Edição nº 6, ano IV
Publicado em:
03 de Jul de 2013
Depois de um período de reorganização, a Revista Mosaico traz a público seu sexto número. Com essa edição, esperamos contribuir para um diálogo plural dentro das áreas de história e ciências sociais, através de artigos de profissionais e de estudantes. Com esse espírito interdisciplinar, que é a marca de nosso programa de pós-graduação, a Mosaico apresenta, nesse número, o dossiê Mundos do Trabalho, bem como os artigos e resenhas recebidas em fluxo contínuo.
O dossiê ressalta a diversidade das relações de classe constitutivas da formação da classe trabalhadora no Brasil. Na entrevista concedida por John French especialmente para este número da revista, o eminente historiador “brasilianista”, com vasta e qualificada produção acerca da história social do trabalho, ressaltou que “é difícil fazer generalizações sobre países grandes como México e Brasil”. Talvez por isso, a pluralidade que nossa revista propõe, sempre pensando a realidade a partir de mosaicos interpretativos, seja um espaço profícuo para abordagens férteis e criativas. A entrevista com French foi realizada durante sua participação no II Seminário Internacional Mundos do Trabalho, ocorrido no Cpdoc/FGV. O historiador aborda a sua formação acadêmica, o interesse pelo estudo dos movimentos operários, as diferenças no processo de formação da classe trabalhadora em países latino americanos e o fenômeno do lulismo.
No artigo Sociabilidade Operária na Primeira República, Ana
Cristina Pereira Lima interpreta a atuação do Circulo de Trabalhadores e
Operários Católicos de São José em Fortaleza. Fundado em 1915, a
organização disputou a educação da classe operária, criando um tempo
festivo e uma socialibidade que ocupava o espaço público da cidade. As
formas de lazer e ocupação do tempo livre estavam no cerne das disputas
para a educação da classe operária.
Em A trouxa de D.Izaura, Marilécia Oliveira dos
Santos analisou o cotidiano da Vila Operária da Companhia Empório
Industrial do Norte (CEIN). Longe da imagem idília de paz e harmonia
projetada pela memória oficial da vila operária criada por Tarquínio de
Souza, o cotidiano estava repleto de conflitos e tensões. Entre 1949 e
1960, Dona Izaura Meireles sofreu um processo crime, sendo acusada de
roubar uma trouxa de tecidos da fábrica. A partir da análise dos
testemunhos prestados à justiça, a autora discute as relações sociais
no espaço de moradia.
Em As dimensões das comissões de fábrica na história do sindicalismo brasileiro,
Josué Medeiros analisa as relações de classe na fábrica ASAMA Indústria
de Máquinas S/A – a indústria era localizada na zona oeste do
município de São Paulo e atuava no setor metalúrgico. O autor situa as
contribuições da exeperiência da Comissão de Fábrica da ASAMA para a
discussão historiográfica sobre o novo sindicalismo. Para tanto, faz importante revisão bibliográfica sobre o tema, apresentando o estado da arte sobre esse campo de estudo.
Leituras brasileiras sobre a Nova Ordem Internacional (1989-1991)
Editorial:
Edição nº 6, ano IV
Andrea Ribeiro
Mestre CPDOC/FGV e doutoranda IESP/UERJ
Resumo:
O objetivo desse artigo é analisar algumas das
leituras brasileiras sobre a Nova Ordem Internacional, no contexto das
mudanças sócio-políticas internas e externas que se processavam. Essa
análise foi feita a partir dos textos produzidos por três personagens da
história da política externa brasileira: Celso Lafer, Gelson Fonseca
Júnior e Rubens Ricupero. Através de seus textos pudemos identificar a
resiliência de certos temas que são caros ao pensamento social
brasileiro do século XX, como a aspiração por autonomia, o desejo de
implementação de um projeto nacional e a percepção do Brasil como país
que compartilha valores com o mundo ocidental.
Abstract:
The aim of this article is to analise the Brazilian
lectures about the New World Order, within the international and
domestic changing context. This analisis has been done through the
papers written by three Brazilian foreign politics history characters:
Celso Lafer, Gelson Fonseca Júnior e Rubens Ricupero. Throughout their
writings we could identify the resilience of such subjects as autonomy`s
aspiration, the desire to implement a national political project and
the Brazil`s self perception as a country which shares western values.
Keywords: Brazilian Social Thinking, International Relations, New World
Order
A década de 1990 foi um período marcado por grandes transformações na política internacional. O fim da Guerra Fria e o reordenamento do sistema internacional; a reestruturação da economia global; a redemocratização dos países latino-americanos e a emergência de novos atores (estatais e não estatais) e de novos temas (meio-ambiente, terrorismo, narcotráfico) nas relações internacionais são exemplos dessas mudanças. Nesse contexto transicional, as políticas externas dos países periféricos sofreram um processo de atualização de modo a dar conta dessas transformações. No Brasil, o processo de redemocratização e a realização das primeiras eleições diretas depois de 20 anos de regime militar davam o tom dos debates travados pelos atores nacionais. Com a eleição, em 1989, de Fernando Collor de Mello, do Partido da Reconstrução Nacional (que venceu o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores), foram colocadas em marcha reformas de caráter político-econômico com o objetivo de tornar o Estado eficiente e retomar o rumo do desenvolvimento econômico com o abandono do tradicional modelo desenvolvimentista. Diante de uma crise inflacionária sem precedentes[i], as metas propostas visavam garantir a transferência de tecnologias de ponta e o investimento de capital estrangeiro para a modernização industrial, a partir da institucionalização de uma política de comércio exterior e de uma política industrial voltadas para a reformulação do modelo de substituição de importações, que incluíam a privatização de empresas estatais e a renegociação da dívida externa com credores internacionais (Vieira, 2001). Além disso, o programa de governo incluía a normalização das relações internacionais do Brasil, com a adesão aos principais tratados internacionais, que envolviam os direitos humanos e a transferência de tecnologias sensíveis.
Ao longo desses 20 anos, o debate sobre a conformação da ordem internacional e o lugar do Brasil, e de outros países periféricos, se tornou uma área fértil para pesquisa (Cervo, 2001, 2005; Lima, 2005; Hurrell, 2001; Pinheiro, 2001; Spektor, 2010; dentre outros). Não apenas porque o Brasil hoje ocupa um lugar de destaque, haja vista a discussão sobre que tipo de liderança regional pode ou deve ser exercida e como; mas também, por conta das fontes primárias (depoimentos e documentos oficiais) que começam a ser disponibilizadas.
Recentemente, o historiador norueguês Odd Arne Westad (2005) propôs que a Guerra Fria, entendida como um conflito ideológico em dois projetos de modernização (um liberal e outro comunista), criou um espaço de atuação para os países do então chamado Terceiro Mundo, antes inexistente. De acordo com o autor, os países localizados fora do centro de poder do sistema internacional atuaram e, em certa medida, construíram uma agenda internacional própria, e não simplesmente determinada pela ingerência das superpotências. Ainda que Westad não estenda sua análise aos países da América do Sul, pode-se pensar que também para esses países havia um espaço de ação internacional que os permitiu desenvolver seus projetos de modernização nacionais.
Outro analista da Guerra Fria, o norte-americano John Ikenberry (2000) produziu um trabalho interessante sobre as estruturas sócio-políticas criadas durante esse período histórico marcado pela bipolaridade e a política do containment direcionada para a União Soviética e o seu projeto comunista. Para o autor, o maior produto da Guerra Fria foi a ordem liberal calcada na institucionalização das normas internacionais que nasceu com o fim da Segunda Guerra Mundial, que permitiu que o Ocidente e seus valores se espraiassem ao redor do mundo. Nesse sentido, vale destacar que a expansão dos valores ocidentais e a hegemonia norte-americana foram temas que dominaram as discussões sobre a conformação de uma nova ordem mundial de líderes políticos dos países periféricos como o Brasil.
