sábado, 28 de fevereiro de 2015

Trabalho Indígena na Formação das Alagoas (Século XIX): os índios das matas nas falas e relatórios oficiais -Amaro Hélio Leite da Silva

Trabalho Apresentado no Simpósio Temático “Os Índios e o Atlântico”, XXVI Simpósio Nacional de História da ANPUH, São Paulo, 17 a 22 de julho de 2011


Trabalho Indígena na Formação das Alagoas (Século XIX): os índios das matas nas falas e relatórios oficiais1


Amaro Hélio Leite da Silva2

Introdução


As Falas e Relatórios oficiais da Província das Alagoas, século XIX, constituem um conjunto de documentos históricos importantíssimo para compreendermos a história dos índios das matas alagoanas. São muitas as Falas e os Relatórios provinciais sobre os índios, mas todos convergem para uma escrita do poder, na medida em que estabelecem os fundamentos políticos e econômicos da formação das Alagoas do século XIX. Na prática, isto significava ampliar o território da produção e a reserva de mão de obra; ou seja, era preciso acabar com a resistência dasgentes das matas, especialmente a dos índios, que ocupavam terras férteis e resistiam ao trabalho forçado. Seja como soldados do Império, rebeldes das matas ou como força de trabalho, os índios sempre resistiram às formas de opressão da sociedade senhorial.

Há um movimento crescente de pesquisas e bibliografias sobre os índios de Alagoas, porém são raros os estudos historiográficos sobre as formas de trabalho indígena no século XIX. Existem documentos e registros históricos pouco explorados, mas fundamentais para compreensão da história indígena desse período. Dentre esses documentos, podemos destacar os Relatórios e Ofícios das Diretorias Parciais dos Índios e da Diretoria Geral dos Índios, publicados por Clóvis Antunes em 1983; Os Índios nas Falas e Relatórios dos Presidentes da Província das Alagoas, publicado por Almeida em 1999. A publicação desses documentos ajudou a esclarecer um pouco mais sobre algumas lacunas da nossa historiografia, contribuindo, inclusive, para a formação de uma nova escrita da história indígena em Alagoas. Entretanto, não foi uma publicação analítica, não havia a preocupação com a análise sistemática dos

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  1. Artigo aprovado para o XXVI Simpósio Nacional de História da ANPUH – Simpósio Temático 111: Os Índios e o Atlântico.
  2. Mestre em Sociologia pela UFAL, professor do Instituto Federal de Alagoas (IFAL), coordenador do Grupo de Estudos Memória e Etnohistória de Alagoas (GEMTEH), membro da executiva da ANPUH – Regional Alagoas e membro do grupo de estudos Índios de Alagoas: cotidiano e etnohistória.

    documentos, permanecendo o problema do silêncio sobre a história indígena do século XIX.

    Neste artigo, pretendemos seguir os caminhos abertos por Antunes e Almeida na construção dessa nova historiografia, refletindo sobre a força de trabalho indígena na perspectiva das falas e relatórios oficiais do século XIX, especialmente dos índios das matas. Consideramos esta análise fundamental, pois ela nos leva a uma relação necessária entre a história indígena e as bases da formação histórica das Alagoas: sociedade, produção e poder local. Isto significa dizer que o estudo da história indígena não passa por uma história tradicional, mas por uma história que se aproxime da vida de pessoas comuns – seu cotidiano, seu trabalho, suas lutas; enfim, sua história de resistência. Estamos em busca da “história vista de baixo”, ou seja, estamos destacando a necessidade de uma história indígena que, parafraseando Thompson, na história oficial de Alagoas emerge como problema que o governo tem de lidar (2001, p. 185). Segundo Sharpe, a “história vista de baixo” significa “compreender o povo no passado à luz de sua própria experiência e suas próprias reações a essa experiência” (1992, p. 42).

    Os pressupostos das Falas e Relatórios Oficiais


    As Falas dos Presidentes da Província e os Relatórios dos Diretores dos Aldeamentos Indígenas das Alagoas, século XIX, são um dos poucos registros históricos sobre os índios de Alagoas, inclusive sobre os índios das matas, que depois de 1870, foram considerados extintos pelo Estado e desapareceram da historiografia oficial. Sabemos das dificuldades que é trabalhar com documentos oficiais; eles são
    escassos ou trabalhados na perspectiva dos poderosos.3 No caso das Falas e Relatórios

    que iremos tratar aqui, são documentos que expressam a visão de um poder que busca informar e formar a história das Alagoas, que foram construídos como discurso pedagógico dessa história, instrumentos de coerção moral da sociedade senhorial. Portanto, se quisermos escovar a história ao contrário, como Walter Benjamin pretendia fazer, é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas (GINZBURG, 2002,
    p. 43); e isto inclui os testemunhos orais, os documentos oficiais e a própria historiografia.
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  3. Como diz Thompson, “essas fontes essenciais são exaustivamente interrogadas pelos historiadores, não somente em busca de nova evidência, mas em um diálogo em que eles propõem novas perguntas” (apud SHARPE, 1992, p. 48).

