sábado, 1 de agosto de 2020

Hierarquias da cultura - Ilana Goldstein

O sociólogo Pierre Bourdieu (Martine Franck/ Magnum Photos)

 

Bourdieu construiu pilares fundamentais para o estudo sociológico da cultura e da arte, a partir da aplicação dos conceitos de “campo” e de “habitus” a diversas esferas de criação simbólica, como a alta-costura, a fotografia, as artes plásticas e a literatura. No pólo da criação artística, Bourdieu questionou a crença no “gênio”, ou seja, a idéia de que um artista possa produzir de maneira isolada, guiado apenas por sua inspiração individual. Propôs que, para se compreender a gênese de uma obra, sejam levadas em conta as relações do artista no campo de produção simbólica a que pertence, bem como os constrangimentos sociais e materiais a que está submetido. Já no pólo da recepção, pôs em xeque a idéia de que as diferenças nas atitudes e escolhas do público se devam a faculdades sensoriais e predisposições naturais – o “bom ouvido”, o feeling e assim por diante. Por meio de pesquisas empíricas, o autor demonstrou que as preferências estéticas estão relacionadas, antes, à origem familiar, ao grau de instrução e à posição socioeconômica dos indivíduos.

Um sociólogo de inspiração bourdieusiana interessado em compreender o papel e a poética de determinado criador irá reconstituir o percurso biográfico, intelectual e profissional de seu objeto de estudo, mapeando suas relações com outros agentes do ”campo” e seus investimentos ao longo da vida. Bourdieu chamou esse procedimento metodológico de “estudo de trajetória” e, em Razões práticas, definiu-o da seguinte maneira: “diferentemente das biografias comuns, descreve a série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor em estados sucessivos do campo”. Um exemplo concreto de “estudo de trajetória” encontra-se em As regras da arte, livro em que o sociólogo francês se debruça sobre o escritor Gustave Flaubert e no qual afirma que “as obras guardam traços de determinismos sociais que se exercem por meio do habitus do produtor (família, escola, contatos profissionais) e das demandas e constrangimentos sociais inscritos na posição ocupada por esse artista no campo de criação (…). Flaubert, enquanto defensor da arte pela arte, ocupava uma posição neutra no campo, opondo-se ao mesmo tempo à arte social e à arte burguesa”.

De acordo com Bourdieu, a maior parte das estratégias artísticas são simultaneamente estéticas e políticas. O processo pelo qual determinadas obras se impõem sobre outras é produto das lutas entre aqueles que ocupam  momentaneamente a posição dominante dentro do “campo”, em virtude de seu “capital“ específico  –  e que tendem à conservação e à rotinização da ordem simbólica estabelecida  –  e  aqueles que são inclinados à “ruptura herética”, à crítica das formas estabelecidas e à subversão dos modelos em vigor. Nessa perspectiva, um dos grandes desafios do cientista social é desvendar as disputas envolvidas na definição das categorias e classificações internas aos campos – como “belo”, “legítimo” ou “moderno” –, explicitando a posição de onde fala cada agente. Faz-se necessário, portanto, reconstituir o processo de construção do cânone, a hierarquização que preside os sistemas de classificação em gêneros, escolas, estilos e prestígio – frutos de disputas que acabam sendo naturalizadas. A micro-história própria do “campo” é o pré-requisito para a sua interpretação. É por isso que uma das principais críticas que Bourdieu faz às análises marxistas das obras culturais, como as de Lukács e Goldmann, é o fato de elas colocarem entre parênteses a lógica e a história específicas de cada “campo”, relacionando a obra diretamente à “classe” para a qual ela é destinada e fazendo do artista o porta-voz dos interesses gerais de uma classe.

O conceito de “capital cultural”

Trata-se, portanto, de uma sociologia da cultura que analisa o encontro entre a pulsão expressiva dos criadores e o espaço dos “possíveis” em que se movem. Como resume o próprio autor, em O poder simbólico: “Se existe uma história propriamente artística, é porque os artistas e seus produtos se acham objetivamente situados, pela sua pertença ao campo artístico, em relação a outros artistas e aos seus produtos e porque as rupturas mais propriamente estéticas com uma tradição artística têm sempre que ver com a posição relativa, naquele campo, dos que defendem esta tradição e dos que se esforçam por quebrá-la”.

Um segundo conjunto de questões e desafios lançados pela sociologia da cultura de Pierre Bourdieu diz respeito à elucidação da lógica que rege o consumo e as práticas culturais. Uma noção-chave, aqui, é a de “capital cultural” – esboçada em O amor pela arte e explicitada em A distinção. Trata-se de uma riqueza simbólica desigualmente distribuída dentro de cada campo, que é acumulada e transmitida de geração em geração, traz poder a seus detentores e suscita o desejo – consciente ou não – de se distinguir dos demais por meio de atitudes “típicas” de um conhecedor. Segundo Bourdieu, o “capital cultural” pode aparecer sob três formas diferentes: como habitus cultural, quando é fruto da socialização prolongada, que garante a alguém saber falar bem em público ou se sentir à vontade em uma ópera, por exemplo; como forma objetivada, presente em bens culturais como livros, quadros, discos etc.; sob forma institucionalizada, contida nos títulos escolares e vinculada ao mercado de trabalho. Vale destacar que não necessariamente o “capital cultural” está associado ao capital econômico; muitas vezes, grupos menos privilegiados do ponto de vista financeiro são os maiores detentores do “capital cultural”. De qualquer maneira, o montante e a natureza do “capital cultural” possuído pelos diferentes agentes têm relação direta com suas preferências estéticas e aquisições culturais.