As transformações que se deram no período abarcado por esse trabalho (1989-1991) não se restringiram aos gabinetes, elas também se evidenciaram nas ruas, nas manifestações populares por maior liberdade e melhores condições de vida ao redor do mundo, desde a Praça da Paz Celestial, na China, passando pelos países do Leste Europeu, da América Central, e os da América do Sul, até o Brasil. Aqui, por exemplo, em 1989, o debate dominante girava em torno da continuidade do processo de democratização e da primeira eleição presidencial direta, e não sobre o fim da Guerra Fria. As incertezas sobre a realização das eleições, as críticas às políticas sociais e econômicas do governo José Sarney (além das
denúncias de corrupção) e às inúmeras greves e manifestações populares
(de trabalhadores, de sem-terra, de minorias indígenas) produziram um
conturbado quadro histórico. As críticas e crises se estenderiam pelos anos 1990 e 1991, com as medidas ortodoxas tomadas pelo governo Collor para conter a inflação e diminuir os gastos públicos.
Não há ainda uma reflexão sistemática sobre esse período e sobre as
suas implicações para o Brasil no cenário internacional. De modo geral, e
por conta das características intrínsecas do desenvolvimento das
ciências sociais (inclusive a história) no Brasil, há uma resistência em
pensar o país e sua trajetória como parte de uma narrativa histórica
global. As explicações produzidas tendem a focar no caráter específico
do desenvolvimento político, cultural e social brasileiro e nos
constrangimentos externos sofridos, sem, contudo articular os
acontecimentos históricos internacionais aos nacionais. As conexões
existentes entre os problemas intrínsecos do Brasil em sua formação e
outras experiências nacionais, próximas ou distantes, serviam muito mais
como exemplo do que como componente explicativo.
A Condição Brasileira
Ao compararmos as respostas de outros países de tipo médio, como o
Brasil, ao reordenamento internacional, é possível perceber as
variedades de escolhas possíveis (desde o alinhamento irrestrito
argentino, até o isolamento cubano). Cervo (2005) argumenta que na
América Latina, a adoção de políticas neoliberais, nos anos 90, não
encontrou paralelo em qualquer lugar do mundo. O Chile, ainda nos anos
70, seria o país modelo para o continente. Mais tarde, sob o impacto do
período de crises econômicas, México, Venezuela, Argentina empreenderiam
reformas significativas para proceder à liberalização econômica. No
Brasil, Bresser Pereira (1992) chamou atenção para a resistência do
empresariado nacional às reformas e ao caráter restrito de aplicação dos
projetos de privatização de empresas e de abertura comercial. Se
durante os anos da Guerra Fria, o Brasil pôde se industrializar e
urbanizar através de um modelo de desenvolvimento ancorado no Estado, os
anos 90 representariam um empecilho à manutenção desse modelo. A
reflexão sobre a centralidade do Estado nos projetos de desenvolvimento,
e a transmutação desse papel do “Estado-propulsor” para o de
“Estado-obstáculo” como entrave ao crescimento econômico, e os
questionamentos sobre a necessidade de um Estado “menor” produziram
efeitos sobre o modo como pensar onde o país “deveria estar” no mundo. O
que sugere que a atual posição brasileira no sistema internacional, seu
maior ativismo nos foros multilaterais e sua aproximação com a América
do Sul não são dados naturais, determinados a priori, mas sim
frutos de opções feitas pelas elites dirigentes baseadas em formas de
pensar e entender o Brasil e o mundo que tem suas raízes no pensamento
social (político e econômico) desenvolvido ao longo da segunda metade do
século XX.
Desde os anos 60, com o programa de Política Externa Independentedo
governo Jânio Quadros, o Brasil ensaiava seus passos autônomos no
terreno internacional. Durante o regime militar, a política externa do
governo Geisel (1974-1979), que ficou conhecida como “pragmatismo
responsável” (Lima, 1994), tinha por objetivo promover o desenvolvimento
do país através do incremento de suas relações econômicas exteriores de
forma não-ideológica, considerando como dada a “opção pelo sistema
democrático ocidental” (Vizentini, 1995). Estabeleceu-se um contraponto
em relação às políticas externas dos governos militares anteriores
comumente identificadas pela literatura como de “alinhamento automático”
aos interesses norte-americanos. Segundo Spektor (2010), o
relacionamento desigual entre os dois países, onde era evidente a
disparidade de poder, permitiu ao Brasil empreender uma associação em
que era possível “manipular o poder da grande potência em favor próprio”
(2010:185). Além disso, ainda de acordo com Spektor, o período foi
marcado por mudanças sobre o modo de pensar as relações internacionais
do Brasil com outros países, que incluía “um poderoso argumento” que
passou a ser aceito tanto pelo Brasil como pelos Estados Unidos: o de
que o Brasil poderia ser um dos pilares de sustentação da ordem global
(2010:186). Com o declínio da détente e a desestabilização do
governo de Richard Nixon (1969-1974), a fase da “relação especial” com
os Estados Unidos daria lugar a uma série de conflitos bilaterais nos
anos 80.
No último governo militar, o do general João Batista Figueiredo
(1979-1985), temas que haviam sido evitados durante a existência do
regime - como meio-ambiente, energia nuclear e direitos humanos - em
virtude das resistênciasultranacionalistas dos militares, entraram na
pauta de discussões políticas. Fenômeno que Seixas Correa (2006) chama
de processo de "inversão do ônus da acusação" contra os países do Sul.
Ele argumenta que, de vítima das ações dominadoras dos países
industrializados em direção ao controle dos mercados periféricos, os
países em desenvolvimento passaram a vilões, sendo responsáveis pelos
males da humanidade: eram poluidores, não tinham uma política de
desarmamento clara, não respeitavam os direitos humanos. Como resultado
da inserção desses novos temas na agenda internacional - narcotráfico,
degradação ambiental, direitos humanos, imigração ilegal, conflitos
regionais e democratização - os países em desenvolvimento perderiam a
capacidade de influenciar essa agenda, antes pautada pelas teses da
UNCTAD e por temas como o desenvolvimento econômico e a nova ordem
econômica internacional. Dada a marginalização do Terceiro Mundo, diante
do “arco conceitual” do “reaganismo e do thatcherismo” (idem), o Brasil
se encontrava isolado quando o primeiro governo civil chegou ao poder
em meados dos anos 80.
Diante dessa situação de isolamento, a preocupação da agenda de
política externa brasileira no final dos anos 80 e começo dos 90 girava
em torno da possibilidade de manter o equilíbrio entre os imperativos do
desenvolvimento econômico e social brasileiro e continuar atuando de
forma contundente no cenário internacional. Se num primeiro momento o
Brasil tinha se vinculado claramente ao grupo de países que reivindicava
a mudança dos termos de funcionamento do sistema internacional, através
da participação no Grupo dos 77, com o fim do período em que Estados
Unidos e União Soviética representavam os modos de modernidade
possíveis, o Brasil parecia não ter contra quem lutar ou por que brigar.
As linhas mestras da política externa de Sarney incluíam a criação
(sic) de uma nova ordem econômica internacional, com destaque para a
solução da dívida externa; a crescente prioridade à América Latina, a
atenção especial à situação no Oriente Médio (Guerra Irã-Iraque); a
intensificação das relações com a África, “a par do nosso repúdio ao
sistema do apartheid”; o desenvolvimento do potencial das relações com a
Ásia; o aperfeiçoamento da cooperação com os países de economia
planificada; o desarmamento mundial; e o fortalecimento da ONU, OEA e
demais organizações internacionais. Apesar de suas diretrizes bastante
genéricas, pode-se perceber que o quadro no qual essa política se insere
ainda estava relativamente determinado pela necessidade interna de se
estabelecer o regime democrático e garantir a normalização das relações
do país com o exterior. Foram dados passos importantes em direção ao
desarmamento e à integração regional, com o aprofundamento das
negociações com a vizinha Argentina para a cooperação na área de
controle de produção de energia nuclearque deram margem à criação do
Mercosul, já nos anos 90; em direção ao compromisso com o
desenvolvimento sustentável, através do oferecimento do presidente
Sarney para sediar a Conferência do Meio Ambiente da ONU; e em direção
aos direitos humanos, com a promulgação da Constituição de 88 e a
mudança de postura relativa aos problemas enfrentados pelas minorias,
como violência contra mulher e índios, etc (Sodré,1995). O evento mais
simbólico da política externa da Nova República foi, sem dúvida, o
reatamento das relações diplomáticas com Cuba, em junho de 1986,
rompidas desde 1964, pelo governo militar do marechal Castelo Branco.
