terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Dirceu Lindoso

Dirceu Lindoso é o mais novo Doutor Honoris Causa da Ufal

Homenagens acadêmica e política marcaram a solenidade que outorgou o título de Doutor Honoris Causa ao jornalista, tradutor, poeta, romancista, antropólogo, etnólogo e historiador alagoano Dirceu Acioli Lindoso. O título foi solicitado pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) e aprovado por unanimidade pelo Conselho Universitário. A sessão solene na sexta-feira, 25 de março, no Espaço Cultural, foi presidida pela reitora Ana Dayse Dorea. O momento artístico-cultural ficou a cargo do Corufal e do jovem pianista Eric John, do curso de Música e integrante da Orquestra de Câmara da Universidade Federal de Alagoas.

Dirceu Lindoso é conduzido pelos membros do Consuni
Diana Monteiro – jornalista
“Homem de palavras e de ação. Qualidade de ser humilde em sentido pleno e qualidade de ser generoso em amplitude e doação. Profundo conhecedor, desbravador e disseminador da cultura e do pensar sobre Alagoas, sobre nossa gente, sobre nossa aura. Este é o Doutor Dirceu Lindoso que temos a honra de homenagear. Ao completar 50 anos, a Ufal reverencia seu passado com olhos voltados para o futuro”, destacou a reitora Ana Dayse ao homenagear o alagoano de Maragogi,  Dirceu Lindoso.
A solenidade foi presidida pela reitora Ana DayseRetratando rapidamente a trajetória de Dirceu, a reitora Ana Dayse citou uma famosa frase do homenageado, “Alagoas é aquilo que se ama, e aquilo que se dói”, e frisou o brilhantismo dele ao narrar, através de algumas obras, parcela da história do nosso Estado em lembranças dos engenhos do litoral norte alagoano, ou sobre a Guerra dos Cabanos , Quilombo dos Palmares, ou sobre Zumbi e Ganga Zumba.
“Nesta data, por meio desta titulação, não só a Universidade Federal de Alagoas, como toda a sociedade alagoana fazem justiça. Justiça porque há muito que o nome de Dirceu Lindoso está inscrito no panteão de nossos homens e mulheres de saber. A oferta deste título também é um gesto de reparação que o Estado Brasileiro realiza”, frisou Ana Dayse.
Dirceu Lindoso é conduzido pelos membros do ConsuniAinda destacando a realidade dura e desumana do cárcere e da prisão de Dirceu nos tempos da ditadura militar, Ana Dayse fez um pedido de desculpas ao homenageado: “Eu, como reitora de uma Universidade Federal, em nome do Estado Brasileiro peço desculpas pelas atrocidades que nossa ditadura militar cometeu contra sua integridade física. Atrocidades e privações que em nada comprometeram sua integridade moral. Por isso o senhor é ainda maior”, destacou a reitora.
Homenagem política
O jornalista Anivaldo de Miranda, representando o Diretório Nacional do Partido Popular Socialista (PPS), do qual Dirceu Lindoso é presidente de honra no Estado, enfatizou a trajetória política do homenageado como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), desde sua prisão em Alagoas, em 1964, ao seu exílio no Rio de Janeiro. “Sem dúvida estamos todos vivenciando hoje um dia muito especial. O dia em que o povo de Alagoas começa a saldar uma grande dívida de gratidão. E o que é mais importante: é que começa a saldar essa dívida pela maneira mais apropriada e através do conduto mais legítimo para fazê-lo”, destacando a iniciativa da Ufal em outorgar o título a Dirceu.
Anivaldo complementou dizendo que mesmo Dirceu Lindoso mantendo-se clandestino como membro do Comitê Central do PCB até os anos da anistia política, ele combinou a condição de resistente político, cheia de riscos e enormes tensões pessoais, com suas atividades profissionais de professor da Universidade Gama Filho e colaborador do Museu Nacional e do Museu Imperial de Petrópolis. “O melhor de tudo é que essa circunstância dolorosa do exílio, do isolamento forçado, da desestabilização da vida pessoal, das perseguições políticas não contaminaram a obra nem a pessoa de Dirceu com amarguras e rancores”, enfatizou o jornalista.
Homenagem acadêmica
O professor Bruno Cesar Cavalcanti representou o Instituto de Ciências Sociais na homenagem a Dirceu Lindoso destacando o merecimento do título doutoral ao ilustre alagoano. “Sua obra e vida são dignas de ser recontadas inúmeras vezes, e de ser descobertas pelos que ainda a desconhecem. Uma história comprometida sob diferentes escalas com Alagoas, com a vida intelectual e social. Hoje, estamos reunidos não apenas para afirmar, mas para formalizar o reconhecimento institucional sobre uma trajetória individual relevante para a universidade brasileira e para o Estado de Alagoas”, enfatizou.
Enfocando a trajetória de vida de Dirceu Lindoso, principalmente no mundo acadêmico, Bruno Cesar disse que se na prática da política partidária o homenageado esteve inequivocadamente alinhado, na prática do conhecimento, da pesquisa e da reflexão, jamais se posicionou de modo conservador ou desdenhoso com os diferentes sistemas de ideias. “Essa é, aliás, uma característica do legítimo espírito científico que o caracteriza, e que precisa ser levado em conta para evitar-se a compreensão reducionista de suas contribuições”, frisou o professor.
Emocionado, Dirceu Lindoso fez um agradecimento especial ao Instituto de Ciências Sociais pela homenagem recebida, falando rapidamente sobre o tempo de estudante na Faculdade de Direito de Alagoas, onde concluiu em 1958, o bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais. Uma das seis faculdades que originaram a Universidade Federal de Alagoas, em 25 de janeiro de 1965. “Eu hoje estou de pé aqui diante de vocês todos, meus amigos, eu que vi, quando estudava na velha Faculdade de Direito, esta Universidade surgir, pequenina, mas resoluta, e com um desejo enorme de crescer. Conheço seus primeiros passos e dificuldades. Vi seus alicerces serem construídos a partir de um chão de matas”, frisou Dirceu.
Ele ressaltou especificamente a importância de um Instituto de Ciências Sociais de uma Universidade, por ser plural, pela pluralidade da história brasileira como povo e da Cultura como nação. “Nossa Alagoas também é plural. Racialmente plural, etnicamente plural, socialmente plural. Intelectualmente plural. Nós alagoanos amamos também as diferenças, as nossas e as dos outros. De hoje em diante serei parte espiritual dessa  Universidade. Muito obrigado por me ter acolhido. Muito obrigado por me ter aqui. Eu sou apenas aquele que chegou depois. Eu sou apenas aquele que veio para ficar, com minhas semelhanças humanas e com minhas diferenças culturais. Eu sou apenas aquele que veio das fronteiras pernambucanas carregando nas costas uma pesada herança de diferenças culturais. Eu sou aquele que veio, e está entre vocês. Muito obrigado a todos vocês”, disse Dirceu Lindoso.
Além de representantes da comunidade acadêmica, do poder público e familiares do homenageado, a solenidade contou com a participação dos professores Otávio Velho, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Moacir Palmeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eles foram conferencistas do seminário promovido pelo ICS, no dia 25 de março, tendo como foco a obra de Dirceu Lindoso, onde também houve o lançamento do livro “A Razão Quilombola”, uma coletânea organizada pelo professor Bruno Cavalcanti, editado pela Editora da Universidade Federal de Alagoas (Edufal).