    O relato do Diretor do Aldeamento de Palmeira dos índios, Alexandre Gomes da Silva, é emblemático para se ter uma visão geral sobre os índios das Alagoas no início do século XIX. É a fala do poder preocupado com a “natureza indolente” dos índios. Nessa fala, os índios são primitivos, incapazes de produzir sua própria subsistência; são, no dizer do próprio diretor,naturalmente preguisozos e vadios e não tem outro modo de
    vida, que a cassa e o roubo.4 Ainda segundo o diretor, a prova da primitividade e

    incapacidade produtiva dos índios é o seu modo de vida: sua resistência ao trabalho e o roubo praticado contra os proprietários, o que justifica a sua pobreza e a ausência de propriedade indígena:

    [...] não pude descobrir nesta Mição huma só obra das mãos dos Índios; digna de ocupar lugar no Muzeo Imperial e Nacional; pois os mesmos Indios apenas sabem fabricar hum arco, hum pote, e huma rêde de carreira, e isto mesmo muito malfeito. Quanto aos produtos naturais, principalmente do Brasil, nada cultivão; como vadios que são, só se empregam na casa, e a sombra dela roubão tudo quanto pode aver dos lavradores, e criadores de gados [...] entre estes achão- se alguns que se alugão aos agricultores no tempo de derrubada roçamentos e culheita. Daqui vem não terem caza e nem roça e nem outra qualquer propriedade.5

    Trabalho, produção e propriedade formam a tríade do desenvolvimento civilizatório das Alagoas. Sendo naturalmente preguiçosos, os índios jamais poderiam produzir o suficiente para ter propriedade e serem civilizados. O trabalho de alugado era um exemplo da incapacidade de tornar produtiva a sua própria terra; bem como a fabricação de um arco, um pote e uma rede, que reafirmam a sua indolência. Embora fale dos índios de Palmeira, o diretor constrói a imagem de primitivo que vai se estender aos outros indígenas durante o século XIX. É uma imagem que reflete a ausência de civilização, que é traduzida como ausência de trabalho, de produtividade e de propriedade, e que culmina com a ausência do próprio índio como membro da sociedade.

    Um Ofício de 1826, do Presidente da Província das Alagoas, Miguel Velloso da Silveira Nobrega e Vasconcelos, reforça a visão do índio indolente. Neste caso o presidente fala de uma natureza determinante na vida dos índios; ou seja, se eles são

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  4. Of. de Alexandre Gomes da Silva, em 08/11/1825, ao presidente da Província das Alagoas. Arquivo Público de Alagoas, Diretoria Parcial dos Índios, Cód. M. 39. E. 11, 1820-1872. Transcrito in: ANTUNES, 1984, p. 40.
  5. Idem.

    pobres, dispersos e sem propriedade é devido a sua natureza preguiçosa.6 É um círculo de vida que naturaliza a pobreza e a inferioridade do índio: ele nasce preguiçoso, é incapaz de produzir e vive voluntariamente disperso. Nas palavras do próprio presidente:

    [...] os referidos índios nenhuma oppressão soffrem senão a que lhes provém da sua natural indolência, e relaxada conducta: que havendo no districto da sobredita Villa quatro aldeamentos, a saber – Atalaia –
    1. Amaro – Limoeiro e Urucú – achão-se todos quase sem regularidade, e os índios debandados, e dispersos voluntariamente (particularidade os de Atalaia), nascendo isto de estar esta raça já constantemente cruzada.7

      Daí a necessidade de controle e integração dos índios ao processo civilizatório dos brancos, o que significa catequizá-los na Igreja, educá-los nas letras e transformá- los em força de trabalho. Embora fossem considerados naturalmente indolentes, os índios poderiam ser úteis, desde que administrados pelo Estado paternalista, pois eram incapazes de serem sujeitos de sua própria história. Esta é a visão do Presidente da Província das Alagoas, Manoel Felizardo da Silva, que, em 1842, propunha a demarcação das terras indígenas para conservar a primitividade dos índios e dar segurança aos proprietários de engenhos; ou seja, dar legitimidade ao esbulho das terras indígenas:

      A experiência tem demonstrado que os Índios, entregues a si mesmos são menos felizes, e menos úteis a sociedade, e que decrescem de uma maneira espantosa. A única maneira de conservarmos os primitivos habitantes da terra de S. Cruz e continuar-lhes a paternal administração [...] Sobretudo, Senhores, urge que se mandem medir e demarcar as terras pertencentes aos Índios [...] Esta medida vai por termo aos progressivos esbulhos, e ao mesmo tempo dar segurança aos empreendedores que tem construído Engenhos, e sítios em terra dos caboclos, e evitará a renovação das cenas da Atalaia em 1837.8

      Índio, preguiça e pobreza eram vistos como sinônimos. Era a moral do poder senhorial que justificava a ocupação das terras indígenas pelos engenhos e o controle do índio por parte do Estado. Thompson, em Costumes em Comum, dar exemplo da moral

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  6. Of. do presidente da província, Miguel Velloso da Silveira Nóbrega, ao Governo Central do Estado, em 26/11/1829. Arquivo Público de Alagoas, Presidência da Província das Alagoas. Cód. M. 39. E. 11, 1820- 1872. Transcrito in: ANTUNES, 1984, p. 43.

  7. Idem.
  8. Fala do presidente da província, Manoel Felizardo da Silva, à Assembléia Legislativa das Alagoas, em 04/02/1842. Presidência da Província das Alagoas. Transcrito in: ALMEIDA, 1999, p. 30-31.

    embutida no “uso-econômico-do-tempo” do trabalhador, que justificava a relação entre indolência e pobreza. É verdade que Thompson se refere a lógica da economia de mercado na Inglaterra do século XVIII, porém a relação tempo-trabalho-produção pode ser pensada, também, para a economia alagoana do século XIX:

    Se o preguiçoso esconde as mãos no colo, em vez de aplicá-las ao trabalho; se ele gasta o seu tempo em passeios, prejudica a sua constituição pela preguiça, e entorpoce o seu espírito pela indolência [...]”, então ele só pode esperar a pobreza como recompensa. (1998, p. 292).

    Para os representantes do poder, os índios estavam aldeados, tinham terras férteis e até produziam alguma forma de agricultura, como algodão, mandioca e legumes; alguns buscavammeios de vida fora do aldeamento; outros trabalhavam como assalariados; porém, tudo convergia para a reprodução da sua pobreza. Na ótica do poder senhorial, a economia indígena era primitiva e os seus meios de vida (fundados nos costumes) eram os verdadeiros responsáveis pela sua pobreza. Isto é o que podemos entender da fala do Diretor Parcial do Aldeamento de Palmeira dos Índios, Manoel Pereira Camêllo, em 21 de março de 1840:

    São geralmente pacíficos, e de boa conducta; faltão alguns que não são induzidos no mesmo arrolamento por andarem fora da Missão e, diversos lugares tratando de meios de vida costume nelles antigo, que se não tem podido evitar, por mais esforços que se facão. Os índios tem propriedade de terras, que lhes forão concedidas e demarcadas [...] nellas cultivam algodão, mandioca e legumes. Vivem também da caça e do salário que lhe resultar de se alugarem, razão, por que são pobres [...].9

    O trabalho indígena nas matas das Alagoas.


