Dirceu Lindoso é o mais novo Doutor Honoris Causa da Ufal
Homenagens
acadêmica e política marcaram a solenidade que outorgou o título de
Doutor Honoris Causa ao jornalista, tradutor, poeta, romancista,
antropólogo, etnólogo e historiador alagoano Dirceu Acioli Lindoso. O
título foi solicitado pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) e
aprovado por unanimidade pelo Conselho Universitário. A sessão solene
na sexta-feira, 25 de março, no Espaço Cultural, foi presidida pela
reitora Ana Dayse Dorea. O momento artístico-cultural ficou a cargo do
Corufal e do jovem pianista Eric John, do curso de Música e integrante
da Orquestra de Câmara da Universidade Federal de Alagoas.
Dirceu Lindoso é conduzido pelos membros do Consuni
Diana Monteiro – jornalista
“Homem
de palavras e de ação. Qualidade de ser humilde em sentido pleno e
qualidade de ser generoso em amplitude e doação. Profundo conhecedor,
desbravador e disseminador da cultura e do pensar sobre Alagoas, sobre
nossa gente, sobre nossa aura. Este é o Doutor Dirceu Lindoso que temos a
honra de homenagear. Ao completar 50 anos, a Ufal reverencia seu
passado com olhos voltados para o futuro”, destacou a reitora Ana Dayse
ao homenagear o alagoano de Maragogi, Dirceu Lindoso.
Retratando
rapidamente a trajetória de Dirceu, a reitora Ana Dayse citou uma
famosa frase do homenageado, “Alagoas é aquilo que se ama, e aquilo que
se dói”, e frisou o brilhantismo dele ao narrar, através de algumas
obras, parcela da história do nosso Estado em lembranças dos engenhos do
litoral norte alagoano, ou sobre a Guerra dos Cabanos , Quilombo dos
Palmares, ou sobre Zumbi e Ganga Zumba.
“Nesta
data, por meio desta titulação, não só a Universidade Federal de
Alagoas, como toda a sociedade alagoana fazem justiça. Justiça porque há
muito que o nome de Dirceu Lindoso está inscrito no panteão de nossos
homens e mulheres de saber. A oferta deste título também é um gesto de
reparação que o Estado Brasileiro realiza”, frisou Ana Dayse.
Ainda
destacando a realidade dura e desumana do cárcere e da prisão de
Dirceu nos tempos da ditadura militar, Ana Dayse fez um pedido de
desculpas ao homenageado: “Eu, como reitora de uma Universidade
Federal, em nome do Estado Brasileiro peço desculpas pelas atrocidades
que nossa ditadura militar cometeu contra sua integridade física.
Atrocidades e privações que em nada comprometeram sua integridade
moral. Por isso o senhor é ainda maior”, destacou a reitora.
Homenagem política
O
jornalista Anivaldo de Miranda, representando o Diretório Nacional do
Partido Popular Socialista (PPS), do qual Dirceu Lindoso é presidente
de honra no Estado, enfatizou a trajetória política do homenageado como
militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), desde sua prisão em
Alagoas, em 1964, ao seu exílio no Rio de Janeiro. “Sem dúvida estamos
todos vivenciando hoje um dia muito especial. O dia em que o povo de
Alagoas começa a saldar uma grande dívida de gratidão. E o que é mais
importante: é que começa a saldar essa dívida pela maneira mais
apropriada e através do conduto mais legítimo para fazê-lo”, destacando a
iniciativa da Ufal em outorgar o título a Dirceu.
Anivaldo
complementou dizendo que mesmo Dirceu Lindoso mantendo-se clandestino
como membro do Comitê Central do PCB até os anos da anistia política,
ele combinou a condição de resistente político, cheia de riscos e
enormes tensões pessoais, com suas atividades profissionais de professor
da Universidade Gama Filho e colaborador do Museu Nacional e do Museu
Imperial de Petrópolis. “O melhor de tudo é que essa circunstância
dolorosa do exílio, do isolamento forçado, da desestabilização da vida
pessoal, das perseguições políticas não contaminaram a obra nem a pessoa
de Dirceu com amarguras e rancores”, enfatizou o jornalista.
Homenagem acadêmica
O
professor Bruno Cesar Cavalcanti representou o Instituto de Ciências
Sociais na homenagem a Dirceu Lindoso destacando o merecimento do título
doutoral ao ilustre alagoano. “Sua obra e vida são dignas de ser
recontadas inúmeras vezes, e de ser descobertas pelos que ainda a
desconhecem. Uma história comprometida sob diferentes escalas com
Alagoas, com a vida intelectual e social. Hoje, estamos reunidos não
apenas para afirmar, mas para formalizar o reconhecimento institucional
sobre uma trajetória individual relevante para a universidade
brasileira e para o Estado de Alagoas”, enfatizou.
Enfocando
a trajetória de vida de Dirceu Lindoso, principalmente no mundo
acadêmico, Bruno Cesar disse que se na prática da política partidária o
homenageado esteve inequivocadamente alinhado, na prática do
conhecimento, da pesquisa e da reflexão, jamais se posicionou de modo
conservador ou desdenhoso com os diferentes sistemas de ideias. “Essa é,
aliás, uma característica do legítimo espírito científico que o
caracteriza, e que precisa ser levado em conta para evitar-se a
compreensão reducionista de suas contribuições”, frisou o professor.
Emocionado,
Dirceu Lindoso fez um agradecimento especial ao Instituto de Ciências
Sociais pela homenagem recebida, falando rapidamente sobre o tempo de
estudante na Faculdade de Direito de Alagoas, onde concluiu em 1958, o
bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais. Uma das seis faculdades
que originaram a Universidade Federal de Alagoas, em 25 de janeiro de
1965. “Eu hoje estou de pé aqui diante de vocês todos, meus amigos, eu
que vi, quando estudava na velha Faculdade de Direito, esta
Universidade surgir, pequenina, mas resoluta, e com um desejo enorme de
crescer. Conheço seus primeiros passos e dificuldades. Vi seus
alicerces serem construídos a partir de um chão de matas”, frisou
Dirceu.
Ele
ressaltou especificamente a importância de um Instituto de Ciências
Sociais de uma Universidade, por ser plural, pela pluralidade da
história brasileira como povo e da Cultura como nação. “Nossa Alagoas
também é plural. Racialmente plural, etnicamente plural, socialmente
plural. Intelectualmente plural. Nós alagoanos amamos também as
diferenças, as nossas e as dos outros. De hoje em diante serei parte
espiritual dessa Universidade. Muito obrigado por me ter acolhido.