Na visão do chanceler Abreu Sodré (1995), o mundo que se descortinava
para o Brasil no final dos anos 80 era multipolar, com a criação de
“espaços comuns” europeus, asiático, norte-americano e latino-americano.
A ordem dos fatores parece refletir aqui a importância relativaque o
chanceler prestava a cada um desses "espaços comuns". Nesse contexto de
multipolaridade, o multilateralismo estaria em crise por conta da “falta
de vontade política dos grandes atores internacionais” (1995:288).
Também em Abreu Sodré identificamos um traço peculiar, mas não
exclusivo, de associação dos conflitos à miséria, fazendo inclusive uma
leitura similar à indiana sobre a necessidade do desenvolvimento para a
paz. Um discurso de modernidade alternativo, que conciliava o
capitalismo e a falta de desenvolvimento, e superava os aspectos mais
radicais da teoria da dependência, fazendo coincidir o desejo de
industrializar-se com o desejo de justiça social, com um mundo mais
justo. O tom de resistência de seu discurso (provavelmente feito com
colaboração de assessores) pode ser entendido através da análise da
erosão da relação Brasil-Estados Unidos, que tinha como fundo não apenas
os problemas “brasileiros”, mas principalmente o reposicionamento da
política externa norte-americana para o mundo e para a América Latina
mais especificamente. A política intervencionista do governo Reagan, em
termos econômicos e políticos - como no caso da ilha de Granada, da
Nicarágua e de Honduras – somada à linguagem apocalíptica do presidente,
compôs o quadro de recrudescimento da Guerra Fria e de endurecimento em
relação à América Latina.
Em uma reformulação da noção de ocidentalidade do Brasil, Jaguaribe
(1985) diria que não seria preciso que o Brasil fizesse algum tipo de
esforço para tornar-se ocidental, porque seu passado já havia lhe legado
essa condição. Por outro lado, a superação do atraso, reformulado em
termos de ascensão ao Primeiro Mundo, exigiria sim um esforço conjunto:
do Brasil com a comunidade internacional. O investimento internacional
no Brasil tinha enormes chances de retorno (em energia, alimentos e
produtos secundários), mas não interessava aos Estados Unidos. A não
complementaridade das economias norte-americana e brasileira faria com
que o multilateralismo se tornasse condição sine qua non para a atuação internacional do Brasil democrático (Jaguaribe, 1985).
A política externa do governo Collor também tinha um discurso de
resistência às imposições dos países industrializados, mas estava
repleta de exemplos de aproximação do Brasil com o Primeiro Mundo
(viagens presidenciais aos Estados Unidos, ao Japão, e à Europa), que
sinalizavam para o abandono da retórica terceiro-mundista e de confronto
com o sistema internacional. Nesse processo de construção da
democracia, a interpretação da diplomacia brasileira sobre o ambiente
externo e a visão externa sobre o país condicionaram o seu
posicionamento internacional e a definição de sua política externa. Mas,
mesmo antes da assunção de Fernando Henrique Cardoso ao poder, o
projeto de inserção internacional do Brasil estava se desenhando. Lima
(1994) alega que razões ideológicas e pragmáticas explicam o retorno ao
padrão da "aliança estratégica" com os Estados Unidos durante o governo
Collor. Esse fenômeno tinha como motivação a possibilidade de ocorrência
daquilo que Adam Przeworski (1993) chamou de "modernização via
internacionalização”, e a necessidade de remover os pontos de fricção
com os Estados Unidos a fim de restabelecer a reputação brasileira
frente às agências econômicas internacionais e sensibilizar os países
credores no que se refere à negociação da dívida externa. Mesmo
considerando que o projeto liberal tenha surgido como alternativa ao
fracassado modelo de desenvolvimento voltado para dentro (especialmente
nos países do Sul capitalista e do Leste europeu), no caso do Brasil, a
adoção do projeto de reforma do Estado adquiriu características
singulares, porque se chocava com os valores hegemônicos antes vigentes
entre as elites brasileiras (especialmente os militares), como a
soberania nacional, a autonomia e a industrialização como projetos
nacionais (Lima, 1994).
Mas então, qual foi a influência ou em que medida esteve presente a
preocupação com o projeto nacional nas percepções dos formuladores de
política externa brasileira? Segundo Maia (2009) o projeto nacional pode
ser entendido como conceito nativo empregado pelas elites intelectuais
brasileiras que buscam formar ou modelar a identidade do país e o senso
de destino no mundo afora. Ele identifica repertórios e linguagens
distintos na modelagem do projeto nacional que contemplavam a ideia de
periferia, o papel do Estado como instrumento do desenvolvimento e
conteúdos culturais da identidade brasileira. Esses repertórios
continuaram em operação mesmo depois que as condições externas haviam se
alterado. A ideia de projeto nacional está freqüentemente associada ao
chamado desenvolvimentismo nacional, programa político-econômico que se
desenvolveu no Brasil a partir dos anos 50 e que tem ligações com as
teorias formuladas pela CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e
Caribe da ONU). Nesse sentido, a resiliência do discurso do projeto
nacional, diante da dissolução das condições materiais que deram lugar
ao desenvolvimentismo chama atenção.
A tríade da normalização:
Selecionamos três personagens para a análise das questões propostas
para este trabalho: Gelson Fonseca Júnior, Celso Lafer e Rubens
Ricupero. A escolha dos personagens não dá conta de todas as
dissidências internas ao Itamaraty, mas reflete uma das possíveis
vertentes de atuação em política externa desenvolvidas[ii].
Gelson Fonseca foi assessor do secretário-geral Paulo Tarso de Flecha
e Lima durante o governo Sarney. À convite do embaixador Marcos
Coimbra, cunhado do presidente Collor, atuou como assessor especial da
presidência. Foi o responsável pelos discursos e pela agenda
presidenciais. Com o impeachment de Collor, Fonseca deixou o
cargo e mais tarde foi convidado (por Fernando Henrique Cardoso) a
presidir a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), ligada ao Ministério
das Relações Exteriores (MRE). Como presidente desta instituição,
organizou uma série de seminários para discutir temas de política
internacional, como aqueles que resultaram na publicação da coleção
Temas de Política Externa. É interessante perceber que Fonseca não se
coloca como um formulador político, mas como mero executor: "eu não estava ali formulando política externa, fazendo propostas políticas".
Embora ele se coloque como figura secundária no processo de formulação
da política externa brasileira, sua permanência e crescente importância
ao longo do período em análise o qualifica para compor a tríade de
"agentes da normalização", considerando que esse grupo assumiu um papel
fundamental na afinação do discurso do Itamaraty e do governo Fernando
Henrique.