O escritor Dirceu Lindoso foi homenageado na última sexta-feira (dia 1º) com o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), como reconhecimento público da importância de sua obra literária, histórica e antropológica - condensada em mais de 10 livros -, além de dezenas de artigos, documentos e ensaios. Textos que, em sua maioria, trazem histórias sobre Alagoas e suas contradições. Um Estado desconhecido, de contratempos e contrastes.
“Alagoas para mim é um largo e belo poema de afeto, desafeto e amor”. É assim que este historiador alagoano, de 78 anos, define o lugar onde vive. Dirceu Lindoso costuma falar que Alagoas nasceu das diferenças.
Na sua trajetória como escritor, traz na bagagem a autoria de 14 livros, onde mergulha no fascinante mundo das guerras por território, no surgimento de uma nova terra e no caminho percorrido para transformar-se no que é hoje: Alagoas.
“Alagoas é, geograficamente, poético. É o que desejamos e temos. Pode não satisfazer o gosto de cada um, mas satisfaz o gosto de todos nós. E somos assim, terrivelmente contraditórios”, diz, entre risadas.
https://encrypted-tbn3.google.com/images?q=tbn:ANd9GcSn82wWZA5W4qovHabloroKckBteSn3N2b7KZ6vGwMY8xNA-Ekh9AToda sabedoria do historiador provém das histórias de seu avô, dos seus estudos e da busca por conhecer o que ele mesmo determina como “desconhecido”. E essa sabedoria está exposta em seus livros. Com tantas obras no currículo, Dirceu Lindoso conhece bem as artimanhas da literatura. “Escrever é um ato de coragem. O homem que escreve tem a coragem de dizer”. E Dirceu diz. Fala com facilidade e encanto sobre sua terra natal, sobre os conflitos enfrentados por uma Alagoas desconhecida, sobre as diferenças sociais e a dificuldade de se ter cultura em um Estado onde os ricos estão cada vez mais ricos, e os pobres cada vez mais pobres.
Nascido em Maragogi, ele conta as histórias da formação das terras caetés como se estivesse lá, como uma testemunha ocular. Eis aí sua vocação para contar as histórias de Alagoas. Ex-aluno do Colégio Batista, de Recife, e do Colégio Estadual de Alagoas, Dirceu aprendeu diversas línguas, e em 1981, escreveu sua primeira produção literária, o romance Povoa Mundo, que ganhou o Prêmio Nacional José Lins do Rego.
A partir daí, publicou ensaios e poesias. “O verdadeiro escritor sabe trabalhar a língua para nela escrever. Escrever é encontrar seu jeito de dizer”, afirma Dirceu. Depois, seguiram-se obras que descrevem com riqueza de detalhes as mais fantásticas histórias de Alagoas, ao modo Dirceu de interpretar.



Em breve, o historiador deve lançar O Grande Sertão, pela editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco. A obra é um exame etnológico da região sertaneja
Alagoas de Dirceu
Foto: Maíra Villela
Por: | JANAYNA ÁVILA - Repórter
Alagoas é o que se ama e dói. A frase, registrada em livro pelo historiador, antropólogo, pensador e escritor Dirceu Lindoso, expressa os sentimentos desse alagoano em relação à sua terra natal. A mesma terra na qual sua família, originária da Europa e proprietária de diversos engenhos no litoral norte do estado, se firmou, assistindo e até participando de episódios que estão inscritos na história da formação do Brasil. A partir dos relatos de seus avós e da pesquisa criteriosa em arquivos, aos poucos

Foto: Maíra VillelaLindoso foi construindo uma nova forma de ver e interpretar Alagoas. Dono de uma obra que se debruça sobre lances polêmicos como a Guerra dos Cabanos e as origens do Quilombo dos Palmares, em entrevista à Gazeta o homem que é um dos nossos mais respeitados intelectuais revisita acontecimentos históricos, fala sobre identidade cultural e se pronuncia a respeito de temas atuais como o crescimento da violência e a decadência da indústria da cana-de-açúcar. Confira

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Um dia, quando resolveu escrever sobre Alagoas, Dirceu Lindoso, 77, se surpreendeu: sabia pormenores de fatos que, embora ocorridos há séculos, pareciam frescos em sua memória, como se, de alguma forma, tivesse sido testemunha ocular da história. Nascido em Maragogi, filho de uma família abastada que era proprietária de diversos engenhos no litoral norte do estado, desde cedo teve uma educação voltada à leitura e ao estudo de idiomas. Quando os meninos de sua idade ouviam dos avós histórias de trancoso, os seus, que vieram de países como Portugal e Espanha, narravam-lhe episódios que diziam respeito ao Brasil, como a Guerra dos Cabanos e ainda a trajetória de Zumbi e Ganga Zumba no comando do Quilombo dos Palmares, ocorrências muito “próximas” da região onde nascera.

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Gazeta – Você nasceu em Maragogi e estudou no Recife. Quando veio para Maceió?