Muito obrigado por me ter aqui. Eu sou apenas aquele que chegou depois.
Eu sou apenas aquele que veio para ficar, com minhas semelhanças
humanas e com minhas diferenças culturais. Eu sou apenas aquele que
veio das fronteiras pernambucanas carregando nas costas uma pesada
herança de diferenças culturais. Eu sou aquele que veio, e está entre
vocês. Muito obrigado a todos vocês”, disse Dirceu Lindoso.
Além
de representantes da comunidade acadêmica, do poder público e
familiares do homenageado, a solenidade contou com a participação dos
professores Otávio Velho, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) e Moacir Palmeira, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Eles foram conferencistas do seminário promovido
pelo ICS, no dia 25 de março, tendo como foco a obra de Dirceu Lindoso,
onde também houve o lançamento do livro “A Razão Quilombola”, uma
coletânea organizada pelo professor Bruno Cavalcanti, editado pela
Editora da Universidade Federal de Alagoas (Edufal).
O
escritor Dirceu Lindoso foi homenageado na última sexta-feira (dia 1º)
com o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de
Alagoas (Ufal), como reconhecimento público da importância de sua obra
literária, histórica e antropológica - condensada em mais de 10 livros
-, além de dezenas de artigos, documentos e ensaios. Textos que, em sua
maioria, trazem histórias sobre Alagoas e suas contradições. Um Estado
desconhecido, de contratempos e contrastes.
“Alagoas
para mim é um largo e belo poema de afeto, desafeto e amor”. É assim
que este historiador alagoano, de 78 anos, define o lugar onde vive.
Dirceu Lindoso costuma falar que Alagoas nasceu das diferenças.
Na
sua trajetória como escritor, traz na bagagem a autoria de 14 livros,
onde mergulha no fascinante mundo das guerras por território, no
surgimento de uma nova terra e no caminho percorrido para
transformar-se no que é hoje: Alagoas.
“Alagoas
é, geograficamente, poético. É o que desejamos e temos. Pode não
satisfazer o gosto de cada um, mas satisfaz o gosto de todos nós. E
somos assim, terrivelmente contraditórios”, diz, entre risadas.
Toda
sabedoria do historiador provém das histórias de seu avô, dos seus
estudos e da busca por conhecer o que ele mesmo determina como
“desconhecido”. E essa sabedoria está exposta em seus livros. Com
tantas obras no currículo, Dirceu Lindoso conhece bem as artimanhas da
literatura. “Escrever é um ato de coragem. O homem que escreve tem a
coragem de dizer”. E Dirceu diz. Fala com facilidade e encanto sobre
sua terra natal, sobre os conflitos enfrentados por uma Alagoas
desconhecida, sobre as diferenças sociais e a dificuldade de se ter
cultura em um Estado onde os ricos estão cada vez mais ricos, e os
pobres cada vez mais pobres.
Nascido
em Maragogi, ele conta as histórias da formação das terras caetés como
se estivesse lá, como uma testemunha ocular. Eis aí sua vocação para
contar as histórias de Alagoas. Ex-aluno do Colégio Batista, de Recife,
e do Colégio Estadual de Alagoas, Dirceu aprendeu diversas línguas, e
em 1981, escreveu sua primeira produção literária, o romance Povoa
Mundo, que ganhou o Prêmio Nacional José Lins do Rego.
A
partir daí, publicou ensaios e poesias. “O verdadeiro escritor sabe
trabalhar a língua para nela escrever. Escrever é encontrar seu jeito
de dizer”, afirma Dirceu. Depois, seguiram-se obras que descrevem com
riqueza de detalhes as mais fantásticas histórias de Alagoas, ao modo
Dirceu de interpretar.
Fonte: www.maceioagora.com.br
Em
breve, o historiador deve lançar O Grande Sertão, pela editora
Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco. A obra é um exame etnológico da
região sertaneja
Alagoas de Dirceu
Foto: Maíra Villela
Por: | JANAYNA ÁVILA - Repórter
Alagoas
é o que se ama e dói. A frase, registrada em livro pelo historiador,
antropólogo, pensador e escritor Dirceu Lindoso, expressa os sentimentos
desse alagoano em relação à sua terra natal. A mesma terra na qual sua
família, originária da Europa e proprietária de diversos engenhos no
litoral norte do estado, se firmou, assistindo e até participando de
episódios que estão inscritos na história da formação do Brasil. A
partir dos relatos de seus avós e da pesquisa criteriosa em arquivos,
aos poucos Lindoso foi construindo uma nova forma de ver e interpretar Alagoas. Dono de uma obra que se debruça sobre lances polêmicos como a Guerra dos Cabanos e as origens do Quilombo dos Palmares, em entrevista à Gazeta o homem que é um dos nossos mais respeitados intelectuais revisita acontecimentos históricos, fala sobre identidade cultural e se pronuncia a respeito de temas atuais como o crescimento da violência e a decadência da indústria da cana-de-açúcar. Confira
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Um dia, quando resolveu escrever sobre Alagoas, Dirceu Lindoso, 77, se surpreendeu: sabia pormenores de fatos que, embora ocorridos há séculos, pareciam frescos em sua memória, como se, de alguma forma, tivesse sido testemunha ocular da história. Nascido em Maragogi, filho de uma família abastada que era proprietária de diversos engenhos no litoral norte do estado, desde cedo teve uma educação voltada à leitura e ao estudo de idiomas. Quando os meninos de sua idade ouviam dos avós histórias de trancoso, os seus, que vieram de países como Portugal e Espanha, narravam-lhe episódios que diziam respeito ao Brasil, como a Guerra dos Cabanos e ainda a trajetória de Zumbi e Ganga Zumba no comando do Quilombo dos Palmares, ocorrências muito “próximas” da região onde nascera.
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Gazeta – Você nasceu em Maragogi e estudou no Recife. Quando veio para Maceió?