    A história de Alagoas não pode ser escrita sem a história dos índios das matas. Embora a historiografia oficial manipule, silencie ou, simplesmente, acabe com os índios das matas, a sua história está ligada ao tipo de sociedade que é formada em Alagoas. Portanto, para compreendermos essa história é preciso refletir sobre a importância das matas na vida das sociedades indígenas e da sociedade brancaSe para os índios a mata era lugar de resistência, necessária como estratégia e como sustento,

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  9. Of. do Diretor do Aldeamento de Palmeira dos Índios ao presidente da Província das Alagoas, em 21/03/1840. Arquivo Público de Alagoas, Diretoria Parcial dos Índios, Cód. M. 39. E. 11, 1820-1872. Transcrito in: ANTUNES, 1984, p. 49.

    conforme nos diz Almeida;1para os brancos ela era um paradoxo, que poderia se transformar em fonte de lucro ou em obstáculo político à formação da sociedade alagoana, a depender dos interesses e das circunstâncias do momento, que os colocavam em aliança ou em conflito com as gentes das matas.

    Segundo Carvalho (2007), as matas da Província de Pernambuco e Alagoas eram disputadas pelos poderosos da sociedade senhorial, a exemplo dos proprietários de engenhos, da Coroa e dos comerciantes locais. O problema era de que se tratava de um espaço habitado pelas gentes das matas: negros, índios e brancos pobres que viviam na floresta como estratégia de resistência e de sobrevivência. Além das terras férteis, as matas possuíam madeiras em grande quantidade e qualidade, eram madeiras nobres, usadas na indústria naval, nos engenhos e para exportação, sendo, portanto, um negócio altamente lucrativo (CARVALHO, 2007, p. 258-259).

    O grande movimento de consolidação da sociedade alagoana se deu com a conquista da terra e o controle dos índios, inclusive do seu trabalho. A conquista das matas era condição fundamental para dar continuidade a esse movimento. Foi justamente o que aconteceu no século XIX, com a destruição dos Cabanos do Jacuípe e com fim dos últimos aldeamentos nas matas alagoanas, consolidando a política de mando local sobre o trabalho e a propriedade indígenas.

    No contexto das falas e relatórios oficiais da Província, é importante destacar os relatórios do Diretor Geral dos Índios José Rodrigues Leite Pitanga, na medida em que antecipa a posição oficial de alguns Presidentes da Província das Alagoas. Embora reforce a idéia de atraso econômico e cultural dos índios das Alagoas, ele é um dos poucos representantes do poder a denunciar a violência e o esbulho das terras indígenas, além de defender os índios como potenciais trabalhadores do Estado.

    Em 1854, José Rodrigues Leite Pitanga traça um panorama sobre a situação dos índios de Alagoas, especialmente sobre os índios das matas. Segundo as suas informações, os aldeamentos das matas se destacam por possuírem terrenos agrícolas e abundância de madeiras. Apesar desse potencial econômico, Pitanga cita três razões para o atraso civilizatório do índio: 1) a madeira era mais atrativa do que a agricultura;

  10. “Sem ela, praticamente, seria impossível manter a resistência e isso demonstra que era necessário um ambiente que prouvesse, pelo menos, duas condições: a) a estratégia e b) o sustento.” ( ALMEIDA, 2004,

    2) os índios preferiam alugar a sua força de trabalho a desenvolver a agricultura das suas próprias terras; 3) a usurpação das terras indígenas pelos engenhos de açúcar.1Nas palavras do próprio Pitanga:

    Oito são as Aldeias de meu comando, sua população consta de 4.527 Almas, posto que inesato porem um pouco menos do numero real. Principio a dar informações das Aldeias do Norte da Província.

    Jacuípe contem 421 Alma, alguns sabem ler por existir uma Escola paga pela Nação; seu terreno é todo agriculo; mas a abundancia de madeira que tem caído ali hoje motiva os índios não planterem se-não mandioca para comerem tudo, ao mesmo tempo são empregados na mesma fartura de madeiras.

    Cocal sua população é de 416, Almas, o terreno é o mesmo que o de Jacuípe, a ocupação dos índios a mesma das madeiras, sendo então estes Indios mais infelizes no estado de civilização, porque até os mesmos officiaes não sabem ler.

    Urucu sua população 787, almas, terreno todo agriculo, e feliz, vivem os Indios da lavoura, e facturas de madeira [...]

    Limoeiro, sua população 174, Almas, terreno todo agriculo, os Indios mal lavrão para se sustentarem, e trabalham alugados a maior parte. Atalaia [...] São os mais civilizados dos Indios, o terreno é todo agriculo, e felizes, mas os Indios só tem direito no lugar onde mora [...]

    Santo Amaro tem 615 Almas, alguns sabem ler posto não aja escolas, o terreno e modo de vida é o mesmo dos de Atalaia [...].12

    Há uma preocupação evidente com o estágio de desenvolvimento econômico e cultural dos aldeamentos; no entanto, as exigências para a integração dos índios à sociedade dos brancos continuam as mesmas: propriedade agrícola, trabalho assalariado e educação nas letras. É interessante perceber que embora o mesmo Diretor dos Índios reconheça que a usurpação das terras indígenas pelos proprietários de engenhos seja uma ameaça à subsistência dos índios, ele enfatiza o trabalho indígena como o grande
    responsável pela pobreza e atraso civilizacional das aldeias.1Sejam como agricultores

    ou assalariados, os índios são incapazes de superar a sua miséria e primitividade, conforme afirma Pitanga:

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  11. Relatório do Diretor Geral dos Índios, José Rodrigues Leite Pitanga, ao Presidente da Província, em 22/12/1854. Arquivo Público de Alagoas, Diretoria Geral dos Índios, Cód. M. 37. E. 11, 1844-1863. Transcrito in: ANTUNES, 1984, p. 33-34.
  12. Idem.
  13. Relatório do Diretor Geral dos Índios, José Rodrigues Leite Pitanga, ao Presidente da Província, em 31/01/1854. Op. cit, p. 51.