Celso Lafer entrou no MRE em 1992, no contexto de uma reforma
ministerial promovida pelo presidente Collor. A reforma havia sido
desencadeada pela necessidade de "ampliar a base parlamentar" do governo
em meio a uma crise institucional. Dessa reforma o PSDB, partido ao
qual Lafer era filiado, se recusava a participar. Seu nome foi indicado
pelo então ministro da Fazenda, Economia e Planejamento, Marcílio
Marques Moreira, amigo íntimo de Lafer, "porque ele [Moreira] sentia
que o entrosamento entre economia e relações exteriores era fundamental
para o projeto de modernização que tinha em mente e para a visão que o
presidente tinha sobre a inserção internacional do Brasil" (Lafer,
1993:271). O convite só foi aceito depois de uma longa conversa com o
presidente, articulada por Moreira, ao final da qual ele sairia com a
impressão de que "teria a oportunidade de servir ao país iniciando algo novo e criativo"
(Lafer,1993:273). Na visão de Lafer, o Itamaraty estava consciente
sobre a mudança que havia ocorrido no mundo, mas esse diálogo não tinha
um foco nítido. Parte dessa falta de foco se devia a uma questão
administrativa: a reforma estrutural no Itamaraty, com a divisão da
Secretaria-Geral, enfraqueceu o ministério. De modo que Lafer, ao
assumir, reunificou a Secretaria-Geral e nomeou Luiz Felipe Seixas
Correa para ocupá-la. Como primeira missão, o ministro teve que
organizar a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (Conferência do Rio). Durante sua gestão, Lafer também
comandou as negociações em torno do Acordo Quadro de Cooperação entre o
Brasil e a Comunidade Econômica Europeia (CEE), nos campos comercial,
científico-tecnológico e social. Ainda presidiu a delegação brasileira
enviada à 47ª Assembleia Geral da ONU às vésperas de sua saída do
ministério, no final de setembro de 1992. Na ocasião, defendeu a
reformulação do Conselho de Segurança com a inclusão de outros países,
como o Brasil e a Argentina, que disputavam esta posição, e a
continuidade dos esforços para o desarmamento nuclear. Participou também
da 22ª Sessão da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos
(OEA), onde o Brasil assinou o documento de adesão à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, o chamado Pacto de São José. Em
outubro de 1992, com a saída de Collor, Lafer seria substituído por
Fernando Henrique Cardoso no MRE. Em 1995, Lafer seria nomeado
embaixador-chefe da missão permanente do Brasil em Genebra.
Rubens Ricupero, embaixador de carreira, foi subchefe da Casa Civil do presidente Sarney, até ser nomeado assessor especial "na vaga criada pela indicação de Célio Borja para o Supremo Tribunal Federal"
(Ricupero, 2011). Depois de 1987, passou a atuar como representante
brasileiro no GATT e chegou a presidir o Grupo Informal de Países em
Desenvolvimento e o Comitê de Comércio e Desenvolvimento. Nesta função
apresentou suas críticas aos subsídios e às práticas comerciais ilegais
empreendidas pelos países industrializados, notadamente os EUA e a CEE.
Em 1991, foi nomeado embaixador em Washington, substituindo Marques
Moreira que, por sua vez, seria chamado para ocupar o cargo de ministro
da Economia, Fazenda e Planejamento de Collor. O nome de Ricupero também
foi sugerido por Moreira ao presidente Collor, que por sua vez o
sugeriu ao então ministro das Relações Exteriores, Francisco Rezek
(Moreira, 2001:261). No período que passou em Washington, foi chefe da
delegação do Brasil ante a Comissão de Direitos Humanos das Nações
Unidas e da delegação do Brasil na Conferência sobre Desarmamento, além
de ter atuado como representante governamental brasileiro frente ao
Banco Mundial, ao FMI e ao Banco Africano de Desenvolvimento. Como
embaixador, colaborou com a organização da Conferência do Rio,
presidindo o Comitê de Finanças. No governo Itamar, em meados de 1993,
seria nomeado ministro extraordinário para Articulação de Ações na
Amazônia Legal. Com a fusão desse ministério, Ricupero passaria a ser o
ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal. Sua gestão duraria apenas
alguns meses. Logo ele assumiria o Ministério da Fazenda, então ocupado
por Fernando Henrique Cardoso, que saíra para candidatar-se à
presidência da república, em abril de 1994. Nesse cargo teve um papel de
destaque como responsável pelo lançamento do Plano Real. Com a eleição
de Fernando Henrique deixou o ministério da Fazenda para se tornar
embaixador do Brasil na Itália, em 1995.
O primeiro aspecto relevante que gostaríamos de ressaltar são as
ideias formuladas por nossos atores para entender o mundo que surgiu com
o fim do conflito bipolar. Ricupero, no seu texto Os Estados Unidos da América e o Reordenamento do Sistema Internacional (1996[iii]),
faz uma crítica tanto a tese de Fukuyama quanto a de Huntington. A
interpretação de Fukuyama sobre o fim da História é considerada ingênua,
ainda que não se descarte a tendência homogeneizante mundial,
pressionada pela globalização econômica. Ricupero também não concorda
com a explicação de Huntington, porque acredita que “teria havido
algum exagero em identificar no nacionalismo o candidato mais plausível a
sucedâneo da disputa ideológica da Guerra Fria” (p.103). Como o
autor entende que a falência econômica do bloco do Leste foi a principal
causa do fim da Guerra Fria (o fracasso do modelo de economia
planificada dos países comunistas, que teria sido incapaz de suportar a
competição com a dinâmica economia capitalista do bloco ocidental), o
grande desafio do momento Pós-Guerra Fria seria encontrar o equilíbrio
econômico que permitisse o desenvolvimento de "todos os povos do
planeta", afim de evitar o "retorno à barbárie e a falta de civilidade"
provocados pela pobreza. Nesse sentido, a persistência dos fenômenos do
desemprego e do afluxo de migrantes aos grandes polos econômicos
adicionados às práticas políticas protecionistas responsáveis pela
reprodução do subdesenvolvimento seriam ameaças graves ao sistema
capitalista como um todo. O caminho proposto por Ricupero seria o
desenvolvimento econômico conforme os postulados do liberalismo
econômico. Daí sua insistência na inflação como mecanismo corrosivo e
antidemocrático.
Nesse texto, Ricupero também apresenta sua explicação para a ordem
internacional do Pós-Guerra Fria, que seria caracterizada pela
homogeneidade em termos políticos (normas internacionais e princípios
democráticos), pela tendência à homogeneização em termos econômicos, e
pela heterogeneidade estratégico-militar que tinha como resultado a
unipolaridade dos Estados Unidos. Esse era um mundo marcado pelo
fenômeno da globalização. Nesse caso, o fenômeno da globalização,
caracterizado pelo crescente estímulo ao intercâmbio de grandes
empresas, cada vez mais centrais e mais influentes no comércio mundial
(especialmente as dos setores manufatureiros), traria consigo um forte
impulso para uniformizar normas e padrões internacionais e para a
concentração dos investimentos estrangeiros diretos em torno dos Estados
Unidos, da União Europeia e do Japão, os três grandes polos de
irradiação em que: “O padrão de acumulação reflete com nitidez o
domínio de cada um desses centros dinâmicos sobre a área de influência
geográfica situada em sua periferia” (Ricupero, 1996:90). No caso
do continente americano, sob a influência majoritária dos Estados
Unidos, o Brasil seria exceção, pois a soma das inversões europeias
seria maior do que a das inversões norte-americanas. Essa afluência dos
investimentos diretos aos grandes pólos do poder econômico, por sua vez,
atrairiam os financiamentos, as correntes de comércio e a transferência
de tecnologia, e produziriam o fenômeno da concentração econômica,
fazendo com que os países ricos se tornassem cada vez mais ricos. Nesse
sentido, a globalização é entendida como um fenômeno negativo, que
ameaçaria os países em desenvolvimento em geral, e mais especificamente,
o Brasil. A ordem mundial que emergiria desse movimento de
intensificação dos fluxos econômicos comerciais e financeiros
(multifacetada e pluralista), estaria em contraste com o predomínio dos
Estados Unidos na área estratégico-militar:
Articulando-se as peças desse mosaico, o
desenho que emerge é o de um sistema internacional complexo, de certo
dualismo, com tendência maior para o multi do que para o unipolarismo.
Trata-se, no entanto, de modalidade sui-generis do multipolarismo,
devido, em primeiro lugar, à presença de um líder […] Desta vez, em
parte por sobrevivência de uma das alianças do regime anterior e, mais
ainda, por serem os EUA detentores do poder estratégico hegemônico e
assim mais iguais do que os outros, o sistema tende ao multipolarismo
mas obedece, mais ou menos claramente, à liderança americana (Ricupero,
1995:96)
Os Estados Unidos teriam uma “vantagem inigualável” por poderem atuar
em todos os cenários, o que lhes conferiria “superioridade” e lhes
permitiria exercer a função de “catalisadores das coligações de
geometria e composição variáveis”, porque poderiam atuar como
administradores de crise em contextos diversos (idem). A capacidade
hegemônica norte-americana não era absoluta, como os fracassos das
intervenções militares norte-americanas na Somália, na Bósnia e no
Haiti, nos anos 90, “Mas, sem eles ou contra eles, os outros podem muito pouco” (Ricupero, 1995).