Dirceu Lindoso – Vim para Maceió já adulto. Não havia estrada de Maragogi para Maceió. A gente vinha de carro pela beira da praia. Mas para o Recife tinha. Por conta disso, estudei no Colégio Batista do Recife. Era um colégio excelente. Um dia desses um amigo me ligou e disse: “Dirceu, o problema dos filhos das famílias dos usineiros de hoje é a educação, que é um desastre”. E disse que somos exemplo porque meu avô, meu pai, eu e meus irmãos estudamos, nos formamos, fomos estudar no exterior... Meu tio, irmão do meu avô, estudou na Universidade de Oxford, na Inglaterra. E vários primos meus estudaram nos Estados Unidos. Havia um cuidado na educação dos filhos. E eu nunca vi tanta gente com bibliotecas grandes. A [escritora] Rachel
de Queiroz, que morou aqui, dizia que em lugar nenhum viu tantas casas com bibliotecas tão numerosas.
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Filho de família rica, luta contra a ditadura e é preso
Gazeta – Em 1964 você foi preso, acusado de atos comunistas. Como foi isso?
Dirceu Lindoso – Passei dez meses na prisão em Maceió. No dia em que fui libertado, o oficial mandou me chamar e disse que eu teria que ir ao Recife para ver o problema da acusação contra mim. Eu disse: “Eu vou ao Recife e depois vou embora. Não vou ficar aqui em Maceió esperando que vocês façam qualquer coisa contra mim”. Assim que cheguei lá, me apresentaram o que havia. Li e não tinha nada. Era um tal de “ouvi dizer”. Saí de lá e fui embora para o Rio de Janeiro. Já estávamos em 1965. Nessa época eu já era casado, tinha filhos. Quem me deu assistência foi o Rui Palmeira. Fiquei hospedado na casa dele e me dava muito bem com o Moacir, filho dele, que até hoje é meu amigo. É o mais intelectual dos filhos do Rui Palmeira. Fez doutorado em Antropologia na Sorbonne.
E como sua família, que era proprietária de engenhos, viu sua atividade comunista?
A família toda era conservadora, de direita. No começo, meu pai ficou bem zangado. Depois adoeceu, me perdoou e, enquanto eu estava na prisão, morreu.
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BIBLIOGRAFIA
›› Póvoa-mundo – 1981
›› Uma Cultura em Questão: A Alagoana – 1981
›› Mínimas Coisas – 1981
›› A Diferença Selvagem – 1983
›› Liberdade e Socialismo – 1983
›› A Book of Days for the Brazilian Literary Year – 1993
›› Mar das Lajes – 1999
›› A Utopia Armada: Rebeliões de Pobres nas Matas do Tombo Real – 1983 (reeditada em 2005)
›› A Formação de Alagoas Boreal – 2000
›› Interpretação da Província: Estudo da Cultura Alagoana – 2005
›› As Invenções da Escrita – 2006
›› Marená: um Jardim na Selva – 2006
›› O Poder Quilombola – 2007
›› Lições de Etnologia Geral: Introdução ao Estudo dos seus Princípios – 2009
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“Calabar não é uma questão alagoana”
Gazeta – E já que o assunto é identidade, vamos falar do Manifesto Sururu, texto do antropólogo e professor Edson Bezerra. Qual a importância que você atribui ao texto para a discussão sobre identidade?
Dirceu Lindoso – O manifesto, em si, é contraditório. Mas ele tem uma coisa muito boa: recupera a figura da Tia Marcelina, uma pessoa da qual só falavam bem. E o que fizeram com ela foi um assassinato. Critiquei contradições como a comparação que o manifesto faz entre a Tia Marcelina e a Padroeira de Maceió, Nossa Senhora dos Prazeres. Digo isso não pela Nossa Senhora dos Prazeres, mas pela Tia Marcelina. Comparar
algo que é um mito, que ninguém sabe se existiu, com uma escrava, uma mulher. Nossa Senhora foi uma coisa criada. Tia Marcelina, não.
Nessa análise sobre o manifesto, você lança o que chama de “provocação” ao dizer que, ao ter nascido no litoral norte do estado, não é um “sujeito sururu”, e que não é caeté nem em manifesto. Essa provocação tem como função falar de quão vasta e complexa é a cultura alagoana, que não dá para simbolizar nossa identidade numa única imagem?
Isso mesmo. No litoral norte só tem ostra e índios potiguares. Não tem sururu nem caetés. A poesia não tem validade diante da ciência antropológica (risos).
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TRECHO DE O PODER QUILOMBOLA
Penso que Darcy Ribeiro tinha razão quando dizia que foram os negros que expandiram a língua portuguesa no Brasil. Tinham necessidade de falarem uns com os outros e com seus donos. Sua cultura tinha por base a rústica construção de mocambos nas matas úmidas e o plantio de mandiocais, que lhes davam a sobrevivência. A construção de
uma comunidade primitiva de mocambos e mandiocais foi uma tarefa difícil para os primeiros negros fugitivos, que se alimentavam do mel das abelhas silvestres, e, por isso, passaram a ser conhecidos por papa-méis.
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TRECHO DE FORMAÇÃO DE ALAGOAS BOREAL
A documentação sobre nossa história é parca. Um tabelião insano queimou os arquivos de Porto Calvo sob sua guarda. Pouco se sabe hoje o que foi documentalmente a história de Porto Calvo. A história da pars borealis é quase toda antropológica. Só a história antropológica pode salvar parte de nossa memória social. E baseado nessa desdocumentação – e permita-se a mim o neologismo – surge o delírio de alguns, mais preocupados com a projeção de seus desejos e frustrações que com a probidade histórica, imaginando uma Porto Calvo holandesa que jamais existiu. O que sempre existiu foi a Porto Calvo portuguesa desde as origens, que chegou por várias vezes a ser ocupada por tropas da Companhia das Índias Ocidentais. Porto Calvo nasceu portuguesa, portuguesíssima pelo nome e pela língua falada pelos seus povoadores. Nome de aldeia portuguesa do Minho e Alto Douro.
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Na obra de Lindoso, uma nova leitura da nossa história
Gazeta – Vamos falar de seus livros. A Utopia Armada trata da Guerra dos Cabanos, episódio ocorrido na fronteira entre Alagoas e Pernambuco. Apesar de ter ocorrido aqui, é um fato quase desconhecido pelos alagoanos. Por que você resolveu escrever sobre o conflito e o que mais chamou sua atenção nessa história?