Dirceu Lindoso – Vim para Maceió já adulto. Não havia estrada de Maragogi para Maceió. A gente vinha de carro pela beira da praia. Mas para o Recife tinha. Por conta disso, estudei no Colégio Batista do Recife. Era um colégio excelente. Um dia desses um amigo me ligou e disse: “Dirceu, o problema dos filhos das famílias dos usineiros de hoje é a educação, que é um desastre”. E disse que somos exemplo porque meu avô, meu pai, eu e meus irmãos estudamos, nos formamos, fomos estudar no exterior... Meu tio, irmão do meu avô, estudou na Universidade de Oxford, na Inglaterra. E vários primos meus estudaram nos Estados Unidos. Havia um cuidado na educação dos filhos. E eu nunca vi tanta gente com bibliotecas grandes. A [escritora] Rachel

de Queiroz, que morou aqui, dizia que em lugar nenhum viu tantas casas com bibliotecas tão numerosas.

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Filho de família rica, luta contra a ditadura e é preso

Gazeta – Em 1964 você foi preso, acusado de atos comunistas. Como foi isso?

Dirceu Lindoso – Passei dez meses na prisão em Maceió. No dia em que fui libertado, o oficial mandou me chamar e disse que eu teria que ir ao Recife para ver o problema da acusação contra mim. Eu disse: “Eu vou ao Recife e depois vou embora. Não vou ficar aqui em Maceió esperando que vocês façam qualquer coisa contra mim”. Assim que cheguei lá, me apresentaram o que havia. Li e não tinha nada. Era um tal de “ouvi dizer”. Saí de lá e fui embora para o Rio de Janeiro. Já estávamos em 1965. Nessa época eu já era casado, tinha filhos. Quem me deu assistência foi o Rui Palmeira. Fiquei hospedado na casa dele e me dava muito bem com o Moacir, filho dele, que até hoje é meu amigo. É o mais intelectual dos filhos do Rui Palmeira. Fez doutorado em Antropologia na Sorbonne.

E como sua família, que era proprietária de engenhos, viu sua atividade comunista?

A família toda era conservadora, de direita. No começo, meu pai ficou bem zangado. Depois adoeceu, me perdoou e, enquanto eu estava na prisão, morreu.

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BIBLIOGRAFIA

›› Póvoa-mundo – 1981

›› Uma Cultura em Questão: A Alagoana – 1981

›› Mínimas Coisas – 1981

›› A Diferença Selvagem – 1983

›› Liberdade e Socialismo – 1983

›› A Book of Days for the Brazilian Literary Year – 1993

›› Mar das Lajes – 1999

›› A Utopia Armada: Rebeliões de Pobres nas Matas do Tombo Real – 1983 (reeditada em 2005)

›› A Formação de Alagoas Boreal – 2000

›› Interpretação da Província: Estudo da Cultura Alagoana – 2005

›› As Invenções da Escrita – 2006

›› Marená: um Jardim na Selva – 2006

›› O Poder Quilombola – 2007

›› Lições de Etnologia Geral: Introdução ao Estudo dos seus Princípios – 2009

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“Calabar não é uma questão alagoana”

Gazeta – E já que o assunto é identidade, vamos falar do Manifesto Sururu, texto do antropólogo e professor Edson Bezerra. Qual a importância que você atribui ao texto para a discussão sobre identidade?

Dirceu Lindoso – O manifesto, em si, é contraditório. Mas ele tem uma coisa muito boa: recupera a figura da Tia Marcelina, uma pessoa da qual só falavam bem. E o que fizeram com ela foi um assassinato. Critiquei contradições como a comparação que o manifesto faz entre a Tia Marcelina e a Padroeira de Maceió, Nossa Senhora dos Prazeres. Digo isso não pela Nossa Senhora dos Prazeres, mas pela Tia Marcelina. Comparar

algo que é um mito, que ninguém sabe se existiu, com uma escrava, uma mulher. Nossa Senhora foi uma coisa criada. Tia Marcelina, não.

Nessa análise sobre o manifesto, você lança o que chama de “provocação” ao dizer que, ao ter nascido no litoral norte do estado, não é um “sujeito sururu”, e que não é caeté nem em manifesto. Essa provocação tem como função falar de quão vasta e complexa é a cultura alagoana, que não dá para simbolizar nossa identidade numa única imagem?

Isso mesmo. No litoral norte só tem ostra e índios potiguares. Não tem sururu nem caetés. A poesia não tem validade diante da ciência antropológica (risos).

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TRECHO DE O PODER QUILOMBOLA

Penso que Darcy Ribeiro tinha razão quando dizia que foram os negros que expandiram a língua portuguesa no Brasil. Tinham necessidade de falarem uns com os outros e com seus donos. Sua cultura tinha por base a rústica construção de mocambos nas matas úmidas e o plantio de mandiocais, que lhes davam a sobrevivência. A construção de

uma comunidade primitiva de mocambos e mandiocais foi uma tarefa difícil para os primeiros negros fugitivos, que se alimentavam do mel das abelhas silvestres, e, por isso, passaram a ser conhecidos por papa-méis.

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TRECHO DE FORMAÇÃO DE ALAGOAS BOREAL

A documentação sobre nossa história é parca. Um tabelião insano queimou os arquivos de Porto Calvo sob sua guarda. Pouco se sabe hoje o que foi documentalmente a história de Porto Calvo. A história da pars borealis é quase toda antropológica. Só a história antropológica pode salvar parte de nossa memória social. E baseado nessa desdocumentação – e permita-se a mim o neologismo – surge o delírio de alguns, mais preocupados com a projeção de seus desejos e frustrações que com a probidade histórica, imaginando uma Porto Calvo holandesa que jamais existiu. O que sempre existiu foi a Porto Calvo portuguesa desde as origens, que chegou por várias vezes a ser ocupada por tropas da Companhia das Índias Ocidentais. Porto Calvo nasceu portuguesa, portuguesíssima pelo nome e pela língua falada pelos seus povoadores. Nome de aldeia portuguesa do Minho e Alto Douro.