Ricupero ressalta ainda uma terceira característica da nova ordem: além da manutenção de uma antiga aliança [ocidental], do equilíbrio complexo [vários cenários em que não há um único líder hegemônico], há também o recurso frequente ao multilateralismo para
legitimar as ações norte-americanas. O multilateralismo é percebido
como uma característica em expansão da nova ordem, ele é também alvo de
críticas. Ao mesmo tempo em que a incorporação de novos atores aos
organismos multilaterais apontava para a maior democratização do sistema
internacional, percebia-se uma tendência por parte das grandes
potências em utilizar tais organismos como meios para legitimar suas
propostas de gerenciamento das relações internacionais. Segundo essa
lógica, a incorporação de novos atores não representaria necessariamente
a “abertura do sistema internacional” e a promoção dos valores
ocidentais em todo o planeta, mas o aprofundamento das diferenças
econômicas e políticas (e culturais) tendo como resultado o aumento da
distância entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Enquanto representante brasileiro no GATT, Ricupero foi crítico à
atuação norte-americana em relação à América Latina e considerou um
exagero “falar-se em novo ordenamento quando o que se pretende não é
substituir totalmente um sistema, como se fez em 1944-45, mas apenas
adaptar aos novos tempos as instituições do período anterior [ONU,
FMI, Banco Mundial]” (1996:101). Sua visão reúne elementos díspares ao
diagnóstico sobre a nova ordem: ao mesmo tempo em que, no plano
discursivo interno, há uma tentativa em de se diferenciar de uma linha
de reflexão atrelada ao pensamento político brasileiro mais nacionalista
(tanto nas agências governamentais como nas corporações industriais
nacionais), produz-se também uma revalorização da identidade nacional e
do papel do Estado, assim como se mantém a crítica à ingerência
norte-americana no mundo. Nessa crítica, a possibilidade de ingerência
seria responsável por uma desconfiança quanto à eficácia e a efetividade da ordem nascente.
Enquanto em Ricupero as explicações têm um fundamento
econômico-estrutural, em que a competição econômica teria sido
responsável pelo fim do comunismo e as negociações comerciais seriam o
meio mais eficiente de promover a justiça social; em Lafer e Fonseca
verificamos uma ênfase nos fatores ideais de promoção da paz e de
valorização das identidades em congruência com uma linha de pensamento
idealista das relações internacionais, como a escola inglesa, em que o
desenvolvimento de organizações internacionais compartilhadas é
essencial para garantir a crescente estabilidade da ordem internacional.
No artigo Questões para a Diplomacia no Contexto Internacional das Polaridades Indefinidas
(1994), os autores apresentam suas observações sobre a ordem
internacional do Pós-Guerra Fria a partir da construção de um mundo que
se encontra em uma “situação de transição”. Por esta razão, o Brasil
como país médio, ou país-baleia (Lafer, 1992), precisaria adaptar-se
“criativamente”, atualizando o seu modo de fazer política externa. Nesse
contexto, os postulados teóricos vigentes (realismo e racionalismo) -
que dominaram a produção de conhecimento na área de relações
internacionais - não seriam suficientes para entendermos as mudanças em
curso.
Uma das características principais da
Guerra Fria era a de que os diversos campos tinham uma dinâmica clara,
comandada por um processo global de rivalidade, em que as polaridades
estavam definidas. (…) É certo que um mundo de polaridades definidas é
mais previsível, o que, em certas circunstâncias, representa um
componente favorável às escolhas estratégicas de longo prazo. Por isso, é
também um mundo mais perigoso em termos globais (os riscos da falha de
dissuasão e a tendência à globalização dos conflitos regionais) e, por
isso mesmo, as pressões para o alinhamento diplomático são constantes.
(Lafer e Fonseca, 1994:51).
Em um mundo repleto de incertezas, o Estado deve agir rápido, e de
forma certeira para “ganhar” o jogo das disputas de poder
internacionais, e deve “construir” com rapidez e sensibilidade suas
estratégias de inserção. Há aí uma demanda pela produção de um projeto
nacional via reformulação da política externa cujo objetivo era garantir
a modernização e o desenvolvimento econômico.
Os autores fazem uma distinção clara entre o mundo da Guerra Fria,
cuja compreensão da ordem esteve fundada sobre a bipolaridade, com foco
sobre o sistema internacional, sobre a dissuasão nuclear, sobre o
equilíbrio do terror, sobre a hierarquia e a sujeição dos países à
relação entre as superpotências (1994:51-52), e o mundo do Pós-Guerra
Fria, em que a ordem deveria ser entendida através da observação de suas
“forças básicas” (uma adaptação do termo “forças profundas" de Pierre
Renouvin): as forças centrípetas, que cumprem uma função agregadora e
são impulsionadas pela dinâmica da globalização; e, por outro lado, as
forças centrífugas, desagregadoras, com impulso fragmentador, que
guardam relação com as identidades nacionais.
As forças econômicas centrípetas, antes vistas como uma consequência
descontrolada (positiva para uns, negativa para outros) do mercado,
passariam a constituir agora a infraestrutura de um mundo de paz e
desenvolvimento (1994:56). Para melhor entender a dinâmica dessas forças
que configurariam o sistema internacional como intrinsecamente
contraditório, Lafer e Fonseca defendem que o Pós-Guerra Fria compôs-se
de dois ciclos distintos. O primeiro ciclo seria marcado pelo otimismo
na criação de um consenso em torno dos valores liberais da democracia e
do livre-comércio, pela crença na vitória do liberalismo e em suas
instituições. A Queda do Muro de Berlim (1989) e a Guerra do Golfo
(1990) seriam os grandes marcos do período. O tema da Nova Ordem
Internacional teria passado a fazer parte da agenda internacional não
mais como uma reivindicação dos países pobres, mas como um acordo de
comunidades irmãs. É à derrota de Saddam Hussein, em 1991, que os
autores atribuem o crescimento do otimismo na ação do Conselho de
Segurança da ONU, que por sua vez teria superado os impasses produzidos
pelo poder de veto das cinco potências do período da Guerra Fria. Nesse
contexto, o sistema internacional parecia estar se transformando em uma
autêntica comunidade internacional composta por países ou sociedades que
compartilham valores e produtos sem fronteiras ou preconceitos. Nesse
quadro, “a própria noção de soberania teria de ser refeita, já que passaria a estar balizada por necessidades da comunidade internacional” (1994:57).
No primeiro Pós-Guerra Fria “dois modelos de hegemonia” poderiam ser
vislumbrados. No primeiro modelo, os Estados Unidos emergiam como único
líder, caracterizando o sistema como unipolar. No segundo, os Estados
Unidos conservava-se como líder, mas seus movimentos seriam acompanhados
por outros países desenvolvidos; seria o modelo chamado de coalizão
legítima ou, em uma vertente mais otimista, o modelo da democracia em
expansão. A expectativa gerada por esse otimismo liberal parecia também
indicar que o grau de conflito entre formas de legitimidade seria baixo
(diferentes visões de mundo não implicariam em conflitos militares) e
que a disjunção entre poder e ordem (distância entre o desejo do que tem
o poder de maximizá-lo e a possibilidade de manter a ordem estável)
estaria resolvida. Aquele que possui poder e o que possui legitimidade
coincidiria, seria a encarnação do desejo de todos os atores
internacionais.