Dirceu Lindoso – O meu avô era compadre do filho do Vicente de Paula, o maior chefe dos cabanos, que chamavam de General de Todas as Matas. A família do meu avô ficou do lado dos cabanos. Nem todos os senhores de engenho ficaram contra os cabanos, como muita gente já afirmou. E meu avô me contava muitas coisas sobre essa história. O pai do meu avô ajudou muito os cabanos. Foi uma guerra feita pelos conservadores para trazer Dom Pedro I de volta. Ele tinha ido embora para Portugal. Mas D. Pedro I já tinha morrido e eles não sabiam. Eles colocaram os escravos deles como soldados e enfrentaram o exército de Pernambuco e Alagoas. Os cabanos tomaram Maceió. Essa guerra durou de 1832 até 1850. Foram 18 anos. Levaram o Vicente de Paula para Fernando de Noronha, preso.
A Guerra dos Cabanos seria uma prova de que, há tempos, o povo de Alagoas não seria tranquilo, pacífico?
Tranquilo? Onde? E as guerras de famílias onde ficam hoje Palmeira dos Índios, Viçosa, Arapiraca? Uma guerra terrível. No sertão também. Muitos conflitos. O Octávio Brandão dizia que a família dele tinha engenhos, era rica, mas os parentes mais antigos dele eram pobres: pequenos comerciantes e empregados de fazenda. E foi depois dessas guerras todas que esse pessoal ficou rico. Foi aí que surgiram essas fortunas de Viçosa.
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O historiador fala sobre o futuro da economia alagoana
Gazeta – Como você trabalha sempre com fatos distantes, quando você está realizando o levantamento de dados para um trabalho não fica receoso de estar recorrendo a uma versão deturpada ou falsa de um episódio?
Dirceu Lindoso – Em geografia, não. Os mapas eram feitos por cientistas. Não havia como estarem errados, até porque eram usados. Agora, quando o documento é sobre algum acontecimento, sim, por conta da interpretação do acontecimento, o sentido que se dá ao fato. Mas o que faço não é história nem etnologia. É etnohistória. A história que usa da etnologia para desvendar. Eu estou desmontando os museus de história. O modelo de história de Alagoas, para mim, não servia. É a história oficial. Um modelo que vinha se repetindo.
E sobre os índices de violência urbana no Estado: você tem pensado sobre isto?
Antes aqui só tinha briga de família. Hoje mais não. É um problema social. Pobreza. Querem fundar em Alagoas duas usinas atômicas. Vai ser a saída para Alagoas. Vai precisar de tecnologia e mão-de-obra. Faria surgir uma nova classe de profissionais altamente qualificados. A indústria têxtil acabou. Era forte, mas acabou. Hoje o problema é a cana-de-açúcar. A China e outros países não querem mais saber de açúcar nem de álcool. Querem saber de celulose e aqui se queima celulose. A celulose é retirada da palha da cana. A maior riqueza de Alagoas eles queimam.
Fonte: http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/
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No link abaixo, entrevista com o historiador Golbery Lessa sobre a identidade alagoana,
o capitalismo do estado e as peculiaridade do espaço político local.
Artigo:A Estrutura fundiária de Alagoas na segunda metade do século XX
No
artigo abaixo, que possui 25 páginas, procuramos refletir sobre a
estrutura fundiária de Alagoas na segunda metade do século XX por meio
de uma análise quantitativa e qualitativa dos dados constantes no censos
agropecuários organizados pelo IBGE. O principal objetivo é demonstrar
que é falsa a ideia de que a grande propriedade ocupa a maior parte da
área agricultável do estado, apesar de ter um poder econômico e
político muito maior do que os pequenos e médios proprietários rurais.
Abaixo vai uma amostra do artigo e um link para o seu texto integral.
Golbery Lessa (Editor de A Voz do Povo)
1. As linhas gerais da estrutura fundiária
Na
segunda metade do século XX, a concentração de renda no meio rural
alagoano continuou aumentando e mantendo o seu histórico relacionamento
com a tendência majoritária de concentração da propriedade da terra. No
entanto, caso observemos uma série histórica de dados relativos às
microrregiões e mesorregiões do Estado no período, perceberemos que
apenas no Leste Alagoano a concentração fundiária constitui uma variável
decisiva, ou seja, a taxa de concentração da terra é impulsionada
basicamente pela região canavieira, o que acaba encobrindo a baixa
incidência do latifúndio e o grave problema do minifúndio em outras
partes do Estado. No Agreste e no Sertão, a tendência mais importante
das décadas consideradas consiste na concentração de renda por meio de
mecanismos de crédito e comercialização, associados a uma estrutura
fundiária baseada no minifúndio e nas pequenas e médias propriedades.
As
linhas gerais da estrutura fundiária de Alagoas daquele período podem
começar a ser inferidas, em suas dimensões mais gerais, a partir do
seguinte gráfico: (...)
Ver o artigo todo, em PDF, no seguinte link: https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=explorer&chrome=true&srcid=0B7m_3fOW2JG_ODJkMWZiZTUtYWRiMy00MTg3LWFhMTEtZjdmYzgwZjdjNjBi&hl=en_US Por
um lapso nosso, a ano de conclusão do artigo, posto na sua última
linha, ficou como sendo 2002, quando na realidade deveria constar o ano
de 2012.
Fruição
para liberais e social-democratas, constrangimento para nós marxistas
que resistimos às ondas de choque, essas "conversões" aparecem como
prova irrefutável da inviabilidade teórica e prática do socialismo.
Ninguém melhor do que parte significativa da vanguarda revolucionária,
agora desiludida, para colocar, de acordo com o costume ocidental, os
primeiros torrões de terra sobre a urna fúnebre do "velho" pensador
alemão.
E. J. Hobsbawn – Um Olhar Moderado sobre o 'Século dos Extremos'
por Golbery Lessa
Em
quadras históricas como a que vivemos, marcadas pelo avanço da
perspectiva e das práticas contra-revolucionárias, assiste-se ao quadro
tragicômico da "conversão" de conhecidos intelectuais comunistas, ou
seja, contempla-se a sua abjuração, aberta ou velada, dos princípios
teóricos que fundamentam a propositura de revolução social.
O historiador inglês E. J Hobsbawn |
Os
escritos desses novos poetas da ordem, como os papéis especulativos na
bolsa, valorizam-se com uma rapidez vertiginosa, proliferam sob a
proteção de inúmeras instâncias estatais, e passeiam lépidos, de mão em
mão, ocultando a sua natureza precária. Tornam-se célebres não por
acrescentarem um erro original ao pregão do proselitismo, mas por sua
exemplaridade.