    O trabalho dos Indios, ou seja de agricultura ou industria, apenas lhes dá para sua subsistência e vestirem pela maior parte muito mal [...] Acerca de sua civilização, com quanto ainda esteja bem atrasada em alguma aldeia como Cocal, Urucu, e Limoeiro, não se pode dizer que haja decadência [...] precisão porem de providencias que os tire do estado de miséria que domina nas aldeias e ponha geralmente igual dos outros brasileiros. Outro meio de melhorar as circunstancias dos Indios é demarcar-se as suas terras que se achão usurpadas por intrusos moradores e proprietários de Engenhos sem quererem pagar o respectivo arrendamento [...].14

    O problema dos índios das matas era o problema da terra. Neste sentido, é importante lembrar Mariátegui, quando afirma que a questão indígena não pode ser reduzida a um mero problema étnico ou moral independente da organização social e econômica (2002, p. 27). O problema central está na forma como o modo de produção afeta a vida indígena. No caso dos índios das matas, o poder senhorial procura subordinar as etnias determinando um lugar para os índios, para que estes não ameaçassem a estrutura agrária vigente. Ver a realidade indígena nesta perspectiva é ver o problema da propriedade da terra e, portanto, da indissociabilidade entre produção e etnia, já que no processo de construção do modo de vida dos índios, a terra é fundamental como espaço de relações sociais e produtivas.

    Sabemos que o problema indígena não pode ser reduzido ao problema da terra, mas no contexto das relações econômicas do século XIX, ela é central. Esta questão é importante, sobretudo para apreendermos o processo de ocupação das terras indígenas nas matas alagoanas. A tomada das terras indígenas era indispensável à “obra civilizadora”; era preciso adequar o índio e o seu espaço à estrutura da produção, o que significava sua eliminação cultural ou alguma forma de encobri-lo à guisa de sua integração à sociedade branca, como, por exemplo, transformando-o em força de trabalho assalariado.

    Proletarização indígena no século XIX


    Para compreendermos o processo de proletarização dos índios alagoanos, consideramos importante fazer uma breve reflexão sobre as formações econômicas pré-capitalistas.15Carvalho mostra que nas primeiras formações produtivas da história,

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  14. Idem.
  15. Esta perspectiva tem no marxismo a sua base de sustentação; o que demonstra a capacidade do marxismo trabalhar não apenas com as formações capitalistas da sociedade, mas também não-capitalistas (CARVALHO, 2003, p. 54).

    do tipo comunitário, o acesso à terra é um dos instrumentos que funda a relação de pertencimento do individuo à comunidade (2003, p. 54). É nesta relação com a terra que o homem se inscreve como força produtiva e constrói as suas representações. Mas, com a dissolução dessas formas comunitárias de propriedade, surge o trabalhador livre, não-proprietário das condições objetivas da produção.1Foi assim que se deu a desapropriação das terras indígenas no século XIX; ou seja, A matéria-prima, o instrumento, os meios de subsistência, a terra, convertem-se em não-propriedades, condicionantes de emergência de forma capitalista (CARVALHO, 2003, p. 54).

    É necessário frisar que nesse processo de desapropriação, a terra sempre foi elemento central da disputa entre índios e brancos. É justamente esse o drama de quando a história branca se encontra com a história indígena; pois se, por um lado, a terra tem um sentido integrador para a vida do índio (integrando indivíduo à comunidade); por outro, ela passa a ser, necessariamente, mercadoria nas mãos do branco.

    Analisando o processo de proletarização dos índios do sertão alagoano, Silva mostra que o problema da posse da terra indígena está ligado a expansão do sistema capitalista (2007, p. 119). Ao ser desapropriado da terra, o índio perde a base de sustentação material. Para sobreviver nesse contexto, o índio teve que se acoplar ao interesse do capital, transformando-se em reserva de mão-de-obra. Esta é a forma, preferencialmente, a partir da qual dá-se a continuidade da sociedade indígena dentro da sociedade alagoana no século XIX; ou seja, como trabalhador livre e despossuído da terra.

    Na lógica do poder senhorial, os índios poderiam ser úteis como força de trabalho, desde que houvesse controle e proteção por parte do Estado. De indolentes primitivos os índios são transformados em soldados fieis ao Estado e proletários necessários ao desenvolvimento das obras públicas. Para o Diretor Geral dos Índios, José Rodrigues Leite Pitanga, os indígenas têm um grande potencial para o trabalho,

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  16. Para Ribeiro, a transição da economia tribal para a nacional significa “a passagem da vida cooperativa da aldeia, toda voltada para a criação de condições de sobrevivência do grupo, para a economia do barracão, orientada para produzir lucros em função de necessidades alheias e com o desgaste da força de trabalho que consegue aliciar” (RIBEIRO, 1996, p. 386).

    principalmente, para o trabalho militar, pois são obedientes e fieis ao governo17. Nas palavras do próprio diretor, só assim o índio se torna “limpo”:

    Os Indios tem muita tendência para o trabalho, só lhes falta direção e proteção para as cultivarem com gosto. [...] por que arregimentados como estão tornão-se quase como militares por que todos são aguerridos e acostumados ao trabalho militar [...] por que isto mesmo estimula-os a trabalharem para se tornarem limpos, e sem pejo de acodirem ante os outros cidadãos.18

