sábado, 5 de setembro de 2020

Democracia Fardada: A Interferência Militar na política brasileira de 1870 até 1945

 por Gustavo Duarte


“Assim como em 1889 com a instauração e proclamação da República, o povo não foi o protagonista dessa ação, tampouco soube o que aconteceria até realmente acontecer. Como uma explosão química. Esse é o Brasil que vemos atualmente. Como povo não vemos o que está acontecendo, tampouco sentimos os efeitos do que está sendo feito nas entrelinhas. (…)” (SANTANA, Luisa; SOUZA, Vinicius, 2020)


A história recente do Brasil é marcada pela interferência e presença militar nas questões políticas – começando em 1870, com o fim da Guerra do Paraguai, até os dias atuais, com o governo Bolsonaro. De lá pra cá, esses militares apoderaram-se da máquina estatal de diversas maneiras, seja de forma direta, com a subida ao poder em cargos presidenciais (como ocorre em uma pequena parte da Primeira República, após o fim do Estado Novo com Eurico Gaspar Dutra e Ditadura Civil Militar –1964 a 1985), ou então de forma indireta, exercendo cargos no governo executivo.


 O discurso é sempre o de que existe “algo” que ameaça os interesses nacionais e precisa ser combatido; assim, há uma justificativa para uma intervenção militar, e as forças armadas começam a ser vistas cada vez mais como os “guardiões da nação” e protetores do povo – esse argumento ficará mais claro no decorrer do texto.


Nesse artigo, faço um recorte temporal que vai do fim da Guerra do Paraguai (1870) até o fim do Estado Novo (1937-1945), onde meu objetivo não é aprofundar nos eventos citados, mas sim nos papeis que a as forças armadas exerceram neles, mais especificamente nos assuntos políticos.


A Guerra do Paraguai e o advento da Primeira República

O Segundo Tenentismo

Ascenção e Queda do Ditador

A Guerra do Paraguai e o Advento da Primeira República

Em 1864, o Brasil passaria por um episódio que marcou profundamente a sua história: a Guerra do Paraguai (1864-1870). Como mostra Boris Fausto, esse foi um conflito importante que impulsionou eventos futuros no país, como o fim do regime escravista e a queda do governo imperial; além disso, a ala militar, que até então não tinha uma posição de grande importância na sociedade brasileira, passa a ver-se como uma corporação, tendo seus próprios objetivos e interesses. Assim, começam a intervir na política brasileira, devido à ideia (construída dentro da própria instituição) de que eles não apenas podiam como deviam executar intervenções políticas sempre que achassem necessário, tendo um papel quase que de “árbitros” da nação.


Dentro desse contexto, a crítica à ordem imperial (que já existia na ala militar) começa a tomar novos rumos com a reorganização da Escola Militar de Praia Vermelha, a qual deixa de ser uma instituição de formação militar e se torna um centro de estudos de matemática, filosofia e letras. Aqui, é importante mencionar o forte papel da influência positivista¹, impregnada na instituição militar, no fortalecimento dessa crítica entre os militares, fazendo as insatisfações com o império e o crescimento do movimento republicano crescerem cada vez mais.


Em 15 de novembro de 1889, Marechal Deodoro da Fonseca ocupa o quartel do Rio de Janeiro, causando a deposição do gabinete imperial e, assim, efetivando seu golpe e proclamando a república – a qual ele mesmo começa a governar de forma provisória. Sua justificativa para essa atitude foi a de que era preciso intervir, pois a monarquia representava uma ameaça à nação e já não atendia aos interesses do povo. Entretanto, é importante problematizar sua justificativa, uma vez que esse foi um processo que se deu de cima para baixo, sem nenhuma participação da população – a qual, ao presenciar a celebração da proclamação da República nas ruas, nem sabia o que estava de fato acontecendo, como descreve Aristides Lobo1 ao dizer que “o povo assistiu bestializado sem compreender o que se passava…” em artigo publicado na forma de carta no Diário Popular de São Paulo (1889). Sendo assim, será que os militares estavam de fato defendendo os interesses da nação? Ou será que estavam atendendo aos seus próprios interesses?.


A tática de usar “os interesses da nação” para atender ambições individuais acaba se tornando cada vez mais recorrente na história do país. Os militares passam a se colocar à frente dos assuntos políticos, alegando estar defendendo os interesses da nação e combatendo supostas ameaças, enquanto o povo apenas assiste sem saber direito o que está acontecendo e tendo que engolir a seco o que lhes é imposto.


O Segundo Tenentismo

A proclamação da república representou o primeiro movimento que buscava fortalecer a posição dos militares dentro do Estado e da sociedade; todavia, esse objetivo acaba falhando, pois, ao fim do governo de Floriano Peixoto, as oligarquias paulistas e mineiras acabam se estabelecendo no poder, inaugurando uma nova fase da República no Brasil: a República Oligárquica (1894-1930), que colocou novamente os militares em uma posição inferior na política nacional (de uma forma diferente a do período imperial, mas ainda assim). Essa situação não agradou nem um pouco a ala militar, que queria retomar novamente seu poder dentro da máquina estatal e dentro da sociedade, dando origem a uma nova investida militar, o tenentismo2 (CARVALHO, José Murilo de, 2019).


Assim como no episódio da Proclamação da República, existia, dentro do movimento tenentista, uma fragmentação: de um lado, um grupo de inclinação de esquerda, comandado por Luiz Carlos Prestes, lutava por mudanças mais radicais; de outro, um grupo chamado de centrismo, comandado por Juarez Távora, exigia mudanças que não alterassem profundamente o sistema social. Apesar dos muitos pontos em comum nas reivindicações de ambas, a corrente centrista teve papel importante na subida de Vargas ao poder em 1930, na queda de Vargas em 1945 e no golpe militar de 1964.