Apontar
apenas para a fragilidade ética dos indivíduos "convertidos" eqüivale a
abandonar o método dialético, o que também acontece quando se sublinha
de modo exclusivo as fraquezas teóricas e o contexto sócio-cultural. É
necessário, pois, como tem demonstrado a melhor análise marxista sobre
a intelligentsia – tendo Lukács e Gramsci à frente – determinar em
cada caso as relações dinâmicas e complexas entre a totalidade social e
as possibilidades éticas e teóricas de cada indivíduo.
Os
últimos anos da trajetória teórica do conhecido historiador inglês E.
J. Hobsbawn vêm sendo marcados, segundo vários autores1, pelo seu
paulatino e substancial afastamento em relação à propositura da
revolução socialista. Apesar disso, essa metamorfose intelectual não
tem sido, ao nosso ver, devidamente sublinhada pelos marxistas
brasileiros. Obviamente, seria muito mais positivo se estivéssemos
festejando grandes desenvolvimentos na historiografia revolucionária.
Porém, não podemos fazê-lo, porque está dando-se justamente o
contrário.
O
melhor caminho não é calar-se diante do fato, mas tentar explicá-lo e
agir no sentido de sua superação. Essa atitude se justifica ainda mais
no momento presente, no qual as idéias do autor em questão,
principalmente àquelas apresentadas em seu livro A Era dos Extremos,
vêm tendo um sucesso considerável e sendo apresentadas pelo próprio e
por muitos outros, como coerentes com o método e a perspectiva de Marx e
como a quintessência do caminho teórico e político mais adequado.
O
presente texto tem o intento de demonstrar a tese de que o historiador
inglês abandonou, há alguns anos, a propositura da revolução social
não por oportunismo ou qualquer outro defeito ético, mas
fundamentalmente porque as suas bases teóricas e metodológicas nunca
foram suficientemente coerentes com a sua posição revolucionária. Num
certo momento de sua trajetória teórica, no seio de um determinado
contexto histórico, essa antinomia finalmente se resolveu através da
troca da revolução pela social-democracia e não do câmbio dos seus
fundamentos teórico-metodológicos insuficientes pelo método marxiano.
Esse desfecho não era uma necessidade inelutável, poderia ter-se dado o
inverso com outro personagem ou com outras circunstâncias.
Acreditamos
que essa tese se aplica à grande maioria dos ex-marxistas
contemporâneos. Porém, a nossa proposta é ir além dessa determinação
geral, que é imprescindível mas insuficiente. Tentaremos perceber as
singularidades da trajetória de Hobsbawn e relacioná-las com àquelas
determinações gerais que perpassam tanto o seu caso como o de inúmeros
outros ex-revolucionários, tentando apreender a história do seu
pensamento em sua particularidade.
I - As Aventuras de Asterix na Corte do rei Artur
O
método historiográfico utilizado por Hobsbawn, em seu recente livro A
Era dos Extremos, é essencialmente o mesmo de suas outras obras muito
conhecidas e claramente se aproxima do método da chamada escola
francesa dos annales, a qual teve como principais representantes Marc
Bloc, Lucien Febvre e Ferdinad Brudel. A única diferença significativa
reside no fato de que Hobsbawn, ao contrário desses três autores, não
se exime de tematizar as questões relativas ao Estado e as intricadas
lutas políticas em torno do poder.
A
preocupação com a chamada "longa duração" é patente: as obras mais
famosas do autor abarcam nada menos do que todos os aspectos – menos o
filosófico, o que é sintomático – e todos os períodos daquilo que se
convencionou chamar de modernidade, isto é, desde a Revolução Francesa
até o presente. outros traços de inegável proximidade com os annales
são um indisfarçado empirismo, o desprezo pela filosofia e uma
fortíssima tendência a não aceitar a esfera das relações sociais de
produção como momento predominante do ser social e de sua história.
Esses
gauleses desejavam depurar a historiografia das suas conseqüências
revolucionárias, porém com o cuidado de não caírem no factualismo. Por
isso retiveram as noções de totalidade e da importância causal da
economia de uma maneira extremamente esgarçada e impura, o que
transubstanciou a totalidade em um conjunto de partes justapostas e que
– sem perceberem claramente – se paralisam mutualmente e usurpou das
relações sociais de produção o caráter de momento predominante dos
outros complexos sociais2.
Uma
totalidade sem momento predominante, em que as partes "interagem de
maneira recíproca" de modo inteiramente equilibrado, apenas pode levar à
imobilidade eterna, à uma equação de soma zero. Se tudo interage com
tudo na mesma proporção, tudo anula as transformações de tudo. Se a
religião muda para um lado, a economia para outro, a política para um
terceiro etc., ou a sociedade se esfacela em vários pedaços, ou então
as várias partes têm que abandonar a mudança e voltar para a situação
inicial de harmonia.
Restou,
então, para os annales buscar o impulso à mudança "de fora", do
"exterior" das formações sociais estudadas. Assim, Marc Bloc inicia o
seu Sociedade Feudal com as invasões dos nórdicos e magiares à Europa
da "idade das trevas", recém saída do Império Romano. Sua história
feudal será a história da síntese ente elementos romanos e bárbaros. O
movimento foi encontrado finalmente, já que sem movimento não há
inteligibilidade nem aparência de inteligibilidade possível. Outro
recurso será a história comparada, que permite o movimento em nível
"mental" provindo da "comparação" de uma sociedade com outra análoga,
como no seu livro em que compara o campo francês com o inglês. A "longa
duração" é, nessa escola, quase sempre, "extenso espaço", onde
coexistem várias formações sociais, as quais entram em contato com o
tempo, o que trás a idéia de movimento. O "mediterrâneo" é palco de
inúmeras formações sociais, que entram em contato e choque ...
É
claro que se trata de um mero truque: ou a contradição nasce do
desequilíbrio, da desarmonia entre os complexos sociais ou não pode
surgir do nada. A explicação sobre as contradições entre formações
sociais não substitui a explicação sobre suas contradições internas, e
essas determinam aquelas. Os bárbaros não invadiriam o império romano
se esse não se fraturasse interiormente.
Os
títulos das obras de Hobsbawn mais conhecidas e importantes demonstram
por si a opção pela longa duração: A Era das Revoluções, A Era do
Capital, A Era dos Impérios, Nações e Nacionalismo, A História Social
do Jazz, Mundos do Trabalho, Os Rebeldes Primitivos etc.