Como o modelo utilizado proposto pelos autores indica, as forças
centrípetas combinam impulsos econômicos e valores políticos, e
consequentemente, produz a necessidade de reforço das instituições
internacionais. Dessa forma, a conclusão de que uma ONU reformada e
pluralista poderia garantir a segurança coletiva parece lógica. Por essa
razão, o enfraquecimento do Estado diante dos processos transnacionais,
forçaria a acomodação das soluções nacionais em termos cada vez mais
próximos dos comandos universais (1994:59). O desmantelamento da União
Soviética e a decomposição da Iugoslávia, em 1991, marcariam o início do
segundo ciclo do Pós-Guerra Fria. Esse ciclo seria definido pela
emergência de nacionalismos e disputas étnicas (como a Guerra dos
Bálcãs) e pela implantação de práticas capitalistas promotoras de
conflito em ambientes incipientes onde antes vigorava a economia
planificada. As forças centrífugas e desagregadoras dominariam e
reverteriam “o otimismo iluminista de 1989” (1994:60), de modo a colocar
em xeque a legitimidade das organizações internacionais na resolução de
conflitos.
Nesse debate, é curioso notar que, para Lafer e Fonseca, a
globalização e as forças centrípetas não necessariamente coincidem; ao
contrário, consistiriam coisas diferentes, guiadas por interesses e
valores distintos (1994:63). Dessa forma, a dedução aparentemente lógica
que associa o maior fluxo econômico à geração de maior estabilidade
sistêmica não é corroborada pelos autores, que advogam a necessidade de
uma “globalização qualificada” que leve em conta a heterogeneidade de
valores compartilhados entre os diversos atores internacionais. Se
coexistirem percepções distintas sobre a globalização e mesmo sobre os
modelos de produção capitalistas no interior do bloco ocidental em
função da falência das práticas neoliberais, novas formas de
legitimidade deveriam ser buscadas via diálogo. Essa revisão conceitual
se estende para a discussão acerca da obsolescência do Estado. Se, no
primeiro ciclo Pós-Guerra Fria, o Estado era entendido como um obstáculo
ao desenvolvimento, depois de 1991, os questionamentos passam a girar
em torno da maneira como o Estado poderia lidar com as forças da
globalização.
Há muitos pontos em comum entre os modelos de Ricupero, de um lado, e
Lafer e Fonseca, de outro. Ambos destacam a dificuldade em definir o
sistema e sua inerente contradição: a harmonia mundial em torno dos
valores ocidentais é contrastada pelo desequilíbrio na distribuição dos
recursos econômicos no plano internacional; a posição de liderança dos
Estados Unidos é questionada dadas condições de governabilidade do
sistema "de um líder"; e o Brasil, como país semi-industrializado, é
visto como capaz de realizar seu "projeto nacional" autônomo e colaborar
positivamente para a estabilidade da ordem nascente.
O lugar do Brasil na NOI
A identificação desse mundo que está “em transição” entre o novo e o
velho modelo de modernização, colocava novas questões para os diplomatas
brasileiros: como conviver com uma potência cujos recursos de poder são
tão grandes em um mesmo continente? Quais seriam os benefícios ou
malefícios dessa convivência? Lafer (1993), em entrevista concedida ao
CPDOC, coloca o problema:
a política externa brasileira (...)
havia sido pensada tendo em vista a relação Leste-Oeste e a relação
Norte-Sul, esta articulada nas brechas da primeira. O fim da relação
Leste-Oeste significou grosso modo que, do ponto de vista político, o
movimento dos não-alinhados, no qual sempre mantivemos uma atitude de
observadores reticentes, perdeu seu objetivo, e do ponto de vista
econômico, o Grupo dos 77, onde nossa ação sempre foi muito importante,
viveu uma redução de seus recursos de poder (1993:6).
A substituição de um regime autoritário por outro democrático não
significou a imediata substituição de um regime econômico fechado e
protegido por um sistema aberto de livre-comércio estrito senso. O
grande dilema brasileiro, no entanto, permanecia sendo a modernização
econômica. Contudo, o caminho da modernidade exigia investimentos em
qualificação de mão de obra, desenvolvimento de tecnologia e abertura
comercial. O diagnóstico comum ao grupo estudado era claro: o mundo
tinha mudado, a estrutura econômica tinha se alterado, e o modelo de
desenvolvimento adotado pelo país, com industrialização via substituição
de importações em regime protecionista já não respondia às exigências
de um mercado global competitivo. Essas exigências forçariam a
transformação do perfil de produção das economias periféricas,
especializadas na produção de bens primários, com emprego de mão de obra
barata e não qualificada. A tendência decrescente do preço desses
produtos levaria essas economias a um impasse. A modernização era
urgente.
A partir de suas análises sobre a configuração da ordem
internacional, nossos personagens também produziram indicações de ação
para a inserção do Brasil no mundo.
Em seu texto O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 anos de uma relação triangular publicado
em 1995, Ricupero analisa as relações internacionais do Brasil com seu
entorno continental. Em sua opinião, não se pode abstrair o papel
“muitas vezes determinante” que os Estados Unidos representou nas
relações com a América Latina. De modo que, para se entender o papel da
América Latina na política externa brasileira, deve-se pensar em termos
de uma relação triangular caracterizada simultaneamente caracterizada
por assimetria (quando diz respeito às relações bilaterais do Brasil e
dos países latino-americanos com os EUA) e por simetria (o
relacionamento do Brasil com a América Latina).
A aliança do Brasil com os Estados Unidos teria sido marcada por um
cálculo estratégico baseado tanto na existência de uma “convergência
ideológica” no campo dos valores e das aspirações, como no
reconhecimento de um diferencial de poder entre os dois países. Essa
relação teria determinado a subordinação da América Latina às relações
preferenciais com o maior parceiro comercial do Brasil. Essa aliança
teria deixado de ser “não escrita”[iv]
para formalizar-se com o alinhamento brasileiro aos Aliados na Segunda
Guerra Mundial em 1942 e finalmente com a assinatura do Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) de 1947, que estabeleceu
os marcos da cooperação militar intracontinental. Com a Guerra Fria e o
acirramento dos conflitos ideológicos expressos pela crescente
bipolarização do sistema internacional, assim como a escassez de
recursos norte-americanos destinados aos países latino-americanos, vai
se desenvolvendo o que Ricupero chama de “diálogo de surdos”. Esse
diálogo é caracterizado pela distância entre os clamores
norte-americanos por engajamento latino-americano nos temas de
segurança, e as percepções desses países sobre o vínculo existente entre
o subdesenvolvimento e a instabilidade política. De um lado, a defesa
intransigente do livre-comércio e da necessidade de investimentos
privados nacionais e estrangeiros com intervenção mínima do Estado; de
outro, a defesa de um modelo alternativo de desenvolvimento ancorado
pelo processo de industrialização via substituição de importações, em
que o Estado teria um papel fundamental, cuja expressão ideológica seria
a teoria do desenvolvimento formulada pela CEPAL.
Ainda segundo Ricupero (1995), no Brasil, o fortalecimento dos grupos
nacionais e de uma vertente de pensamento nacionalista com fundamentos
econômicos funcionaria como motor da desintegração do “consenso
ideológico anticomunista da Guerra Fria” nos anos 50 e 60, o qual nos
aproximava dos Estados Unidos (p.335).
As tensões entre Brasil e os Estados Unidos ficariam evidentes
durante o governo Carter (1977-1981). Como reação às pressões
norte-americanas por maior liberdade política e pelo abandono do projeto
nuclear brasileiro, o governo Geisel denunciou o tratado militar
Brasil-Estados Unidos em 1977. Esse período de divergência nas relações
Brasil-Estados Unidos teria correspondido, segundo Ricupero (1995), a um
movimento de aproximação com os governos latino-americanos no governo
do general Figueiredo, momento marcado pela gestão do chanceler Saraiva
Guerreiro durante a qual se firmou o acordo tripartite entre a
Argentina, o Brasil e o Paraguai que encerrou a questão das águas
compartilhadas na região de Salto de Sete Quedas (RS), e adotou-se a
posição de “neutralidade relativa” diante do conflito das Malvinas,
entre a Argentina e o Reino Unido, em 1982.