    Segundo Almeida (2008, p. 157), o controle dos aldeamentos era fundamental para que a sociedade branca garantisse força de trabalho, o que exigia uma estrutura de organização burocrática baseada na hierarquia, serviços e religiãoEsta perspectiva vai ser adotada pelo presidente da Província Anselmo Francisco Perreti, em 1844, quando ordena que se crie uma lei nomeando curadores para as áreas indígenas, no sentido de que estes possam orientar os índios no trabalho e na instrução pública.1Para o presidente, este é o único meio para livrar os índios do estado de semi-bárbaros em que se encontravam, além de livrá-los também dos vícios e dos hábitos criminosos.20

    O presidente encontrava no índio o substituto natural da mão de obra escrava que estava desaparecendo. O Estado brasileiro criava a política de imigração estrangeira como alternativa ao trabalho escravo do negro, mas para o presidente das Alagoas, a solução estava na transformação do índio em força de trabalho controlada e instruída
    para ser útil à sociedade e a economia dos brancos.2O Próprio presidente esclarece

    melhor esta idéia:

    Se derdes assenso a minha proposta, tereis a bondade de votar para retribuição dos curadores de que fia menção, a quantia que para tal fim consignei no orçamento. E do contrário espero que em vosso espírito tão fecundo em idéias luminosas, e em vosso patriotismo tão acrisolado, e geralmente reconhecido, depareis com remédios heróicos, capazes de tornar úteis a sociedade homens, que somente lhe são prejudiciais, e de por obstáculo ao total aniquilamento da raça dos antigos habitantes da terra de Santa Cruz, raça esta robusta, válida, apta para a navegação, lavoura, e artes mecânicas, a qual por falta de

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  17. Relatório do Diretor Geral dos Índios, José Rodrigues Leite, ao Presidente da Província, em 22/12/1854. Op. cit, p. 95.
  18. Idem.
  19. Fala do Presidente da Província Anselmo Francisco Perreti à Assembléia Legislativa das Alagoas, em 09/05/1844. Presidência da Província das Alagoas. Transcrito in: ALMEIDA, 1999, p. 32.
  20. Idem.
  21. Idem, p. 33.

    braços nossos, os que remos buscar alheios em países estrangeiros para obviar o desaparecimento de nossa decadente agricultura.22

    Opúsculo da Descripção Geographica de 1844 é um texto exemplar para situarmos Alagoas no contexto de formação do Estado nacional. Ao inaugurar a escrita da história senhorial da província, ele se preocupa com a configuração econômica das Alagoas, enfatizando papel e função do comércio e dos proprietários rurais, encontrando no conjunto das relações econômicas, condições para citar os capitalistas como os verdadeiros músculos do corpo social que nutrem essas relações (POR HUM BRASILEIRO, 2009, p. 28-29). O Opúsculo de 1844cita cinco aldeias indígenas existentes na Província das Alagoas, mas destaca apenas o objeto de exploração econômica. Nesta visão, reforça o jornal e entra na discussão da colonização:

    As aldeias de Indios que restão, huma em Porto Real (Collegio) à margem do Rio de S. Francisco, outra na Palmeira, huma na Atalaia e
    1. Amaro; e outra em Jacuhipe. Além de mui desfalcadas de população, os Indios não se querem sugeitar hoje a jornal [...] vivem quaze como na primitiva, caçando, e pescando. Por conseqüência mui proveitosa seria aqui huma colônia agrícola, não exclusivamente exótica, nem pelo methodo seguido, que não tem dado bom resultado; e sim por outro ou outros mais bem combinados que deixassem aos colonos lugar a se estabelecerem, e trabalharem tão bem por si, sugeitos com tudo, ao jornal de quem lhes fornecessem terras (POR HUM BRASILEIRO, 2009, p. 28).

      Esta perspectiva econômica vai se acentuar, sobretudo, nas obras de José Alexandrino Dias de Moura e de Thomaz Espíndola. Índios, negros e cabanos aparecem nesses textos, mas são tratados como parte de uma história anacrônica da Província: são selvagens, rebeldes e primitivos – e jamais poderiam ser sujeitos de sua própria história. Neste sentido, as obras reafirmam a indissociabilidade entre a escrita da história e a ideologia de classe. Os dois esboços de Dias de Moura revelam a necessidade do desenvolvimento econômico. Daí sua ênfase na “organização administrativa” da Província diante das “formas de vida social” precárias do povo alagoano (LINDOSO, 2005, p. 46-49).

      A Geografia Alagoana de Thomaz Espíndola (2001) reproduz a mesma lógica de mercantilização do espaço alagoano: ocupar, integrar e desenvolver o território para a indústria e o comércio. Sua Geografia Alagoana se divide em física, política e histórica

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  22. Idem.

    – mas tudo integra o sistema da economia política do local. Nesse sistema, o índio só poderia existir como sujeito de um tempo primitivo, pois como sujeito do presente seria obstáculo ao progresso econômico e ao poder de mando senhorial.

    Thomaz Espíndola fala de índios que habitavam as terras das Alagoas. São os caetés do litoral, os pitiguarés de Porto Calvo, abacatiares das ilhas do rio São Francisco, além dosaconãscoririscaropotós cairiris, que habitavam as proximidades desse mesmo rio (ESPÍNDOLA, 2001, p. 191). Eram os índios do passado, os primeiros povos das Alagoas, mas eram povos selvagens, ferozes e canibais, que deveriam ser domesticados pelos “nossos” da civilização.