Em
Os Revolucionários e Políticas para uma Esquerda Racional, que reúnem
inúmeras intervenções nos órgãos de imprensa, o autor analisa tempos
curtos: conjunturas eleitorais, guerras localizadas, golpes de Estado
etc. Nessas obras, fica patente um significativo empirismo. Sem a longa
duração fica mais clara a insuficiência da análise. A dinâmica, nesse
caso, é dada pela luta de classes, mas se resume a um olhar
superficial, com forte tendência culturalista3.
Fazendo
um balanço geral da obra do autor, pode-se notar que esse busca
superar o economicismo típico da Segunda Internacional e do movimento
estalinista. Porém, não há, por outro lado, uma superação positiva,
através da compreensão profunda do complexo da economia e do seu
caráter predominante. A tendência dominante do autor inglês é
"afrouxar" a determinação econômica dos outros complexos sociais. A
Filosofia é abandonada desde o início, o que impede completamente
qualquer possibilidade de solução satisfatória. Trata-se de um processo
particularmente perverso e amplamente conhecido: o afrouxamento dos
princípios básicos se dá, necessariamente, em paralelo com a aquisição
de conceitos de outras perspectivas.
O
resultado, a "flexibilização" do pensamento do autor, aparece para ele
mesmo – e para outros – como um ganho efetivo de capacidade de
compreensão da realidade. Esse primeiro "ganho" de capacidade
heurística estimula um novo "afrouxamento" e um novo "ganho" e, assim,
sucessivamente, sem que a vítima perceba, uma bela manhã se descobre
sentada à direita da rainha da Inglaterra!
A
recorrência ao conceito de classe e de luta de classes não tiram o
autor de suas dificuldades, dado que tais conceitos, no grau de
determinação em que são utilizados, não são suficientes para estruturar
uma compreensão dialética da realidade. O seu conceito de consciência
de classe, por exemplo, é bastante empirista, o que vai contribuir para
uma visão extremamente culturalista da história do movimento operário.
II - O Retorno Eterno ao 'Eterno Retorno'
O
livro A Era dos Extremos teve uma acolhida extremamente favorável no
Brasil. Tem sido vendido em verdadeiras pencas como genuíno
Best-Seller. Trechos da obra passaram a ser citados como sentenças
oraculares na academia, no Congresso Nacional, nos chamados movimentos
sociais e mesmo na vida cotidiana por pessoas das mais díspares
posições ideológicas e políticas.
Essa
"unanimidade" relativa a um autor supostamente marxista nestes "tempos
sem sol" teria que levantar desconfianças naqueles que ainda "pensam
por si mesmos", o que não se deu na dimensão que esperávamos. A análise
desse livro tem a potencialidade de revelar muito sobre a história
intelectual do seu autor, principalmente porque é nele que a referida
antinomia entre método e posição política se resolve. Além disso, pode
concorrer para "dessacralizar" o conjunto de suas teses verdadeiramente
medíocres relativas à história do século XX.
O
livro comporta todos os problemas metodológicos das obras anteriores
do autor. Ao nosso ver, o seu sucesso reside nas conclusões pífias e
reformistas que resultam do desenvolvimento conseqüente do método
utilizado e na pretensão de explicar todos os aspectos do século XX num
único livro, o que se harmonizou facilmente com o gosto da reacionária
e mentalmente apressada opinião pública contemporânea. O sucesso de
público e de crítica do livro se originou, contraditoriamente, no
fracasso teórico do autor, na sua incapacidade de compreender o século
XX. Resultou do fato de que Hobsbawn se enredou no labirinto da
aparência e produziu uma visão reificada que se adequou perfeitamente
ao senso comum deste final de século.
Poderíamos
demonstrar as fragilidades teóricas do livro e a grande distância em
que o seu método se encontra do método marxiano a partir de algumas das
inúmeras questões tratadas ao longo do texto, como por exemplo,
1) as causas e as conseqüências dos grandes massacres do século XX;
2) a conceituação do movimento fascista;
3) a relação entre o desenvolvimento econômico do século XX e os seus outros complexos sociais;
4) o mundo das artes neste século;
5) as modificações no mundo do trabalho nas duas últimas décadas;
6)
a relação entre o público e o privado etc. Porém, ateremo-nos à
primeira questão, não só pelas dimensões do presente texto, mas também
porque acreditamos que é o suficiente para os nossos objetivos.
O
capítulo 1 do livro de Hobsbawn, intitulado A Era da Guerra Total, no
qual ele analisa as duas grandes guerras mundiais, é fundamental para
compreendermos o pensamento do autor no que se refere às causas e as
conseqüências dos massacres do século XX.
Ao
longo das trinta páginas do capítulo referido, o autor fica muito
longe de cumprir o que promete, ou seja, não consegue explicar
satisfatoriamente porque aconteceram as duas guerras mundiais, porque
esses conflitos se diferenciaram dos anteriores, e quais foram as
conseqüências históricas advindas deles. Isso ocorre essencialmente
pelo profundo empirismo utilizado na análise dos fatos, que é de tal
ordem que dificulta inclusive, para quem ler, a identificação das
"teses" e da "teoria" que está sendo explicitada no texto. O leitor é
obrigado a investir-se da função de arqueólogo e separar com muito
esforço, após vários esquadrinhamentos, a "terra fatual" dos pequeninos
"artefatos teóricos" minimamente significativos.
Para
se ter uma idéia do vazio conceptual basta sublinhar o fato de que a
palavra "capitalismo" aparece uma única vez, na penúltima das trinta
páginas do capítulo, assim mesmo numa alusão ao que será tratado numa
próxima seção do livro. Certamente, trata-se de uma façanha inédita:
explicar as duas grandes guerras interimperialistas sem utilizar o
conceito essencial para entender a sociedade na qual se deram.