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Na obra de Lindoso, uma nova leitura da nossa história

Gazeta – Vamos falar de seus livros. A Utopia Armada trata da Guerra dos Cabanos, episódio ocorrido na fronteira entre Alagoas e Pernambuco. Apesar de ter ocorrido aqui, é um fato quase desconhecido pelos alagoanos. Por que você resolveu escrever sobre o conflito e o que mais chamou sua atenção nessa história?

Dirceu Lindoso – O meu avô era compadre do filho do Vicente de Paula, o maior chefe dos cabanos, que chamavam de General de Todas as Matas. A família do meu avô ficou do lado dos cabanos. Nem todos os senhores de engenho ficaram contra os cabanos, como muita gente já afirmou. E meu avô me contava muitas coisas sobre essa história. O pai do meu avô ajudou muito os cabanos. Foi uma guerra feita pelos conservadores para trazer Dom Pedro I de volta. Ele tinha ido embora para Portugal. Mas D. Pedro I já tinha morrido e eles não sabiam. Eles colocaram os escravos deles como soldados e enfrentaram o exército de Pernambuco e Alagoas. Os cabanos tomaram Maceió. Essa guerra durou de 1832 até 1850. Foram 18 anos. Levaram o Vicente de Paula para Fernando de Noronha, preso.

A Guerra dos Cabanos seria uma prova de que, há tempos, o povo de Alagoas não seria tranquilo, pacífico?

Tranquilo? Onde? E as guerras de famílias onde ficam hoje Palmeira dos Índios, Viçosa, Arapiraca? Uma guerra terrível. No sertão também. Muitos conflitos. O Octávio Brandão dizia que a família dele tinha engenhos, era rica, mas os parentes mais antigos dele eram pobres: pequenos comerciantes e empregados de fazenda. E foi depois dessas guerras todas que esse pessoal ficou rico. Foi aí que surgiram essas fortunas de Viçosa.

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O historiador fala sobre o futuro da economia alagoana

Gazeta – Como você trabalha sempre com fatos distantes, quando você está realizando o levantamento de dados para um trabalho não fica receoso de estar recorrendo a uma versão deturpada ou falsa de um episódio?

Dirceu Lindoso – Em geografia, não. Os mapas eram feitos por cientistas. Não havia como estarem errados, até porque eram usados. Agora, quando o documento é sobre algum acontecimento, sim, por conta da interpretação do acontecimento, o sentido que se dá ao fato. Mas o que faço não é história nem etnologia. É etnohistória. A história que usa da etnologia para desvendar. Eu estou desmontando os museus de história. O modelo de história de Alagoas, para mim, não servia. É a história oficial. Um modelo que vinha se repetindo.

E sobre os índices de violência urbana no Estado: você tem pensado sobre isto?

Antes aqui só tinha briga de família. Hoje mais não. É um problema social. Pobreza. Querem fundar em Alagoas duas usinas atômicas. Vai ser a saída para Alagoas. Vai precisar de tecnologia e mão-de-obra. Faria surgir uma nova classe de profissionais altamente qualificados. A indústria têxtil acabou. Era forte, mas acabou. Hoje o problema é a cana-de-açúcar. A China e outros países não querem mais saber de açúcar nem de álcool. Querem saber de celulose e aqui se queima celulose. A celulose é retirada da palha da cana. A maior riqueza de Alagoas eles queimam.


Fonte: http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/

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No artigo abaixo, que possui 25 páginas, procuramos refletir sobre a estrutura fundiária de Alagoas na segunda metade do século XX por meio de uma análise quantitativa e qualitativa dos dados constantes no censos agropecuários organizados pelo IBGE. O principal objetivo é demonstrar que é falsa a ideia de que a grande propriedade ocupa a maior parte da área agricultável do estado, apesar de ter um poder econômico e político muito maior do que os pequenos e médios proprietários rurais. Abaixo vai uma amostra do artigo e um link para o seu texto integral. 
Golbery Lessa  (Editor de A Voz do Povo)


Sinha Vitória e Fabiano
por Golbery Lessa

1. As linhas gerais da estrutura fundiária
Na segunda metade do século XX, a concentração de renda no meio rural alagoano continuou aumentando e mantendo o seu histórico relacionamento com a tendência majoritária de concentração da propriedade da terra. No entanto, caso observemos uma série histórica de dados relativos às microrregiões e mesorregiões do Estado no período, perceberemos que apenas no Leste Alagoano a concentração fundiária constitui uma variável decisiva, ou seja, a taxa de concentração da terra é impulsionada basicamente pela região canavieira, o que acaba encobrindo a baixa incidência do latifúndio e o grave problema do minifúndio em outras partes do Estado. No Agreste e no Sertão, a tendência mais importante das décadas consideradas consiste na concentração de renda por meio de mecanismos de crédito e comercialização, associados a uma estrutura fundiária baseada no minifúndio e nas pequenas e médias propriedades.
 As linhas gerais da estrutura fundiária de Alagoas daquele período podem começar a ser inferidas, em suas dimensões mais gerais, a partir do seguinte gráfico: (...) 

Ver o artigo todo, em PDF, no seguinte linkhttps://docs.google.com/viewer?a=v&pid=explorer&chrome=true&srcid=0B7m_3fOW2JG_ODJkMWZiZTUtYWRiMy00MTg3LWFhMTEtZjdmYzgwZjdjNjBi&hl=en_US  Por um lapso nosso, a ano de conclusão do artigo, posto na sua última linha, ficou como sendo 2002, quando na realidade deveria constar o ano de 2012.






por Golbery Lessa

Em quadras históricas como a que vivemos, marcadas pelo avanço da perspectiva e das práticas contra-revolucionárias, assiste-se ao quadro tragicômico da "conversão" de conhecidos intelectuais comunistas, ou seja, contempla-se a sua abjuração, aberta ou velada, dos princípios teóricos que fundamentam a propositura de revolução social.

O historiador inglês E. J Hobsbawn
Fruição para liberais e social-democratas, constrangimento para nós marxistas que resistimos às ondas de choque, essas "conversões" aparecem como prova irrefutável da inviabilidade teórica e prática do socialismo. Ninguém melhor do que parte significativa da vanguarda revolucionária, agora desiludida, para colocar, de acordo com o costume ocidental, os primeiros torrões de terra sobre a urna fúnebre do "velho" pensador alemão.