    Esta imagem do índio se reproduz ao longo do século XIX através das falas do poder oficial. O presidente da Província das Alagoas, em 1850, José Bento da Cunha e Figueiredo, fala da necessidade de proteção e civilização dos índios através do trabalho e da mercantilização de suas terras.2Sozinhos, eles são incapazes de produzir e gerar renda nas suas próprias terras. Isto é que nos diz o próprio presidente:

    Felizmente, Snrs., não há nesta Província Índios a catequizar, mas a proteger e civilizar; e é no que tem havido o maior descuido. Aldeados em excelentes terras de agricultura, como são as de Palmeira, Atalaia, Cocal e Jacuípe, os índios de todas estas estâncias vivem entregues a mais condenável ociosidade, e apenas subsistindo do que a terra produz espontaneamente, e que assim mesmo colhem a bastante custo; no entanto que são eles mui próprios para serem empregados em diversos ramos de indústria, cujas vantagens não conhecem. Assim embrutecidos nem sabem ao menos defender e conservar os terrenos que a Nação lhes permite desfrutar, e de grande partes dos quais já estão privados, ou a força ou por meio de contratos leoninos.24

    Há um discurso estratégico do poder local para dominação da propriedade e do trabalho indígenas: os índios são incapazes pela sua própria ignorância e ociosidade. A saída para esse estado de “embrutecimento” seria a formação de uma mão-de-obra indígena e a mercantilização de suas terras.2Para a sociedade senhorial, o índio não conhece os benefícios da economia de mercado; daí o seu estado de natureza, vivendo

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  23. Fala do Presidente da Província, José Bento da Cunha e Figueiredo, à Assembléia Legislativa das Alagoas, em 05/05/1850. Presidência da Província das Alagoas. Transcrito in: ALMEIDA, 1999, p. 35- 36.
  24. Idem.
  25. É a saída para o que Darcy Ribeiro chama de engajamento compulsório: “O processo básico constituiu, portanto, uma violentação da vida econômica tribal e resultou na sua subordinação a uma economia mais ampla de caráter mercantil [...] o destino das tribos passa a ser regido por uma vinculação externa tendente a se consolidar e a se tornar cada vez mais opressiva” (RIBEIRO, 1996, P. 382).

    do que a terra lhes dar e não do que ele produz. A imagem do índio indolente e selvagem permanece, mas, desta vez, com a possibilidade de ser transformada em força de trabalho assalariada.

    Neste ponto, é interessante refletir sobre a ideia de propriedade na perspectiva de Locke. Segundo Thompson, Locke toma o índio como paradigma de um estado original antes da propriedade ser individuada e protegida, ele enfatiza as diferenças lógicas entre o índio e o branco, no que diz respeito ao trabalho e a propriedade da terra (1998, p. 134). Para ele, se o índio não desenvolve a terra com o seu trabalho, qualquer outra forma de produção, fora desta lógica, poderia justificar o “direito” a desapropriação das terras indígenas e sua pobreza “natural” (THOMPSON, 1998, p. 134). Thompson esclarece melhor esta visão lockiana de propriedade:

    Locke decidiu que o índio americano era pobre “por não desenvolver” a terra com o seu trabalho. Como o trabalho (e o desenvolvimento) constituía o direto à propriedade, tanto mais fácil para os europeus despojarem os índios dos seus campos de caça. A caça, a pesca, e até mesmo a plantação de milho e abóbora em pedaços de terra não cercados estavam certamente muito longe de “sujeitar” a terra. [...] Não podiam ser consideradas “benfeitorias”, sendo, portanto, tênue a sua reivindicação de estabelecer direitos de propriedade (THOMPSON, 1998, p. 134-135).

    Nesta perspectiva, o índio era pobre “por não desenvolver” a terra com o seu trabalho (Idem). Trabalho e “desenvolvimento” legitimam o direito à propriedade; logo, se o índio não trabalha as potencialidades produtivas da terra, ele não tem direito à propriedade. Daí o consenso entre os proprietários rurais e os representantes do poder senhorial das Alagoas de que os índios eram pobres por serem incapazes de produzir e ter propriedade.

    De soldados a proletários do Estado


    Segundo os documentos oficiais do século XIX, os índios das matas surgiram como força armada dos bandeirantes na derrubada dos Quilombos dos Palmares, final do século XVII. Suas terras são frutos dos serviços militares prestados à Coroa e aos poderosos locais. Para Silva, o recrutamento indígena e a militarização das aldeias foi uma prática recorrente na história do Brasil (2007, p. 48). Nesse processo, os índios souberam barganhar estrategicamente a garantia de seus territórios e sua proteção. Entretanto, embora chegassem a ser reconhecidos por algumas autoridades locais como

    soldados fieis ao Estado, depois da Guerra dos Cabanos e da Lei de Terras de 1850, os índios das matas perdem as suas terras para os proprietários rurais, restando-lhes a proletarização como única forma de sobrevivência, uma prática que se estendeu aos outros aldeamentos da Província.

    É de 1587 a primeira lei que regulamenta o trabalho assalariado dos índios. Trata-se da lei criada por Felipe II, que segundo Barbosa, “não apenas confirma a lei de
    D. Sebastião, de 1570, mas acrescenta medidas que possibilitavam o recrutamento de mão-de-obra indígena” (2007, p. 143). O problema era a condição de semi-escravidão vivida pelos índios nas missões, pois apesar de serem considerados livres, os missionários tinham o controle sobre o trabalho e o salário dos indígenas (BARBOSA, 2007, p. 143). Ainda segundo Barbosa, os índios reagiram a essa forma de exploração do seu trabalho, eles fugiram de missões por não aguentarem seu sistema, uma semi- escravidão com roupagem de comunidade e aldeia livre de exploração, já que se precisassem os sesmeiros de seus serviços, este deveria ser pago não ao nativo e sim ao missionário (2007, p. 148).