Contudo, afirma Ricupero, a “latinoamericanização” da política
externa brasileira só poderia se completar depois da segunda crise do
petróleo (1979), que deu impulso ao processo de reorganização econômica
mundial e produziu uma longa década de estagnação econômica na América
Latina - a “década perdida”. Além disso, a instabilidade
latino-americana, caracterizada pelo recrudescimento da crise política
centro-americana e a reação intervencionista dos Estados Unidos (Panamá e
Guatemala), permitiram uma convergência única dos interesses de países
como o México, a Venezuela, a Colômbia, e o Brasil, em torno da
concretização do processo de redemocratização da região. É nesse
contexto que se destacam a participação brasileira no Grupo do Rio (que
reunia Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, ao lado de México,
Venezuela Colômbia e Panamá) e a aproximação com os países vizinhos - a
Argentina, o Uruguai e o Paraguai - em torno dos temas da
redemocratização e do desenvolvimento econômico. Dessa forma, o processo
de negociação das dívidas externas dos países latino-americanos teria
sido permeado pelas sucessivas crises econômicas e políticas com os
Estados Unidos (que atuavam tanto no plano multilateral quanto no
bilateral) que produziram um quadro de escassez de recursos econômicos e
de dependência dos programas de ajustes das agências internacionais.
À divergência entre o Brasil e os países latino-americanos em relação
ao ritmo de superação da crise econômica, e em razão da dificuldade
brasileira em superá-la, acrescentava-se a própria crise política
interna. Essa sobreposição de crises reforçou a imagem internacional do
Brasil como um país que não estava dando certo, como um perdedor, um
país atrasado. Ainda assim, a possibilidade de inserção do país em uma
nova ordem internacional é avaliada com otimismo por Ricupero, porque
forneceria as condições necessárias para o país exercer sua capacidade
de iniciativa e autoafirmação. Descartados o “maniqueísmo bipolar” e o
perigo de destruição nuclear, que davam margem ao alinhamento automático
dos países periféricos e reprimiam as reformas sociais em escala
global, tem-se um quadro de reordenamento mundial cujo signo é a
democratização. Dentro desse quadro montado pelo autor, as chances do
Brasil atuar de forma significativa seriam grandes, já que o país teria “condições
de contribuir, junto com os EUA e outros países, para muitas das
coalizões que serão crescentemente necessárias para enfrentar os grandes
desafios globais” (Ricupero, 1995:353).
Quais seriam as credenciais brasileiras para inserir-se no mundo?
Para Ricupero, o país poderia ser considerado um exemplo para a região,
por não ter se desviado da promoção da democracia como um valor, nem
abandonado a defesa de ações multilaterais para atingir seus interesses.
A atuação brasileira na organização e no encaminhamento da Conferência
do Rio sobre Meio Ambiente e o engajamento brasileiro no tema da
desnuclearização continental (como signatário do TIAR, parceiro da
Argentina na ABACC e defensor do desarmamento em escala global) poderiam
então ser mencionados como exemplos dessa credencial brasileira, que
vincularia o Brasil ao mundo ocidental. Como o Brasil não era nem uma
potência nuclear, nem uma potência militar regional, não poderia mais
representar uma ameaça à paz global. Essa convergência de valores seria
responsável pela aproximação do Brasil à potência regional, os EUA,
nesse momento. Essa aproximação, na visão de Ricupero, mais uma vez, não
se traduz por subordinação. Não tendo “seguido” a onda de abertura
econômica de países como o México e o Chile, o Brasil deveria lançar mão
de um “projeto nacional” a fim de superar a “partir de dentro” os
constrangimentos externos criados pela dívida externa e pelo aumento da
dependência econômica (1995:354): “com o êxito da estabilização e do
retorno do crescimento, o alinhamento é desnecessário e voltam a
existir as condições de autonomia e de diversificação da cooperação
externa (idem)”.
Por essas razões, o Brasil teria um lugar marcado no grupo de países
emergentes com capacidade de influir no cenário internacional e de atuar
de forma pró-ativa. Mas havia um único caminho para a realização dessa
capacidade, reformar-se internamente, controlando a inflação e retomando
a trilha do desenvolvimento e participando ativamente da política
internacional. A política exterior então teria um papel fundamental para
a consecução desses objetivos, porque seria capaz de produzir o
consenso necessário à atuação internacional.
Fonseca e Lafer (1994) defendem, como já dissemos, uma globalização qualificada,
que combinasse integração econômica com soberania estatal. Nesse
sentido, a ação diplomática deveria ser resultado do discernimento entre
a perspectiva verdadeiramente nacional e uma perspectiva
global para as modalidades de inserção internacional. Não há, sob essa
perspectiva, uma relação necessária entre a supressão da autonomia
estatal e o processo de globalização, mas, ao contrário, a globalização
seria benéfica para o Brasil porque lhe permitiria aperfeiçoar seus
mecanismos institucionais, inclusive diplomáticos, modernizando-os,
democratizando-os, seguindo a “linha de uma adaptação criativa”.
Os autores defendem uma posição ativa do Brasil no sistema
internacional. Uma posição que permitisse ao país exercer sua autonomia
de potência média. Essa defesa não se caracteriza apenas como um projeto
nacional defensivo, mas, ao contrário, tem um forte conteúdo
afirmativo, que advoga inclusive uma capacidade de transformar o sistema
internacional através da imposição do valor da tolerância: “Na
verdade, as regras a presidirem os complexos equilíbrios entre
globalização e autonomia é que podem levar a uma ordem mais justa e mais
estável, mais permeada pela tolerância” (1994:70) porque “só com uma visão própria, portanto autônoma, do processo internacional, teremos condições de influenciar e de nos valer dessas indefinições”
(1994:71). Ainda que, de um lado, haja uma inegável crítica à
globalização enquanto processo de reposição hegemônica (que permitiria
que as potências atuassem de forma intervencionista), por outro, não há
uma solução que prescinda da relação com o mundo externo, é preciso se
inserir: “a autonomia só será exercida com sucesso se levarmos em
conta a necessidade de aceitar a inevitabilidade da globalização e
soubermos aproveitar a sua dinâmica” (1994:71).
Para alcançar os objetivos definidos pelos autores, seria preciso
desenvolver uma ação diplomática que levasse em consideração: a dispersão da agenda internacional com
a importância cada vez maior dos temas ligados aos direitos humanos, ao
meio-ambiente, à migração, etc; o novo papel, atribuído à diplomacia,
de mediadora dos diversos interesses defendidos pelos vários grupos
sociais nacionais (estatais e não-estatais); e a importância da tolerância como “valor-guia” da ação internacional do país.
Lafer e Fonseca defendem uma posição pró-ativa do Brasil no cenário
internacional configurado nos anos 90, fundamentando o argumento sobre
as credenciais que o país teria: a estabilidade política adquirida com a
redemocratização (nesse sentido, Lafer destacou algumas vezes a
importância da conclusão do processo de impeachment do
presidente Collor como etapa fundamental para o fortalecimento
democrático); o histórico diplomático do país, baseado na estabilidade
do Ministério das Relações Exteriores, fruto do processo de
burocratização e institucionalização ocorrido ao longo da segunda metade
do século XX, que permitiu que os diplomatas compusessem um corpus
coerente e fortalecessem seu papel de formuladores da política externa.
Diferente de Ricupero, que, em função de sua experiência como
representante brasileiro nos foros econômicos multilaterais, sublinha o
aspecto econômico das credenciais brasileiras, Fonseca e Lafer dão maior
destaque aos aspectos, digamos, político-diplomáticos porque acreditam
que essas credenciais são fruto "da própria história pacífica do país no
cenário regional e mundial” (1994:77).
Em outro texto[v],
Lafer (1993) define mais claramente as estratégias fundamentais para
garantir a inserção internacional: “visão de futuro”, “adaptação
criativa” e “parcerias operacionais”. A primeira implicava estabelecer
um nexo entre a realidade e a vontade de um país. A segunda estratégia
consistia em ter a capacidade de transformar as situações
aprioristicamente desvantajosas em oportunidades para fortalecer
vínculos com outros governos através de uma atuação multilateral eficaz.
A noção de “parcerias operacionais” guarda estreita relação com a
percepção de que o Brasil é um país de interesses gerais que poderia
exercer diferentes funções no cenário internacional, especialmente a de
mediador entre os vários povos. No campo econômico, o país tinha
necessidade de estabelecer parcerias comerciais com os EUA, com a CEE e
com o Japão, seguido por países asiáticos e, por último, com a América
Latina. Para ele, a América Latina “não é [seria] uma parceria, mas […] a nossa circunstância” (Lafer, 1993:78). Ele enxergava nichos de oportunidades também na China, em Israel e no Irã.