Os escritos desses novos poetas da ordem, como os papéis especulativos na bolsa, valorizam-se com uma rapidez vertiginosa, proliferam sob a proteção de inúmeras instâncias estatais, e passeiam lépidos, de mão em mão, ocultando a sua natureza precária. Tornam-se célebres não por acrescentarem um erro original ao pregão do proselitismo, mas por sua exemplaridade.

Apontar apenas para a fragilidade ética dos indivíduos "convertidos" eqüivale a abandonar o método dialético, o que também acontece quando se sublinha de modo exclusivo as fraquezas teóricas e o contexto sócio-cultural. É necessário, pois, como tem demonstrado a melhor análise marxista sobre a intelligentsia – tendo Lukács e Gramsci à frente – determinar em cada caso as relações dinâmicas e complexas entre a totalidade social e as possibilidades éticas e teóricas de cada indivíduo.

Os últimos anos da trajetória teórica do conhecido historiador inglês E. J. Hobsbawn vêm sendo marcados, segundo vários autores1, pelo seu paulatino e substancial afastamento em relação à propositura da revolução socialista. Apesar disso, essa metamorfose intelectual não tem sido, ao nosso ver, devidamente sublinhada pelos marxistas brasileiros. Obviamente, seria muito mais positivo se estivéssemos festejando grandes desenvolvimentos na historiografia revolucionária. Porém, não podemos fazê-lo, porque está dando-se justamente o contrário.

O melhor caminho não é calar-se diante do fato, mas tentar explicá-lo e agir no sentido de sua superação. Essa atitude se justifica ainda mais no momento presente, no qual as idéias do autor em questão, principalmente àquelas apresentadas em seu livro A Era dos Extremos, vêm tendo um sucesso considerável e sendo apresentadas pelo próprio e por muitos outros, como coerentes com o método e a perspectiva de Marx e como a quintessência do caminho teórico e político mais adequado.

O presente texto tem o intento de demonstrar a tese de que o historiador inglês abandonou, há alguns anos, a propositura da revolução social não por oportunismo ou qualquer outro defeito ético, mas fundamentalmente porque as suas bases teóricas e metodológicas nunca foram suficientemente coerentes com a sua posição revolucionária. Num certo momento de sua trajetória teórica, no seio de um determinado contexto histórico, essa antinomia finalmente se resolveu através da troca da revolução pela social-democracia e não do câmbio dos seus fundamentos teórico-metodológicos insuficientes pelo método marxiano. Esse desfecho não era uma necessidade inelutável, poderia ter-se dado o inverso com outro personagem ou com outras circunstâncias.

Acreditamos que essa tese se aplica à grande maioria dos ex-marxistas contemporâneos. Porém, a nossa proposta é ir além dessa determinação geral, que é imprescindível mas insuficiente. Tentaremos perceber as singularidades da trajetória de Hobsbawn e relacioná-las com àquelas determinações gerais que perpassam tanto o seu caso como o de inúmeros outros ex-revolucionários, tentando apreender a história do seu pensamento em sua particularidade.

I - As Aventuras de Asterix na Corte do rei Artur

O método historiográfico utilizado por Hobsbawn, em seu recente livro A Era dos Extremos, é essencialmente o mesmo de suas outras obras muito conhecidas e claramente se aproxima do método da chamada escola francesa dos annales, a qual teve como principais representantes Marc Bloc, Lucien Febvre e Ferdinad Brudel. A única diferença significativa reside no fato de que Hobsbawn, ao contrário desses três autores, não se exime de tematizar as questões relativas ao Estado e as intricadas lutas políticas em torno do poder.

A preocupação com a chamada "longa duração" é patente: as obras mais famosas do autor abarcam nada menos do que todos os aspectos – menos o filosófico, o que é sintomático – e todos os períodos daquilo que se convencionou chamar de modernidade, isto é, desde a Revolução Francesa até o presente. outros traços de inegável proximidade com os annales são um indisfarçado empirismo, o desprezo pela filosofia e uma fortíssima tendência a não aceitar a esfera das relações sociais de produção como momento predominante do ser social e de sua história.

Esses gauleses desejavam depurar a historiografia das suas conseqüências revolucionárias, porém com o cuidado de não caírem no factualismo. Por isso retiveram as noções de totalidade e da importância causal da economia de uma maneira extremamente esgarçada e impura, o que transubstanciou a totalidade em um conjunto de partes justapostas e que – sem perceberem claramente – se paralisam mutualmente e usurpou das relações sociais de produção o caráter de momento predominante dos outros complexos sociais2.

Uma totalidade sem momento predominante, em que as partes "interagem de maneira recíproca" de modo inteiramente equilibrado, apenas pode levar à imobilidade eterna, à uma equação de soma zero. Se tudo interage com tudo na mesma proporção, tudo anula as transformações de tudo. Se a religião muda para um lado, a economia para outro, a política para um terceiro etc., ou a sociedade se esfacela em vários pedaços, ou então as várias partes têm que abandonar a mudança e voltar para a situação inicial de harmonia.

Restou, então, para os annales buscar o impulso à mudança "de fora", do "exterior" das formações sociais estudadas. Assim, Marc Bloc inicia o seu Sociedade Feudal com as invasões dos nórdicos e magiares à Europa da "idade das trevas", recém saída do Império Romano. Sua história feudal será a história da síntese ente elementos romanos e bárbaros. O movimento foi encontrado finalmente, já que sem movimento não há inteligibilidade nem aparência de inteligibilidade possível. Outro recurso será a história comparada, que permite o movimento em nível "mental" provindo da "comparação" de uma sociedade com outra análoga, como no seu livro em que compara o campo francês com o inglês. A "longa duração" é, nessa escola, quase sempre, "extenso espaço", onde coexistem várias formações sociais, as quais entram em contato com o tempo, o que trás a idéia de movimento. O "mediterrâneo" é palco de inúmeras formações sociais, que entram em contato e choque ...

É claro que se trata de um mero truque: ou a contradição nasce do desequilíbrio, da desarmonia entre os complexos sociais ou não pode surgir do nada. A explicação sobre as contradições entre formações sociais não substitui a explicação sobre suas contradições internas, e essas determinam aquelas. Os bárbaros não invadiriam o império romano se esse não se fraturasse interiormente.