    Em Alagoas, o governo da Província oficializa a proletarização indígena em 1836, regulamentando as condições de trabalho dos índios nos Serviços das Obras Públicas. Esse regulamento estabelecia uma palhoça como abrigo, quatrocentos e oitenta réis por dia como salário e uma garrafa de aguardente para cada dez homens, devendo ser descontado do salário a carne fresca e a farinha dadas como alimentação.2Essas eram as condições propostas pela Casa do Governo das Alagoas, conforme determinava o presidente Rodrigo de Souza da Silva Pontes:

    Sendo necessário dar princípio quanto antes à obra do canal, que deve rasgar-se na Lagoa do Norte desde a Ponta Grossa até a rua da Cotinguiba nesta vila; [...] sobre a conveniência de mandar vir índios para serem empregados na referida obra, tenho resolvido, que V. M.ce. dê as providencias para que sejam ocupados nisso continuadamente cincoenta índios. Eles vencerão a quatrocentos e oitenta réis diários, descontando desse valor o preço de uma libra de carne fresca, e de um décimo de farinha, que se lhe dará. Também se distribuirão no fim do dia uma garrafa de aguardente por cada dez homens. Os primeiros índios, que vierem, serão logo aplicados a levantar uma palhoça para seu abrigo, e dos que lhe sucederem pois

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  26. Of. do Presidente da Província, Rodrigo de Souza da Silva Pontes, ao Diretor dos Índios da Atalaia e Santo Amaro, em 05/11/1836. Casa do Governo das Alagoas, por Joaquim José da Costa. Transcrito por ANTUNES, 1983, p. 144-145.

    que de mês em mês devem ser mudados, recebendo nessa ocasião o salário vencido.27

    A julgar pelos documentos dos diretores dos aldeamentos, parece que esta regulamentação jamais se efetivou, pois já em 1840, a proletarização indígena vira sinônimo de trabalho forçado.2Isto é o que indica o Diretor do Aldeamento de Palmeira dos Índios, Manoel Pereira Camêlo, quando fala da resistência dos índios para o trabalho nas obras públicas: Os índios palmeirenses se esquivaram porque nas experiências anteriores quando foram trabalhar na abertura do canal do Rio São Miguel foram maltratados e não lhes pagaram o seu jornal.29

    Na verdade, a precariedade das condições de trabalho nas obras públicas já era comentada pelas autoridades desde 1822, quando outro diretor, do mesmo aldeamento de Palmeira, Diogo José Pinto Cabral, justifica a dificuldade em trocar os trabalhadores indígenas devido à doença, pobreza e medo causados por este tipo de trabalho:

    [...] a muda dos Indios que se segue fazer os não posso andar por que os que tem decidido a esse trabalho todos se achão doentes de sezonia e o resto que tem saúde por cauza de sua pobreza e algum medo do dito trabalho vivem dispersos por estas matas caçando com algumas legoas de distancia [...].30

    Refletindo sobre o trabalho indígena nas obras públicas, é possível compreender as razões que levaram os índios a dispersão de suas aldeias e ao abandono do serviço nessas obras. Diferentemente do que afirmavam as autoridades locais, a dispersão dos índios de suas aldeias não era uma busca de “meios de vida”, era uma forma de fuga do trabalho forçado, cujas conseqüências eram a desorganização da vida nos aldeamentos, na medida em que gerava doença, medo e exploração. Embora tenha sido iniciada no aldeamento de Palmeira dos Índios, a resistência indígena ao trabalho nas obras públicas se espalha para as outras aldeias, indicando que a prática do trabalho forçado era generalizada.

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  27. Idem.
  28. Carvalho afirma que “recrutamento militar e trabalho forçado andavam juntos no Brasil oitocentista”, indicando que não era uma novidade do século XIX (2002, p. 71).
  29. Of. de Manoel Pereira Camêllo ao Presidente da Província das Alagoas, em 09/01/1840. Op. cit, p. 148.
  30. Of. do Diretor do aldeamento de Palmeira dos Índios aos Governadores da Junta de Governo da Província das Alagoas, em 20/05/1822. Arquivo Público de Alagoas, Diretoria Parcial dos Índios, Cód. M. 39. E. 11, 1820-1872. Transcrito in: ANTUNES, 1984, p. 144.

    Na medida em que aumentava a resistência indígena à exploração do seu trabalho, aumentava também a repressão e a violência aos índios desertores. José Rodrigues Leite Pitanga, o mesmo diretor que denunciava os esbulhos das terras e a pobreza nos aldeamentos, em 1854, defende o trabalho forçado e a prisão como castigo aos índios que desertarão das obras públicas:

    Os índios fugitivos que foram capturados são enviados imediatamente à Capital como castigo e em serem casados vão prestar um mez de serviço com os outros [...] já dei ordem para recrutar os solteiros, e remeter os casados prezos tanto para darem conta dos cavallos, como serem congregados ao trabalho.31

    Perseguidos, presos e forçados a trabalhar sem salário, os índios são tratados como escravos fugitivos do Estado. Apesar das prisões serem utilizadas como meio de coerção, os índios se negam a aceitar as condições de trabalho nas obras públicas da capital. Os pedidos de dispensa desse tipo de trabalho são cada vez mais constantes entre os diretores dos aldeamentos, indicando mais uma vez que a regulamentação da proletarização indígena tem afetado significativamente a organização da vida nas aldeias. O ofício enviado ao presidente da Província Cansanção do Sinimbú esclarece melhor esta questão:

    Os índios pedem ao Governo para os dispensar visto acharem-se oprimidos de cezões todos que dahi terem voltado, e dos quaes já tem falecido quatro... acho-os mais dispostos a abandonarem a aldeia do que a descerem para essa cidade. Quanto porem os Indios que devem substituir aos que voltarão elles representão-me para pedir a V. Ex.ª que haja dos dispensar dos trabalhos do canal pelo menos até o fim do inverno [...] Para obrigá-los a descer, já prendi a alguns, e nem com isto, e nem com exortações tenho adiantado couza alguma: outrosim me representão, que estão em tempo de fazer suas novas palntações, de que vivem.32

    Os pedidos de dispensa das obras públicas demonstram que os índios só podiam garantir a subsistência a partir da sua própria economia, trabalhando na lavoura das suas próprias terras. Desse modo, o inverno era fundamental para a economia dos aldeamentos, pois era o tempo de plantar e suprir as suas necessidades. Isto é o que podemos depreender dos pedidos de dispensa das obras públicas feitos pelos índios de Jacuípe e do Cocal ao Diretor Geral dos Índios, em 1854:

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  31. Of. do Diretor Geral dos Índios ao Presidente da Província das Alagoas, em 02/04/1854. Op. cit, p. 151-152.
  32. Of. do Diretor Parcial do Aldeamento de Palmeira, Manoel Pereira Camêllo, ao Presidente da Província das Alagoas, em 26/04/1840. Op. cit, p. 153.