Essa hipótese surgiu primeiramente em Un art moyen. Essai sur les usages sociaux de la photographie (1965), escrito em conjunto com Luc Boltanski e Robert Castell. Com base em metodologias quantitativas, o objetivo do estudo era desvendar os diversos usos da fotografia de acordo com a posição socioeconômica dos entrevistados, da apropriação mais instrumental à mais estetizante, do mero reconhecimento dos objetos retratados a alusões complexas à qualidade formal das imagens. Entre as camadas populares, os pesquisadores encontraram um uso predominantemente funcional da fotografia (álbuns de família), ao passo que as camadas médias valorizaram enfaticamente o aspecto “artístico” das imagens, ao contrário das camadas superiores, menos entusiasmadas com essa “arte mediana”.

Uso estratégico do gosto

A publicação de L’amour de l’art, em co-autoria com Alain Darbel, em 1969, viria confirmar que o “amor pela arte” é fruto de aprendizagem e socialização. A pesquisa revelou, por exemplo, que a diferença na taxa de visitação anual de museus entre um agricultor e um professor europeu era da ordem de 300 vezes. A partir daí, o que hoje parece evidente, foi um passo decisivo na época: denunciar a ideologia do gosto natural. Quinze anos mais tarde, em La distinction (1979), Bourdieu se lançou à explicação das diferenças de posicionamento político, de comportamento e de apreciação dos produtos culturais presentes nos diferentes estratos da sociedade, por meio de um novo conceito: “habitus”. O autor argumentava que os atores sociais fazem um uso estratégico do gosto, manejando sua destreza lingüística e estética como maneira de se demarcar socialmente de grupos com menor “capital cultural” e de obter reconhecimento simbólico e prestígio. Nessa lógica, o consumo cultural e o deleite estético são acionados como forma de distinção, ou seja, a familiaridade com bens simbólicos traz, consigo, associações como “competência”, “educação”, “nobreza de espírito” e “desinteresse material”. E o cruel é que a divisão da sociedade entre “bárbaros” – incapazes de se deleitar com uma bela sinfonia ou uma pintura expressionista – e “civilizados” – eruditos e dotados de “bom gosto” – acaba tendo conseqüências políticas: justifica o monopólio dos instrumentos de apropriação dos bens culturais por parte desses últimos.

Políticas culturais na França e no Brasil

As análises de Pierre Bourdieu sobre arte e cultura repercutiram muito além da Academia. As instituições culturais e os arte-educadores passaram a não mais falar de um público no singular, abstrato, mas de públicos no plural, com competências e repertórios diferenciados. O livro O amor pela arte levou os museus franceses, inclusive, a repensarem suas estratégias de comunicação, dando origem a um dos principais instrumentos da política cultural francesa. Desde 1974, o governo encomenda levantamentos estatísticos periódicos sobre a vida cultural das regiões, para um relatório intitulado Les pratiques culturelles des français. São estimados, para cada faixa etária e categoria socioprofissional, o número médio de idas a museus, de freqüência ao cinema e ao teatro, de visitas a monumentos históricos, a prática amadora de modalidades artísticas, entre outros indicadores. A partir daí, delineiam-se as estratégias e prioridades do Ministério da Cultura para os anos seguintes.

É interessante notar que, também no Brasil, uma das preocupações da atual gestão do Ministério da Cultura é criar indicadores culturais que possam nortear seu planejamento. Para suprir a lacuna de informações nesse setor, o IBGE, o MinC, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA e a Casa de Rui Barbosa assinaram uma parceria, há quatro anos, criando uma base de dados culturais. Inicialmente, estão apenas sendo aproveitadas informações já coletadas pelo IBGE em pesquisas gerais, que permitem aferir conclusões sobre a oferta e a demanda de bens e serviços culturais, os gastos das famílias e os gastos públicos com cultura, além do perfil da mão-de-obra ocupada em atividades culturais. Mas a idéia é realizar sondagens, mais adiante, especificamente sobre práticas e demandas culturais dos diversos segmentos da população. Curiosa coincidência: as traduções de O amor pela arte e A distinção só foram publicadas, no Brasil, a partir de 2004, mesmo ano em que se selou a parceria entre o MinC, o IBGE e o IPEA para a construção do Sistema de Indicadores Culturais.  Talvez se trate apenas de uma coincidência de datas; ou talvez estejamos diante de uma saudável retroalimentação entre as políticas públicas, a divulgação científica e a reflexão acadêmica, como agradaria a Pierre Bourdieu.


ILANA GOLDSTEIN é professora da FGV-SP e da Escola de Belas Artes do Paraná, e doutoranda em Antropologia Social. É autora de Responsabilidade Social: das grandes corporações ao terceiro setor (Ática, 2008).

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