José Murilo de Carvalho, em seu livro “Forças armadas e política no Brasil”, nos apresenta quatro pontos em que os dois grupos concordavam com relação às medidas que deveriam ser tomadas após a Revolução de 1930, cada um de acordo com seus interesses.


O primeiro ponto era a nacionalização da política: os militares defendiam um poder centralizado que exercesse controle sobre a política nacional e um maior controle na política estadual, pedindo o fim do federalismo do jeito que era. Apesar de o grupo de inclinação à esquerda ser bem mais radical de forma geral, essa exigência era mais forte no centrismo.


 O segundo ponto era o antiliberalismo, que servia como um complemento daquela primeira exigência. Aqui, era defendido um Estado forte que interviesse na economia e na regulamentação da sociedade (CARVALHO, José Murilo de, 2019). Apesar de este ser um ponto forte na esquerda, o centrismo também defendia essa intervenção, mesmo que não completamente.


 O terceiro era o antirepresentativismo, defendido principalmente pelos centristas militares, que acreditavam ser eles quem deveria representar a nação, intervindo na política, depondo governos sempre que achassem ser necessário e deixando claro que queriam exercer papel de árbitros da política brasileira (CARVALHO, José Murilo de, 2019). Nesse ponto, o ressentimento dos militares centristas por serem jogados novamente para uma posição subalterna e o desespero para recuperar o poder do Estado ficam evidentes; por isso, não apoiavam a realização de mudanças radicais e discordavam do grupo de Prestes.


O quarto e último ponto era o reformismo de ordem política, social e econômica, defendido principalmente pelo centrismo. Ele consistia na busca pela modernização do sistema social, uma modernização pelo alto (CARVALHO, José Murilo de, 2019) – também conhecida como modernização conservadora (ideia presente na corrente positivista), enquanto a esquerda buscava reformas que alteravam a ordem do sistema capitalista.  De modo geral, a corrente centrista, ao buscar essa modernização do sistema representativo, na verdade queria defender a ordem liberal capitalista e fazer a manutenção do sistema. Foi assim em 1930 e também em 1964. Ao fazer essa troca do representativismo, poderiam acabar com todos os movimentos que ameaçassem a ordem liberal capitalista e os rumos traçados por ela. Os centristas apoiaram o governo provisório de Vargas e a ditadura implantada por ele, até que todas as reformas tivessem sido feitas.


Ascenção e Queda do Ditador


Imagem retirada do documentário “Imagens do Estado Novo – 1937-1945”

Em 1930, com o pretexto de que o movimento armado comandado por Getúlio Vargas se tornaria uma ameaça nacional, os militares depõem o então presidente Washington Luiz (1926-1930) – que fica impossibilitado de empossar o presidente eleito, Júlio Prestes, e assumem o poder por três dias. Em 3 de novembro do mesmo ano, tornam Vargas presidente provisório e, segundo o general Tasso Fragoso, a força militar decide intervir para que “os brasileiros não continuassem derramando o seu sangue pela vitória de uma causa que não era o da consciência nacional” (SIDMORE, P.39); assim, os militares retomam o poder da máquina estatal e sua posição na sociedade.  O sucesso de sua estratégia faz com que essa arbitragem se torne cada vez mais forte e frequente no nosso país.


“Como em 1889, quando a República substituiu o Império, a cúpula militar assumiu o controle num momento crítico, transferindo-o em seguida para um novo grupo de líderes políticos. Em 1930, os comandantes do exército e da Marinha se viram numa posição que se tornaria cada vez mais familiar na história subsequente do Brasil: o papel de árbitro da política nacional”. (SIDMORE, P. 39).


Em 1937, com o auxílio da ala militar e do movimento integralista brasileiro, Vargas elabora o Plano Cohen, um falso documento que dizia que o Brasil passava por uma ameaça comunista e precisava entrar em Estado de Sítio até que tal ameaça fosse combatida. O povo acredita na história e apoia o ditador que se mantém no poder até 1945. Daí pra frente, o pretexto de uma ameaça comunista será usado frequentemente pela instituição militar como justificativa para toda intervenção na política.


Por ironia, os mesmos militares que ajudaram Vargas subir ao poder na década de 30 e implantar o Estado Novo em 37, o depõem em 1945, levando o General Eurico Gaspar Dutra a assumir a presidência logo depois.


Conhecer as raízes e os episódios de interferência militar direta no governo Brasileiro é uma maneira de abrirmos os olhos para os processos que tomam lugar na atualidade: em um momento de vulnerabilidade da população, o governo Brasileiro novamente se vê composto consistentemente por militares e agregados, que buscam fazer valer seus interesses frente aos do povo. Até quando?


1 Propagandista da República em 1889.


2 O tenentismo foi um movimento que ganhou força entre militares de média e baixa patente durante os últimos anos da República Velha. No momento em que surgiu o levante dos militares, a inconformidade das classes médias urbanas contra os desmandos e o conservadorismo presentes na cultura política do país se expressava.


Referências


CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019.


FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2006.


SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


SANTANA, Luisa; SOUZA, Vinicius. O verde das fardas e o amarelo bestializado. Revista Clio Operária, 2020. Link: (https://cliooperaria.wixsite.com/cliooperaria/post/o-verde-das-fardas-e-o-amarelo-bestializado)


Gustavo Duarte é graduando em História pela Universidade Cidade de São Paulo – UNICID. Atua como monitor do Laboratório de Estudos e Pesquisa em História (LEPH) da mesma instituição.


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