

A loucura é um dos temas prediletos da cultura popular, instrumento ou quem sabe recurso literário desmistificador, que possibilita o enfrentamento do saber oficial ou hegemônico, tanto é que o alienista se converte em um alienado, pois decide internar-se na Casa Verde.
Outra aspecto ligado à carnavalização presente na obra Machadiana, é o exagero do pensar de alguns personagens. A saída hiperbólica de dona Evarista, para que seu marido se livrasse dos sintomas de loucura seria ir ao Rio de Janeiro e “comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim”13. Ela imagina um banquete no Rio de Janeiro, que seria servido, para que

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  1. ASSIS, Machado de. O ALIENISTA, virtual books 2005.
  2. IDEM
  1. IDEM
  2. IDEM
    Bacamarte se afastasse do estudo obsessivo. Ao render-se aos prazeres da mesa, o cientista poderia trazer de volta sua “normalidade”.
    Talvez o maior exemplo de “mésalliances” resida nos intertextos envolvendo escrituras

    sagradas.

    Na Bíblia: “E Deus criou o homem à sua imagem e semelhança” 14. Sobre a mesma

    questão, Murilo Mendes escreveu “Solidariedade”:

    “Sou ligado pela herança do espírito e do sangue ao mártir, ao assassino, ao anarquista,
    Sou ligado aos casais na terra e no mar, ao vendeiro da esquina,
    ao padre, ao mendigo, à mulher da vida, ao mecânico, ao poeta, ao soldado,
    ao santo e ao demônio, Construídos a minha imagem e semelhança”15

    Segundo o cap. I vers. 28 do Gênesis, Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, daí porque deveríamos ser todos iguais e filhos de Deus. O Texto Bíblico é dessacralizado no poema de Murilo Mendes. O poeta questiona a afirmação: será que todos são feitos à minha imagem e semelhança? Ou só os corretos, os puros e os tementes a Deus? Como ficariam os párias, os assassinos, os demoníacos, os prostituídos? Enfim, questiona-se a Bíblia, ao incluir os desajustados ou excluídos em seu texto: ou todos, sem exceção, são feitos à imagem e semelhança de Deus, ou o texto bíblico se contradiz?
    Por certo, a paródia, antes de ser um texto meramente depreciativo, é literatura de qualidade, fazendo-nos rever os cânones literários. Seu principal recurso retórico, a ironia, pode aproximar o leitor com as heranças do passado, integrando diferentes expressões de arte e cultura.
    As críticas de que a paródia faz o original perder seu poder ou parecer menos atraente se desfaz a partir do momento que entendermos que é uma das formas de trazer a tona o passado textualizando-o e incorporando-o com o presente. Portanto dessacralizar não se trata de destruir o original. Na verdade, apesar do paradoxo, pode ser uma forma de sacralização do passado.

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  3. Gênesis- Cap. I vers. 28

  4. MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
    Minha compreensão sobre a paródia extrapola visões reducionistas que a qualificam como simples reescritura negativa. Afinal, toda literatura é intertextual e nossos heróis às avessasMacunaíma, Simão Bacamarte, e Don Quixote nos apresentam, por meio de personalidades coletivas de vidas carnavalizadas, ritos de inversão, onde os valores sociais são subvertidos ou simplesmente ignorados. Para o antropólogo Roberto da Matta, exemplos sociais desta subversão são percebíveis, quando na festa do rei de mandato efêmero, a “puta” deixa seu posto de personagem marginal da sociedade e é colocada no altar, no lugar da Virgem, sendo uma referência para “outras” mulheres, principalmente quanto ao seu diálogo franco, natural e sem tabus com seu corpo.
    Nossos heróis, apesar de moralmente discutíveis, não deixam de também ser referenciais, afinal a busca da verdade pode ser uma loucura, porque o conhecimento não se apreende, não é capturável, também residindo nas experiências alheias, principalmente naqueles que vivem uma condição social de invisibilidade (Sancho Pança). Ou ainda, na experiência Pessoana transplantada para Macunaíma: dependo de onde estivermos, as máscaras devem estar preparadas para a ocasião. Daí vem o fato, talvez, do herói da nossa gente ter sido tão bem sucedido, como ator16 social em suas brincadeiras com a vida.

    REFERÊNCIAS


    ANDRADE, Mário de. 71 Cartas de Mário de Andrade coligidas e anotadas por Lygia Fernandes. Rio de Janeiro: Livraria São José, s/d.

    ANDRADE, M. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. 16. ed. São Paulo, Martins Editora S.A., 1977.

    ASSIS, Machado de. O ALIENISTA, virtual books 2005.

    BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense- Universitária, 2002.

    CERVANTES, Miguel. Dom Quixote. São Paulo: Editora Abril, 1978.

    DAMATTA, Roberto. Carnavais Malandros e Heróispara uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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  5. Ator no sentido de sujeito histórico social e como artista que assume certa aparência ou comportamento dependendo da ocasião
GUERRA, Ruy. Ópera do Malandro. 1985.

HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Guaciara Lopes Louro. 7.ed. RJ DP&A, 2002.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

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