Quem
procurar ler o referido capítulo notará que Hobsbawn procura explicar o
aumento da dimensão dos massacres no século XX a partir da
disseminação de uma cultura da violência e do desprezo à vida dos
outros seres humanos, essa cultura teria sido gerada antes de tudo pela
Primeira Guerra Mundial, a qual teria acostumado a população européia,
por um lado, a ser indiferente aos imensos banhos de sangue e, por
outro, a ser tão firmemente pacifista que não se dispunha a enfrentar
atentados violentos à própria civilidade, e criou uma massa de
veteranos de guerra prontos para guiar os seus povos a renovadas
hecatombes. Uma das principais causas da reprodução desse "imaginário"
da indiferença e da brutalidade foi a invenção de meios assépticos e
impessoais de matar, como o bombardeiro e o rifle de longo alcance, os
quais facilitariam a aceitação da violência a partir de desenvolverem a
impessoalidade na guerra. Além disso também contribuiu muito o caráter
"popular" dessas guerras, que obrigou os líderes políticos a
mobilizarem a massa através da demonização dos seus inimigos. As novas
gerações teriam apreendido esse "imaginário" com as antigas e passado
adiante ...
Salta
aos olhos do leitor o fato de que o historiador inglês procura dar uma
explicação basicamente culturalista para o aumento nas dimensões dos
massacres. O complexo da economia sempre aparece ao lado ou subordinado
às esferas da subjetividade e da política, e quando aparece como
determinante é de uma maneira vaga e esquemática.
Assim,
por exemplo, o autor explica a amplitude e radicalidade da Grande
Guerra – que desencadearia toda a "cultura da brutalidade" – pelo fato
de que os interesses econômicos e políticos das grandes potências
imperialistas eram radicalmente excludentes. É interessante sublinhar
que, nessa tentativa de explicar o "motor inicial" da Grande Guerra e,
consequentemente, da queda do grau de civilidade no século XX, a
"economia" e a "política" aparecem fundidas numa identidade completa –
"Na Era Imperialista a política e a economia se haviam fundido" –, o
que demonstra mais uma vez a recusa do autor inglês a perceber o
complexo da economia como momento preponderante da totalidade social. A
verdadeira "causa primeira" da Grande Guerra aparece como se fosse a
rivalidade "geo-histórica" das potências européias, o "movimento", como
na escola dos annales, é encontrado no "extenso espaço" e não na
natureza particular da economia dos países beligerantes.
Isso
fica novamente patente quando o autor procura explicar as principais
causas da Segunda Guerra: "Talvez a guerra seguinte (a Segunda Guerra)
pudesse ter sido evitada, ou pelo menos adiada se houvesse restaurado a
economia pré-guerra como um sistema global de prósperos crescimento e
expansão econômicos. Contudo, após uns poucos anos, em meados da década
de 1920, nos quais se pareceu ter deixado para trás a guerra e
perturbação pós-guerra, a economia mundial mergulhou na mais drástica
crise que conheceu desde a Revolução Industrial. E isso levou ao poder,
na Alemanha e no Japão as forças políticas do militarismo e da extrema
direita".
O
historiador não faz nenhuma menção às profundas diferenças entre o
capitalismo clássico da França, Inglaterra e Estados Unidos e o
capitalismo retardatário da Alemanha, Japão e Itália, diferenciação que
deveria ser base do entendimento das causas da guerra, já que foi o
caráter retardatário das "Potências do Eixo" que explica tanto a
possibilidade dos fascistas chegarem ao poder como a inevitabilidade do
conflito. Para Hobsbawn, todo o mal-entendido poderia ter sido evitado
se a economia mundial não tivesse entrado em crise. O que demonstra
mais uma vez a sua maneira esquemática de entender a relação entre a
economia e os demais complexos sociais. O autor fica impossibilitado de
perceber que a única maneira de evitar a guerra teria sido a vitória
do movimento revolucionário nos países de capitalismo retardatário,
principalmente na Alemanha, vitória que era uma possibilidade real e
que foi perdida por inúmeros erros político-ideológicos.
A
"causa primeira" do aparecimento da "cultura da brutalidade" teria
sido, para o autor, a Primeira Guerra Mundial, e esse acontecimento
teria sido determinado por um contexto geo-histórico que contrapôs de
maneira radical os interesses políticos e econômicos das grandes
potências européias. Ou seja, para Hobsbawn, no início de todo processo
esteve presente interesses econômicos e políticos muito objetivos,
mesmo igualando o complexo da economia ao complexo da política como
esfera predominante, isto é, mesmo fundindo relações econômicas e
relações políticas num mesmo todo indiferenciado, o historiador parte
do que com alguma boa vontade poderíamos chamar de "plano da
objetividade".
Porém,
se esse "plano da objetividade" produz o movimento subjetivo
"ampliação da cultura da brutalidade", esse mesmo "plano da
objetividade" não está presente, segundo o texto do autor, na
"reprodução" do referido movimento subjetivo. O complexo da cultura se
autonomiza e passa a se autoalimentar e reproduzir, apartando-se
completamente de seu produtor "plano da objetividade". A autonomia
absoluta da cultura não fica ainda mais patente porque o autor faz o
"plano da objetividade" intervir mais uma vez através de mais outro
acontecimento econômico-político: a Segunda Guerra Mundial. Com mais
essa alavanca "objetiva" a autonomia absoluta da cultura aparece menos
claramente e se torna mais aceitável, mas de nenhuma forma é
efetivamente diminuída ou superada.
Por
fim, após esse percurso que fomos obrigados a trilhar no interior do
texto de Hobsbawn, explicitaremos, sem ir muito além dos próprios dados
fornecidos pelo autor, mas procurando utilizar o método dialético,
qual deveria ser a explicação adequada do aumento da amplitude dos
massacres no século XX e a sua relação com as duas grandes guerras
mundiais.
A
escala "industrial" das guerras e de outros massacres perpetrados no
século XX devem ser explicados pela radical complexificação, integração
e concentração das economias capitalistas. Em economias com essas
características, os danos causados aos inimigos em qualquer embate
bélico são, necessariamente, astronômicos se comparados ao passado em
termos absolutos. Antes da radical urbanização e industrialização,
quando as economias dos beligerantes eram essencialmente agrícolas e
pouco integradas, as guerras – sejam na Europa ou em qualquer outra
parte do mundo minimamente desenvolvida – tinham que ser decididas
principalmente entre os militares, buscava-se apenas causar um dano
decisivo no exército ou na esquadra adversária.
Por
outro lado, é importante perceber que esses danos – essencialmente
militares, mas não apenas – se eram pequenos se comprados aos atuais,
para aquelas sociedades não o eram. Não havia parques industriais,
entroncamentos ferroviários, aeroportos, centros
administrativos-comerciais nevrálgicos param serem destruídos, nem uma
população urbana suficientemente concentrada a partir da qual se
poderia destruir parte significativa da força de trabalho e também
espalhar o pânico, o desespero e a desorganização. Antes das primeiras
décadas do século XX, não havia inclusive os meios bélicos capazes de
destruir em grande escala, os quais obviamente apenas se tornaram
possíveis com o desenvolvimento industrial.