Nesse contexto de transição econômica e política, os temas de
integração regional e de fortalecimento de blocos econômicos passam a
ser motivo de debate. O mundo parecia caminhar para a interdependência, e
o Brasil deveria caminhar junto. A aproximação com a Argentina já
estava em curso, mas qual modelo seguir: o da Comunidade Europeia,
atrelado a integração econômica e monetária, ou o dos Estados Unidos de
formação de uma área de livre comércio sem coordenação política?
Fonseca (1998) reforça a posição de Lafer, de que a América do Sul
(não mais a América Latina) seria a nossa "circunstância". Em uma nova
reformulação, agora conectada com as transformações internacionais, a
integração voltava a ser projeto, mas reduzia seu raio de ação. Nos anos
90 e início de 2000, a política externa brasileira incorporaria em seu
discurso a ideia de integração da América do Sul, realizada com a
constituição do Mercosul com Argentina, Paraguai e Uruguai, e a adesão
de Estados associados como a Bolívia, o Chile, a Colômbia, o Equador e o
Peru. A criação dessa área representou a substituição da noção de
integração latino-americana como determinada pela carta constitucional
de 1988, fruto de um processo de integração regional malfadado iniciado
nos anos 60, com a criação da ALALC (Associação Latino-Americana para o
Livre Comércio) e sua posterior transformação em ALADI (Associação
Latino Americana de Integração) nos anos 80. A América do Sul deixa
então de ser a "fronteira-separação" para tornar-se
"fronteira-cooperação" (Lafer e Fonseca, 1998). A construção desse novo
espaço diplomático pode ser entendida como um processo de substituição
estratégica da noção de América Latina pela de América do Sul. Em função
da imagem negativa da América Latina como uma região fadada ao não
cumprimento dos acordos internacionais, ao desvario
político-administrativo e ao caos estrutural, parece ter havido um
consenso das elites políticas brasileiras sobre a necessidade de
construir uma nova imagem do Brasil capaz de viabilizar a inserção do
país em um contexto internacional estruturalmente modificado (Spektor,
2010).
Segundo Ricupero (1995), a América Latina no período em análise teria
apresentado uma inflexão em direção ao Estados Unidos e as práticas
liberais do Consenso de Washington. Por isso, há nos anos 90 uma
aparente contradição entre os interesses dos vários países da região –
notadamente os da Argentina e do México - e os do Brasil. Um projeto
como a Iniciativa para as Américas (1991), que preconizava a criação de
uma área de livre comércio no continente americano representava para o
Brasil uma ameaça à sua organização econômica, em virtude do perfil
concorrencial das demais economias da região. Tampouco era interessante
para o país perder o acesso preferencial ao mercado latino-americano.
Como não existia, entre as elites dirigentes nacionais, vontade de abrir
mão da autonomia no campo das negociações comerciais, o sistema
internacional configurado pelo “multipolarismo” econômico se apresentava
como uma oportunidade do país ser um ator global. De acordo com
Ricupero (1995), a contradição de rumos entre os caminhos seguidos pelos
países latino-americanos no momento posterior a euforia da
redemocratização e o interesse brasileiro em manter o ritmo do
crescimento econômico e continuar o processo de modernização demandaria
do Brasil um investimento maior em parcerias com os polos econômicos
mundiais mais dinâmicos.
Conclusão
Entre os anos 1989 e 1994desenvolveu-se uma reflexão acerca do lugar
do Brasil no mundo que foi influenciada tanto pelos movimentos de
abertura política e econômica que ocorriam no plano internacional como
pelas transformações no plano doméstico. Essa reflexão ficou registrada
em depoimentos orais, textos publicados em periódicos, artigos de jornal
e mesmo em livros e documentos oficiais (ou não).
Buscamos, através da análise de documentos diversos, sintetizar as
principaiscontribuições de Gelson Fonseca, Celso Lafer e Rubens
Ricupero, chamados de tríade da normalização, para o entendimento da
nova ordem internacional, marcada pela globalização e pela emergência
dos Estados Unidos como superpotência solitária, e suas respostas para a
questão do lugar que deveria ocupar o Brasil, como potência média, no
mundo, e mais fundamentalmente sobre quais as chances do Brasil seguir
com seu modelo de desenvolvimento autônomo diante das restrições
impostas pelo fim da Guerra Fria.
A reflexão objeto desse estudo apresentou e atualizou elementos
presentes em formulações políticas anteriores à redemocratização que
marcaram o processo de industrialização brasileiro a partir dos anos 30,
como a preocupação com a autonomia representada pelo pensamento
econômico estruturalista da CEPAL e pelas ideias de “nacionalismo de
fins” de Hélio Jaguaribe (1958); e a necessidade de formulação de um
projeto nacional. Mais notável é que as reflexões desenvolvidas por
esses personagens se caracterizam como um processo de reformulação das
idéias interno, no Ministério das Relações Exteriores, que buscou
atualizar os princípios de atuação dessa elite burocrática (autonomia,
projeto nacional) adequando-os às novas contingências internacionais
(globalização e reestruturação da economia mundial).
É possível inferir que o processo de renovação política e de ideias
que cortou a sociedade brasileira nos anos 90 atravessou também o
Itamaraty e produziu o debate a que ora nos referimos. Esse debate
esteve pautado sobre as condições possíveis para o Brasil retomar o
caminho do desenvolvimento sem abrir mão de sua identidade ocidental,
vinculada ao estabelecimento da democracia e do modelo de economia
capitalista, garantindo o exercício de sua autonomia. Nossos personagens
destacam o processo de globalização como caminho possível para o Brasil
e atribuem à falta de consenso político no plano interno as principais
dificuldades enfrentadas pelo país durante os anos 80. A ideia de
normalização das relações do país é parte importante do projeto
nacional, são ambos entidades indissociáveis, que adicionam um
componente novo ao cálculo político: o componente externo. Isso não
significa que o componente externo não tenha exercido influência sobre a
política externa brasileira ou mesmo sobre decisões políticas internas
ao longo da história do país, mas nos anos 90, o que há de novo, é a
articulação ideológica de ideias dispersas através das várias correntes
de pensamento, notadamente as de desenvolvimento e soberania, de um
lado, e a de inserção econômica internacional (necessária para a
conclusão do ciclo de evolução de uma economia capitalista), unindo os
que defendiam maior autonomia para o país através do fortalecimento do
Estado, com os grupos que advogavam a necessidade de se abrir para o
mundo. Em segundo lugar, destacamos que é um momento único em que se
produz uma reflexão sobre o papel do Brasil no mundo. Essa alteração
perceptiva pode ser atribuída, dentre outros fatores, à redemocratização
política interna, mas também global, às crises econômicas e ao processo
de reestruturação da economia mundial.
Referências:
Livros e Artigos
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[i] As taxas anuais de inflação para os anos de 1988 e 1989 foram 1.037,56% e 1782.9%, respectivamente (Bresser-Pereira, 1990).
[i] As taxas anuais de inflação para os anos de 1988 e 1989 foram 1.037,56% e 1782.9%, respectivamente (Bresser-Pereira, 1990).
[ii]
Para mais informações acerca do debate interno sobre a política
externa, ver SARAIVA, Miriam Gomes. As estratégias de cooperação Sul-Sul
nos marcos da política externa brasileira de 1993 a 2007. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 50, n. 2, p. 42-59, 2007.
[iii]Esse texto tem uma versão publicada em 1994, disponível em http://pt.braudel.org.br/publicacoes/braudelpapers/06.php
[iv]Bradford Burns, E. The Unwritten Alliance: Rio-Branco and Brazilian-American Relations.New York:Columbia University Press, 1966, iii, http://www.questia.com/PM.qst?a=o&d=100700198
[v]A política externa do governo Collor. Política Externa, vol.1, n.4, março de 1993.
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