Os títulos das obras de Hobsbawn mais conhecidas e importantes demonstram por si a opção pela longa duração: A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios, Nações e Nacionalismo, A História Social do Jazz, Mundos do Trabalho, Os Rebeldes Primitivos etc.

Em Os Revolucionários e Políticas para uma Esquerda Racional, que reúnem inúmeras intervenções nos órgãos de imprensa, o autor analisa tempos curtos: conjunturas eleitorais, guerras localizadas, golpes de Estado etc. Nessas obras, fica patente um significativo empirismo. Sem a longa duração fica mais clara a insuficiência da análise. A dinâmica, nesse caso, é dada pela luta de classes, mas se resume a um olhar superficial, com forte tendência culturalista3.

Fazendo um balanço geral da obra do autor, pode-se notar que esse busca superar o economicismo típico da Segunda Internacional e do movimento estalinista. Porém, não há, por outro lado, uma superação positiva, através da compreensão profunda do complexo da economia e do seu caráter predominante. A tendência dominante do autor inglês é "afrouxar" a determinação econômica dos outros complexos sociais. A Filosofia é abandonada desde o início, o que impede completamente qualquer possibilidade de solução satisfatória. Trata-se de um processo particularmente perverso e amplamente conhecido: o afrouxamento dos princípios básicos se dá, necessariamente, em paralelo com a aquisição de conceitos de outras perspectivas.

O resultado, a "flexibilização" do pensamento do autor, aparece para ele mesmo – e para outros – como um ganho efetivo de capacidade de compreensão da realidade. Esse primeiro "ganho" de capacidade heurística estimula um novo "afrouxamento" e um novo "ganho" e, assim, sucessivamente, sem que a vítima perceba, uma bela manhã se descobre sentada à direita da rainha da Inglaterra!

A recorrência ao conceito de classe e de luta de classes não tiram o autor de suas dificuldades, dado que tais conceitos, no grau de determinação em que são utilizados, não são suficientes para estruturar uma compreensão dialética da realidade. O seu conceito de consciência de classe, por exemplo, é bastante empirista, o que vai contribuir para uma visão extremamente culturalista da história do movimento operário.

II - O Retorno Eterno ao 'Eterno Retorno'

O livro A Era dos Extremos teve uma acolhida extremamente favorável no Brasil. Tem sido vendido em verdadeiras pencas como genuíno Best-Seller. Trechos da obra passaram a ser citados como sentenças oraculares na academia, no Congresso Nacional, nos chamados movimentos sociais e mesmo na vida cotidiana por pessoas das mais díspares posições ideológicas e políticas.

Essa "unanimidade" relativa a um autor supostamente marxista nestes "tempos sem sol" teria que levantar desconfianças naqueles que ainda "pensam por si mesmos", o que não se deu na dimensão que esperávamos. A análise desse livro tem a potencialidade de revelar muito sobre a história intelectual do seu autor, principalmente porque é nele que a referida antinomia entre método e posição política se resolve. Além disso, pode concorrer para "dessacralizar" o conjunto de suas teses verdadeiramente medíocres relativas à história do século XX.

O livro comporta todos os problemas metodológicos das obras anteriores do autor. Ao nosso ver, o seu sucesso reside nas conclusões pífias e reformistas que resultam do desenvolvimento conseqüente do método utilizado e na pretensão de explicar todos os aspectos do século XX num único livro, o que se harmonizou facilmente com o gosto da reacionária e mentalmente apressada opinião pública contemporânea. O sucesso de público e de crítica do livro se originou, contraditoriamente, no fracasso teórico do autor, na sua incapacidade de compreender o século XX. Resultou do fato de que Hobsbawn se enredou no labirinto da aparência e produziu uma visão reificada que se adequou perfeitamente ao senso comum deste final de século.

Poderíamos demonstrar as fragilidades teóricas do livro e a grande distância em que o seu método se encontra do método marxiano a partir de algumas das inúmeras questões tratadas ao longo do texto, como por exemplo,

1) as causas e as conseqüências dos grandes massacres do século XX;

2) a conceituação do movimento fascista;

3) a relação entre o desenvolvimento econômico do século XX e os seus outros complexos sociais;

4) o mundo das artes neste século;

5) as modificações no mundo do trabalho nas duas últimas décadas;

6) a relação entre o público e o privado etc. Porém, ateremo-nos à primeira questão, não só pelas dimensões do presente texto, mas também porque acreditamos que é o suficiente para os nossos objetivos.

O capítulo 1 do livro de Hobsbawn, intitulado A Era da Guerra Total, no qual ele analisa as duas grandes guerras mundiais, é fundamental para compreendermos o pensamento do autor no que se refere às causas e as conseqüências dos massacres do século XX.

Ao longo das trinta páginas do capítulo referido, o autor fica muito longe de cumprir o que promete, ou seja, não consegue explicar satisfatoriamente porque aconteceram as duas guerras mundiais, porque esses conflitos se diferenciaram dos anteriores, e quais foram as conseqüências históricas advindas deles. Isso ocorre essencialmente pelo profundo empirismo utilizado na análise dos fatos, que é de tal ordem que dificulta inclusive, para quem ler, a identificação das "teses" e da "teoria" que está sendo explicitada no texto. O leitor é obrigado a investir-se da função de arqueólogo e separar com muito esforço, após vários esquadrinhamentos, a "terra fatual" dos pequeninos "artefatos teóricos" minimamente significativos.

Para se ter uma idéia do vazio conceptual basta sublinhar o fato de que a palavra "capitalismo" aparece uma única vez, na penúltima das trinta páginas do capítulo, assim mesmo numa alusão ao que será tratado numa próxima seção do livro. Certamente, trata-se de uma façanha inédita: explicar as duas grandes guerras interimperialistas sem utilizar o conceito essencial para entender a sociedade na qual se deram.