Diante
da inevitabilidade da guerra de massas e, consequentemente, das
grandes carnificinas, os indivíduos que viveram e vivem durante o
século XX foram obrigados a adaptar o seu espírito a essa realidade,
construíram estruturas psicológicas – conscientes e inconscientes – e
morais que, se indiscutivelmente são em grande parte estranhadas,
possibilitam a sobrevivência em situações radicalmente desumanas e
desestruturantes. Por outro lado, os inúmeros progressos materiais
trazidos pelo século XX possibilitam o desenvolvimento positivo de
muitas dimensões da subjetividade, como por exemplo, a liberação da
mulher, a chamada "revolução sexual", o arrefecimento da religiosidade
etc.
A
ampliação da "cultura da brutalidade" se deu paralelamente à ampliação
da "cultura da humanização". A coexistência dessas duas culturas
contraditórias expressa, certamente, a coexistência de condições e
possibilidades econômicas também contraditórias.
A
intensificação da socialização do homem, "o recuo das barreiras
naturais" – processo sublinhado por Marx e Lukács – é necessariamente
contraditório. O progresso histórico sempre coexiste e implica em
muitos momentos de regressão. E mais: a própria potencialização do
progresso implica a intensificação das possibilidade do regresso. Isso
não significa que exista efetivamente a "lei do eterno retorno" na
história humana, que não possamos visualizar uma escala de progresso
significativa – mesmo que não linear – se compararmos os diversos modos
de produção. Se levarmos em conta as dimensões históricas mais
universais do gênero humano – a saber: o trabalho, a socialidade, a
universalidade, a consciência e a liberdade –, teremos a possibilidade
de perceber, por exemplo, que a sociedade capitalista possui um grau
superior de progresso, de desenvolvimento dessas dimensões
fundamentais, ao da sociedade medieval. Isso não significa que essa
superioridade geral do capitalismo não possa, por si mesma, tornar
alguns dos aspectos desse mesmo modo de produção mais desumanos, mais
regressivos, do que os aspectos análogos no feudalismo. Assim, por
exemplo, a capacidade produtiva na sociedade burguesa é infinitamente
superior a da sociedade feudal, o que implica numa diferença muito
grande na qualidade de vida, longevidade etc., porém, por outro lado,
implica também numa grande diferença no que se refere à autodestruição:
a feudalidade era incapaz de destruir todo o gênero humano, a
sociedade regida pelo capital adquiriu as condições de realizar essa
possibilidade inominável.
O
pessimismo de Hobsbawn, que perpassa não apenas o primeiro capítulo,
mas todo o seu livro, surge do fato de que o autor é incapaz de
entender esse complexo movimento contraditório que envolve o progresso e
o regresso, e fez uma opção emocional – não fundamentada – pelo
ceticismo (anteriormente, a referida incompreensão convivia com uma
opção também emocional pelo otimismo).
Como
já afirmamos, o culturalismo presente nesse livro perpassa todas as
obras mais conhecidas do autor. Porém, é apenas a partir desse trabalho
que tal perspectiva teórico-metodológica leva Hobsbawn a conclusões
anti-humanistas e anti-socialistas. A convicção socialista do autor
tinha como base um arcabouço teórico-metodológico incompatível com essa
mesma convicção. A derrocada do "socialismo real', o refluxo do
movimento operário nos anos oitenta e as substanciais modificações
societárias desse fim de século, colocaram abaixo o seu edifício
comunista carente de um alicerce comunista.
III - Os Belos Veleiros Vitorianos
O
historiador inglês repete, como já assinalamos, na sua extensa
carreira, os mesmos erros cometidos pela escola do annales e por muitos
outros que não foram capazes de entender o método dialético, ou seja,
aparta a história da filosofia e se recusa a perceber as relações
sociais de produção como momento predominante no complexo social.
Interdita, assim, a possibilidade de ir à raiz da realidade social.
Navega o oceano científico com a intrepidez de um belo veleiro
vitoriano, mas naufraga completamente. Os extremos de progresso e
regresso e a luta extremada entre o capital e o trabalho que marcaram o
século XX, requerem, para serem compreendidos, um olhar extremado,
radical, o qual somente tem a possibilidade de possuir quem escolhe o
lado do progresso e do trabalho. Nenhum pretenso termo-médio, nenhum
tipo de olhar moderado é suficiente. Caso houvesse compreendido algum
dia a maneira teoricamente adequada de traduzir as possibilidades
cognitivas postas pelo trabalho, Hobsbawn hoje não seria um espécie de
tradutor da "linguagem" das mercadorias, não teria uma opinião tão
desesperançada sobre o gênero humano e certamente poderia adotar como
divisa de seu veleiro vitoriano os seguintes versos de Hamlet: "que
obra-prima é o homem! Como é nobre pela razão! Como é infinito em
faculdade! Em forma e movimentos, como é expressivo e maravilhoso!"
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1
- Ver, por exemplo, o norte-americano Vicente Navarro e o húngaro I.
Mészàros. As opiniões do primeiro podem ser encontradas num texto sobre
o Welfare State publicado na revista Lua Nova (n° 24), as observações
críticas do segundo foram proferidas no Colóquio sobre Lukács,
realizado em Maceió, Alagoas, em outubro de 1996.
2
- No que se refere às principais características da chamada "escola
dos annales" seguimos de perto as formulações do livro Á História em
Migalhas, de F. Dossé, Ensaio, 1994, SP. Acrescentamos apenas uma maior
ênfase na demonstração das diferenças entre o método dessa escola e o
método marxiano.
3
- Esse culturalismo é baseado numa interpretação subjetivista de
Gramsci; a consciência de classe é confundida com o imaginário popular
referente às lutas entre as classes, principalmente no seu aspecto
político. Não se percebe, como Lênin percebeu, que a consciência de
classe dos trabalhadores é a elaboração científica feita pelos
intelectuais revolucionários das condições objetivas da massa
trabalhadora e de seus interesses históricos, e não a média das
intuições individuais dos trabalhadores.
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Caro
Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista
Práxis número 10, Outubro de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.
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