    Representa-me os índios das Aldeias de Jacuipe e Cocal, para que durante o inverno despense os índios das mencionadas Aldeias de vierem trabalhar nas Hobras Publicas desta cidade; visto os maus caminhos, e passagem de Rio que existem daquelas Aldeias a Capital. Assim sendo se for possível diminuir o numero dos trabalhadores durante as chuvas, bom será para que elles tratem também de platarem suas rossas e legumes, suprindo então as duas aldeias.33

    Na lógica da sociedade branca, a economia indígena não existia, pois, conforme afirmamos anteriormente, o índio era incapaz de “desenvolver” a terra e o seu trabalho nos moldes da economia de mercado. Sem economia, não existia propriedade indígena; e sem propriedade, o índio só existia enquanto força de trabalho. Daí a necessidade de um discurso oficial que justificasse o fim dos aldeamentos indígenas e o desaparecimento do índio através da sua transformação em mestiços, pobres e reserva de mão de obra. O relatório do bacharel Manoel Lourenço da Silveira – a pedido do presidente da Província Antônio Alves de Souza Carvalho – é significativo para esclarecer o destino das terras indígenas e do próprio índio das Alagoas:

    Se mais sérias e bem combinadas providências, como convier adaptar- se, se formarem para aperfeiçoar-lhes o espírito e os regularizar; se não continuar a incúria a que tem sido abandonados, se obterá infalivelmente, segundo creio, o duplo resultado de se poder contar com os bons serviços dos índios aqui, e discriminadas as terras que defendem como sua propriedade, haverá sobras que, ora improdutivas, poderão ser vendidas com aproveitamento para as rendas do estado, visto como geral plantam em pequenas escalas ou, para melhor dizer, apenas os legumes que chegam malmente a sua subsistência.34

    Há uma unidade nas Falas dos Presidentes da Província das Alagoas: existem aldeias indígenas em Alagoas, mas os índios não são legítimos, estão longe da raiz primitiva. Com o processo de miscigenação e integração à sociedade nacional, justifica- se a extinção dos aldeamentos e a tomada de suas terras. Isto pode ser confirmado na fala do Presidente da Província José Antônio Saraiva, quando sentencia o desaparecimento dos índios das matas em conseqüência do “cruzamento” das raças e do aparecimento do “caboclo”, termo que passa a homogeneizar todos aqueles identificados como índios:

    Esta província não tem Índios a catequizar; conta porém as aldeias de Jacuípe, Cocal, Urucú, Limoeiro, Atalaia e Colégio com uma

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  33. Of. do Diretor Geral dos Índios ao Vice-Presidente da Província, em 24/05/1854. Op. cit, p. 154.
34Fala do Presidente da Província Antônio Alves de Souza Carvalho à Assembléia Legislativa das Alagoas, em 15/06/1862. Presidência da Província das Alagoas. Transcrito in: ALMEIDA, 1999, p. 69.

população que orça em 3.657 almas, e que já muito pouco se parece com a indígena, em conseqüência do cruzamento dessa raça com as outras que habitavam o nosso território. Na atualidade as aldeias tem apenas esse nome, e são nessa Província um asilo para todos os que se querem eximir do serviço da Guarda Nacional, e que se intitulam caboclos.35

Há um processo de esmagamento da vida indígena nas matas alagoanas, que leva o Estado a oficializar a extinção dos aldeamentos em 1872. O Relatório do Presidente da Província Silvino Elvídio Carneiro da Cunha justifica a extinção das aldeias pela existência de conflitos de terra entre índios (“mestiços”) e proprietários rurais, bem como pela preservação dos cofres públicos.3O Relatório toma o contorno de documento oficial, colocando em evidência o problema da terra, questão central para o domínio do poder local e expansão da economia do açúcar:

Em cumprimento do que me foi recomendado em aviso do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas de 27 de março de 1872, prestei as informações, que me ocorreram sobre as intituladas aldeias desta província, que só serviam de manter conflitos entre os mestiços, que se dizem índios e compunham as mesmas aldeias e os proprietários de terras, obrigando deste modo a fazenda geral a despesas freqüentes de verificações.

Procedendo as razões constantes de meu ofício de 3 de maio, por aviso de 17 de junho autorizou o mesmo ministério a tornar efetiva a extinção das referidas aldeias [...] cuja área terá de ser incorporada as áreas do domínio público.37

O desaparecimento dos índios era uma necessidade para o fortalecimento da velha sociedade senhorial. Numa sociedade fundada pelos genocídios Caeté e Quilombola, jamais poderia admitir a existência de índios e negros como sujeitos políticos da história das Alagoas. O índio era a imagem de um passado selvagem e primitivo que deveria desaparecer para dar lugar ao presente de uma sociedade branca e civilizada.

Referências


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  1. Fala do Presidente da Província José Antônio Saraiva à Assembléia Legislativa das Alagoas, em 20/02/1854. Presidência da Província das Alagoas. Transcrito in: ALMEIDA, 1999, p. 38-39.
  2. Relatório com que o Presidente Silvino Elvídio Carneiro da Cunha passou a administração da Província ao Exm. Sr. Dr. Luiz Rômulo Perez de Moreno, em 22/12/1872. Presidência da Província das Alagoas. Transcrito in: ALMEIDA, 1999, p. 78-79.
  3. Idem.

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