Quem procurar ler o referido capítulo notará que Hobsbawn procura explicar o aumento da dimensão dos massacres no século XX a partir da disseminação de uma cultura da violência e do desprezo à vida dos outros seres humanos, essa cultura teria sido gerada antes de tudo pela Primeira Guerra Mundial, a qual teria acostumado a população européia, por um lado, a ser indiferente aos imensos banhos de sangue e, por outro, a ser tão firmemente pacifista que não se dispunha a enfrentar atentados violentos à própria civilidade, e criou uma massa de veteranos de guerra prontos para guiar os seus povos a renovadas hecatombes. Uma das principais causas da reprodução desse "imaginário" da indiferença e da brutalidade foi a invenção de meios assépticos e impessoais de matar, como o bombardeiro e o rifle de longo alcance, os quais facilitariam a aceitação da violência a partir de desenvolverem a impessoalidade na guerra. Além disso também contribuiu muito o caráter "popular" dessas guerras, que obrigou os líderes políticos a mobilizarem a massa através da demonização dos seus inimigos. As novas gerações teriam apreendido esse "imaginário" com as antigas e passado adiante ...

Salta aos olhos do leitor o fato de que o historiador inglês procura dar uma explicação basicamente culturalista para o aumento nas dimensões dos massacres. O complexo da economia sempre aparece ao lado ou subordinado às esferas da subjetividade e da política, e quando aparece como determinante é de uma maneira vaga e esquemática.

Assim, por exemplo, o autor explica a amplitude e radicalidade da Grande Guerra – que desencadearia toda a "cultura da brutalidade" – pelo fato de que os interesses econômicos e políticos das grandes potências imperialistas eram radicalmente excludentes. É interessante sublinhar que, nessa tentativa de explicar o "motor inicial" da Grande Guerra e, consequentemente, da queda do grau de civilidade no século XX, a "economia" e a "política" aparecem fundidas numa identidade completa – "Na Era Imperialista a política e a economia se haviam fundido" –, o que demonstra mais uma vez a recusa do autor inglês a perceber o complexo da economia como momento preponderante da totalidade social. A verdadeira "causa primeira" da Grande Guerra aparece como se fosse a rivalidade "geo-histórica" das potências européias, o "movimento", como na escola dos annales, é encontrado no "extenso espaço" e não na natureza particular da economia dos países beligerantes.

Isso fica novamente patente quando o autor procura explicar as principais causas da Segunda Guerra: "Talvez a guerra seguinte (a Segunda Guerra) pudesse ter sido evitada, ou pelo menos adiada se houvesse restaurado a economia pré-guerra como um sistema global de prósperos crescimento e expansão econômicos. Contudo, após uns poucos anos, em meados da década de 1920, nos quais se pareceu ter deixado para trás a guerra e perturbação pós-guerra, a economia mundial mergulhou na mais drástica crise que conheceu desde a Revolução Industrial. E isso levou ao poder, na Alemanha e no Japão as forças políticas do militarismo e da extrema direita".

O historiador não faz nenhuma menção às profundas diferenças entre o capitalismo clássico da França, Inglaterra e Estados Unidos e o capitalismo retardatário da Alemanha, Japão e Itália, diferenciação que deveria ser base do entendimento das causas da guerra, já que foi o caráter retardatário das "Potências do Eixo" que explica tanto a possibilidade dos fascistas chegarem ao poder como a inevitabilidade do conflito. Para Hobsbawn, todo o mal-entendido poderia ter sido evitado se a economia mundial não tivesse entrado em crise. O que demonstra mais uma vez a sua maneira esquemática de entender a relação entre a economia e os demais complexos sociais. O autor fica impossibilitado de perceber que a única maneira de evitar a guerra teria sido a vitória do movimento revolucionário nos países de capitalismo retardatário, principalmente na Alemanha, vitória que era uma possibilidade real e que foi perdida por inúmeros erros político-ideológicos.

A "causa primeira" do aparecimento da "cultura da brutalidade" teria sido, para o autor, a Primeira Guerra Mundial, e esse acontecimento teria sido determinado por um contexto geo-histórico que contrapôs de maneira radical os interesses políticos e econômicos das grandes potências européias. Ou seja, para Hobsbawn, no início de todo processo esteve presente interesses econômicos e políticos muito objetivos, mesmo igualando o complexo da economia ao complexo da política como esfera predominante, isto é, mesmo fundindo relações econômicas e relações políticas num mesmo todo indiferenciado, o historiador parte do que com alguma boa vontade poderíamos chamar de "plano da objetividade".

Porém, se esse "plano da objetividade" produz o movimento subjetivo "ampliação da cultura da brutalidade", esse mesmo "plano da objetividade" não está presente, segundo o texto do autor, na "reprodução" do referido movimento subjetivo. O complexo da cultura se autonomiza e passa a se autoalimentar e reproduzir, apartando-se completamente de seu produtor "plano da objetividade". A autonomia absoluta da cultura não fica ainda mais patente porque o autor faz o "plano da objetividade" intervir mais uma vez através de mais outro acontecimento econômico-político: a Segunda Guerra Mundial. Com mais essa alavanca "objetiva" a autonomia absoluta da cultura aparece menos claramente e se torna mais aceitável, mas de nenhuma forma é efetivamente diminuída ou superada.

Por fim, após esse percurso que fomos obrigados a trilhar no interior do texto de Hobsbawn, explicitaremos, sem ir muito além dos próprios dados fornecidos pelo autor, mas procurando utilizar o método dialético, qual deveria ser a explicação adequada do aumento da amplitude dos massacres no século XX e a sua relação com as duas grandes guerras mundiais.

A escala "industrial" das guerras e de outros massacres perpetrados no século XX devem ser explicados pela radical complexificação, integração e concentração das economias capitalistas. Em economias com essas características, os danos causados aos inimigos em qualquer embate bélico são, necessariamente, astronômicos se comparados ao passado em termos absolutos. Antes da radical urbanização e industrialização, quando as economias dos beligerantes eram essencialmente agrícolas e pouco integradas, as guerras – sejam na Europa ou em qualquer outra parte do mundo minimamente desenvolvida – tinham que ser decididas principalmente entre os militares, buscava-se apenas causar um dano decisivo no exército ou na esquadra adversária.

Por outro lado, é importante perceber que esses danos – essencialmente militares, mas não apenas – se eram pequenos se comprados aos atuais, para aquelas sociedades não o eram. Não havia parques industriais, entroncamentos ferroviários, aeroportos, centros administrativos-comerciais nevrálgicos param serem destruídos, nem uma população urbana suficientemente concentrada a partir da qual se poderia destruir parte significativa da força de trabalho e também espalhar o pânico, o desespero e a desorganização. Antes das primeiras décadas do século XX, não havia inclusive os meios bélicos capazes de destruir em grande escala, os quais obviamente apenas se tornaram possíveis com o desenvolvimento industrial.

Diante da inevitabilidade da guerra de massas e, consequentemente, das grandes carnificinas, os indivíduos que viveram e vivem durante o século XX foram obrigados a adaptar o seu espírito a essa realidade, construíram estruturas psicológicas – conscientes e inconscientes – e morais que, se indiscutivelmente são em grande parte estranhadas, possibilitam a sobrevivência em situações radicalmente desumanas e desestruturantes. Por outro lado, os inúmeros progressos materiais trazidos pelo século XX possibilitam o desenvolvimento positivo de muitas dimensões da subjetividade, como por exemplo, a liberação da mulher, a chamada "revolução sexual", o arrefecimento da religiosidade etc.

A ampliação da "cultura da brutalidade" se deu paralelamente à ampliação da "cultura da humanização". A coexistência dessas duas culturas contraditórias expressa, certamente, a coexistência de condições e possibilidades econômicas também contraditórias.

A intensificação da socialização do homem, "o recuo das barreiras naturais" – processo sublinhado por Marx e Lukács – é necessariamente contraditório. O progresso histórico sempre coexiste e implica em muitos momentos de regressão. E mais: a própria potencialização do progresso implica a intensificação das possibilidade do regresso. Isso não significa que exista efetivamente a "lei do eterno retorno" na história humana, que não possamos visualizar uma escala de progresso significativa – mesmo que não linear – se compararmos os diversos modos de produção. Se levarmos em conta as dimensões históricas mais universais do gênero humano – a saber: o trabalho, a socialidade, a universalidade, a consciência e a liberdade –, teremos a possibilidade de perceber, por exemplo, que a sociedade capitalista possui um grau superior de progresso, de desenvolvimento dessas dimensões fundamentais, ao da sociedade medieval. Isso não significa que essa superioridade geral do capitalismo não possa, por si mesma, tornar alguns dos aspectos desse mesmo modo de produção mais desumanos, mais regressivos, do que os aspectos análogos no feudalismo. Assim, por exemplo, a capacidade produtiva na sociedade burguesa é infinitamente superior a da sociedade feudal, o que implica numa diferença muito grande na qualidade de vida, longevidade etc., porém, por outro lado, implica também numa grande diferença no que se refere à autodestruição: a feudalidade era incapaz de destruir todo o gênero humano, a sociedade regida pelo capital adquiriu as condições de realizar essa possibilidade inominável.

O pessimismo de Hobsbawn, que perpassa não apenas o primeiro capítulo, mas todo o seu livro, surge do fato de que o autor é incapaz de entender esse complexo movimento contraditório que envolve o progresso e o regresso, e fez uma opção emocional – não fundamentada – pelo ceticismo (anteriormente, a referida incompreensão convivia com uma opção também emocional pelo otimismo).

Como já afirmamos, o culturalismo presente nesse livro perpassa todas as obras mais conhecidas do autor. Porém, é apenas a partir desse trabalho que tal perspectiva teórico-metodológica leva Hobsbawn a conclusões anti-humanistas e anti-socialistas. A convicção socialista do autor tinha como base um arcabouço teórico-metodológico incompatível com essa mesma convicção. A derrocada do "socialismo real', o refluxo do movimento operário nos anos oitenta e as substanciais modificações societárias desse fim de século, colocaram abaixo o seu edifício comunista carente de um alicerce comunista.

III - Os Belos Veleiros Vitorianos

O historiador inglês repete, como já assinalamos, na sua extensa carreira, os mesmos erros cometidos pela escola do annales e por muitos outros que não foram capazes de entender o método dialético, ou seja, aparta a história da filosofia e se recusa a perceber as relações sociais de produção como momento predominante no complexo social. Interdita, assim, a possibilidade de ir à raiz da realidade social. Navega o oceano científico com a intrepidez de um belo veleiro vitoriano, mas naufraga completamente. Os extremos de progresso e regresso e a luta extremada entre o capital e o trabalho que marcaram o século XX, requerem, para serem compreendidos, um olhar extremado, radical, o qual somente tem a possibilidade de possuir quem escolhe o lado do progresso e do trabalho. Nenhum pretenso termo-médio, nenhum tipo de olhar moderado é suficiente. Caso houvesse compreendido algum dia a maneira teoricamente adequada de traduzir as possibilidades cognitivas postas pelo trabalho, Hobsbawn hoje não seria um espécie de tradutor da "linguagem" das mercadorias, não teria uma opinião tão desesperançada sobre o gênero humano e certamente poderia adotar como divisa de seu veleiro vitoriano os seguintes versos de Hamlet: "que obra-prima é o homem! Como é nobre pela razão! Como é infinito em faculdade! Em forma e movimentos, como é expressivo e maravilhoso!"


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1 - Ver, por exemplo, o norte-americano Vicente Navarro e o húngaro I. Mészàros. As opiniões do primeiro podem ser encontradas num texto sobre o Welfare State publicado na revista Lua Nova (n° 24), as observações críticas do segundo foram proferidas no Colóquio sobre Lukács, realizado em Maceió, Alagoas, em outubro de 1996.

2 - No que se refere às principais características da chamada "escola dos annales" seguimos de perto as formulações do livro Á História em Migalhas, de F. Dossé, Ensaio, 1994, SP. Acrescentamos apenas uma maior ênfase na demonstração das diferenças entre o método dessa escola e o método marxiano.

3 - Esse culturalismo é baseado numa interpretação subjetivista de Gramsci; a consciência de classe é confundida com o imaginário popular referente às lutas entre as classes, principalmente no seu aspecto político. Não se percebe, como Lênin percebeu, que a consciência de classe dos trabalhadores é a elaboração científica feita pelos intelectuais revolucionários das condições objetivas da massa trabalhadora e de seus interesses históricos, e não a média das intuições individuais dos trabalhadores.


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Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 10, Outubro de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.

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